biografia

João Caboré

Autor(es): Elizabeth Maria Beserra Coelho
Biografado: João Manuel Pereira da Silva/ João Caboré
Morte: 1901
Povo indígena: Guajajara
Estado: Maranhão
Categorias:Biografia, Etnias, Guajajara, Estado, Maranhão
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KAWIRÉ IMÀN: Liderança Tentehar/Guajajara/ Terra Indígena Canabrava/Maranhão

O povo Tentehar/Guajajara

 Os Tentehar, falantes de uma língua classificada no tronco tupi, família guarani (RODRIGUES, 2002), estão em contato desde que os franceses chegaram ao Maranhão, em 1612. Foram usados como escravos, como servos e como mão-de-obra barata. Continuam a falar Tentehar, embora muitos possam se comunicar, de forma fluente, em português.

Atualmente constituem o maior povo indígena que habita no Maranhão e o 4º maior no Brasil. Organiza-se com base na família extensa, que é também sua unidade econômica. Suas aldeias variam de tamanho e possuem traçado semelhante aos povoados do interior. As casas assemelham-se às dos brasileiros.

Segundos dados de 2014 (SIASI/SESAI), sua população totalizava 27.616 pessoas, distribuídas em diversas terras indígenas, conforme quadro a seguir.

Terra Indígena Localização
Cana Brava/Guajajara Jenipapo dos Vieiras/MA
Araribóia Amarante/MA
Bacurizinho Grajaú/MA
Rio Pindaré Bom Jardim/MA
Lagoa Comprida Amarante
Urucú Juruá Grajaú/MA
Carú Bom Jardim/MA
Morro Branco Grajaú/MA
Rodeador* Barra do Corda/MA
Governador** Amarante/MA
Krikati*** Montes Altos/MA
*Demarcada para os Tentehar e os Awá
**Demarcada para os Pukobiê/Gavião.
***Demarcada para os Krikati
Mapa das terras indígenas no Maranhão.

Fonte: acervo da pesquisadora

Todas essas terras estão demarcadas e homologadas, sendo que algumas delas são partilhadas com outros povos indígenas, como é o caso das terras Governador e Krikati, que foram demarcadas para os povos Pukobiê e Krikati, respectivamente, mas acolhem um grande número de Tentehar. A terra Caru foi demarcada para os Tentehar e para os Awá.

Esse povo tem vivenciado conflitos de grande proporção, especialmente por disputas pela terra, cabendo destaque ao denominado “Massacre do Alto Alegre”, ocorrido em 1901, no qual KAWIRÉ IMÀN teve destacado protagonismo.

A disputa referida envolveu, de um lado, índios Tentehar/guajajara e, de outro, os moradores dos povoados São Pedro dos Cacetes e Alto Alegre e Centro do Meio (também denominado Centro do Felipe Preto), incluindo-se uma missão de frades capuchinhos, que lutavam pela posse de parte da área demarcada sob a denominação de terra indígena Cana Brava/Guajajara. Esta área está localizada nos municípios de Jenipapo dos Vieiras, Barra do Corda e Grajaú, na Micro-região do Alto Mearim e Grajaú, Maranhão.  Os moradores dos povoados eram pequenos lavradores e comerciantes. O povoado Alto Alegre foi formado a partir de uma missão de capuchinhos lombardos que no final do século XIX fixaram-se no Maranhão com o objetivo de realizar a catequese com os índios.   Os povoados de São Pedro dos Cacetes e Centro do Meio formaram-se, basicamente, por migrações nordestinas e também por colonos oriundos do Alto Alegre.  O final da década de setenta, deste século, foi marcado por uma fase crítica nessa disputa. Aguçaram-se os conflitos entre índios e brancos. Nessa ocasião, a Fundação Nacional do Índio- FUNAI reconheceu a necessidade de intervir, procedendo a retirada dos chamados invasores que habitavam o Alto Alegre e o Centro do Meio. O povoado São Pedro dos Cacetes permaneceu no local e esse fato continuou a gerar contínuos conflitos, que parecem ter atingido seu clímax no início dos anos 90. Dois acontecimentos favoreceram o acirramento dessa disputa secular. Um deles foi a demarcação da terra indígena, em 1977, ato que reafirmou a legalidade da posse dos Tentehar com relação à área; o outro foi a proposta de elevação do povoado de São Pedro dos Cacetes à categoria de município, constante do art. 48 do Ato das Disposições transitórias da Constituinte estadual de 1989. A retirada do povoado do Alto Alegre ocorreu em 1981. A do São Pedro dos Cacetes, que deveria ter ocorrido, também em 1981, só foi efetivada no ano de 1996. Foram portanto cerca de 26 anos de disputa pela posse da terra, disputa essa marcada pela ação de grupos culturalmente diferenciados, que assumiu diferentes contornos ao longo do tempo.

KAWIRÉ IMÀN

Possuía um nome em português, João Manuel Pereira da Silva. Era conhecido regionalmente como João Caboré. Nasceu na região da atual terra indígena Canabrava, no Maranhão.

Kawiré Imàn ocupa um lugar de destaque entre o povo Tentehar/Guajajara[1]. Há referências de que ele teria recebido do então governador do Maranhão, João Gualberto Torreão da Costa, o título de nomeação para o cargo de chefe supremo dos Tentehar. Segundo Cruz (1982, p. 33)

Caiuré recebeu esse título do governador que também lhe deu armas: espingardas, rifles e munições de pólvora, chumbo e espoleta, inclusive uma pequena máquina de fazer balas e cartuchos, além de tesouras, facas, canivetes, facões e serrotes pequenos; ele recebeu também alguma ferramenta de lavoura, roupas feitas e outras cousas do agrado dos índios.

Essa visita ao govenador foi realizada após Caiuré ter sofrido violências por parte dos frades capuchinhos que desde 1896dirigiam a Missão do Alto Alegre, (Colônia São José da Provincia do Alto Alegre) situada em terras Tenethar. O objetivo da visita era relatar os maus tratos sofridos e pedir apoio do governo.

Mas seu reconhecimento como grande liderança deve-se, especialmente, ao seu protagonismo na revolta que foi divulgada pelos brancos como “Massacre do Alto Alegre”, e pelos Tentehar/ Guajajara como “tempo do Alto Alegre”. O conflito do Alto Alegre costuma ser designado como a ocorrência mais violenta nas relações entre Tentehar e brancos na região. Darcy Ribeiro, citando Fores de Abreu (1979, p.124) assim descreve esse acontecimento:

Em 1901, cinco padres franciscanos e nove freiras que dirigiam uma missão de catequese dos índios Guajajara, em Alto Alegre, Município de Barra do Corda no maranhão, foram trucidados pelos índios revoltados com a separação de pais e filhos, moças e rapazes. A represália imediata, contra inocentes e culpados, revestiu-se de requintes de crueldade da parte de sertanejos e índios Canelas, para isto aliciados. Vinte anos depois, os índios remanescentes da missão de Alto Alegre ainda escondiam sua identidade, apavorados com o que lhes poderia suceder, se fossem descobertos.

No entanto, o fato apontado, pelos Tentehar/Guajajara, como deflagrador do ataque foi a prisão de Caiuré, que havia sido acusado pelos frades de bigamia. Os frades eram contra a poligamia, assim como ao casamento não abençoado pelo ritual católico e encaravam esses costumes como escandalosos.

Gomes (1977, p.47) descreve que Caiuré, como punição pela bigamia, ficou 4 semanas acorrentado, ora pelos braços, ora pelos pés, ora pelo pescoço. Um Tentehar, morador da aldeia Coquinho, situada na terra indígena Canabrava, confirmou a descrição de Gomes sobre a prisão:

O padre disse: vem cachorro, agora que tu vem chegando heim? Aqui se conta que você tem outra mulher, sendo casado no pé do padre? Ele não negou, disse: sim senhor, tenho sim senhor. Ai o padre chamou o Atanásio e disse: Atanásio pega aquela corda acolá, traz aqui. Lá o Atanásio traz a corda e ele manda passar na cumieira da casa. O Caboré, agarram ele, viraram a cabeça de capitão Caboré pra baixo e o papo pra cima e botaram um tamborete pra encostar a cabeça dele. Passou o resto do dia dependurado, aquela noite e no dia seguinte foi que soltou, ficou lá, tava todo inchado, por que tava de cabeça pra baixo, o sangue desceu todo pra cabeça” (entrevista, em 1980).

Esse mesmo episódio foi descrito numa publicação de Santos et ali (1991, p.30), apontado como sendo a causa imediata que teria levado ao ataque:

Caboré soube que sua mulher Lúcia havia sido expulsa do Alto Alegre. Lúcia era sua segunda esposa. Ocorre que, anteriormente, ele havia casado, segundo os preceitos da Igreja Católica, com uma brasileira e os frades não aceitavam a poligamia, natural entre os índios. Como Caboré insistisse em continuar com Lúcia, foi preso por alguns dias em um quarto, acorrentado ora pelos pés, ora pelos braços, ora pelo pescoço. Ao ser posto em liberdade, Caboré prometeu vingar-se, iniciando contatos com vários líderes indígenas para conseguir adeptos ao seu plano.

Os Tentehar se referem a prisão de Caiuré como violenta. O tratamento humilhante que este teria recebido dos frades e dos policiais, expressou para os Tentehar a forma desrespeitosa com que eram tratados pelos brancos. Caiuré era uma liderança respeitada pelo seu povo. Sua prisão indicou a violência da interferência dos frades nos seus hábitos e costumes.

A versão dos Tentehar para o ataque inclui também o apoio que teriam recebido do governo estadual para efetuarem as mortes. Segundo informam, após ser libertado da prisão, Caboré teria ido à São Luís fazer queixas ao governo, relativas às ações dos frades. Ao retornar para a aldeia, arregimentou índios que tinham filhos no internato dos frades, buscando apoio para executar o ataque. A sugestão de matar os frades, segundo depoimentos de alguns Tentehar, teria partido do próprio governo:

Aí o governo disse: capitão Caboré, o único meio sabe o que é? É você assassinar esses capuchinhos, mas não mexa com as irmãs, deixe as irmãs, deixe as moças cristãs, o sacristão não mexa, só eles”. (entrevista, em 1980)

Para Gomes (1977) não ficou claro como João Caboré e Manuel Justino, os dois Tentehar que foram acusados como líderes da revolta, teriam organizado tantas pessoas e planejado o ataque. Na sua opinião, os documentos não são suficientes para que se perceba que tipo de aliança eles teriam feito para obter suporte para tal empreitada. A acusação judicial contra os Tentehar aponta o envolvimento de 34 nomes e seis aldeias. Gomes considera possível que todas as aldeias da região que fica entre o alto-Mearim e o Alto Grajaú e, mesmo as do alto Zutiua, estivessem envolvidas no ataque e levanta a possibilidade de existirem índios timbira envolvidos, porque parte deles também tinha filhos no internato. Por outro lado, refere-se também a chefes de famílias Tentehar que, não concordando com a proposta do ataque teriam abandonado suas aldeias, antes que ele se concretizasse.

Um incidente também é relatado como tendo precipitado o denominado massacre. Em janeiro de 1901 houve uma epidemia de sarampo no internato e, de 84 meninos e 22 meninas do colégio, 28 e 22 morreram, em meio aos gritos de desespero de suas mães.

O discurso de Caiuré é assim reproduzido por Cruz (1982 p.43):

Não era mais possível, disse Cauiré, aturar tanto abuso praticado pelo pessoal da missão estrangeira que queria escravizar a todos, pois responsáveis pela catequese- frades, freiras e professores- enfim, todos os residentes ali, que não os da sua raça, queiram enfim, todos os residentes ali, que não os de sua raça, queriam encaixar nas cabeças dos índios que deviam levar a vida de outra maneira e não com eram ou deveriam ser. Eles queriam tudo ao contrário do que a tribo queria. Não podiam mais possuir três ou quatro mulheres, queriam mudar a língua, mediante a obrigação da leitura dos livros deles que só tinham de bonito algumas figuras. Além disso, ainda pretendiam mudar os costumes. Diziam que os índios não eram mais os legítimos donos das terras em que moravam. Certas pessoas constavam que as indiazinhas que adoeceram no Internato, teriam morrido envenenadas. As mesmas foram sepultadas sem a presença dos pais, privadas do ritual das tradições e crenças. O perigo (…) não se estendia somente à sua taba e outras vizinhas; também ameaçava todas as que ficavam ao longo do Mearim, Grajaú e Pindaré ou até mesmo para as mais distantes.

É importante destacar que a Missão do Alto Alegre não foi a primeira a se instalar naquela região[2]. Já havia a experiência, negativa para os Tentehar, da colônia Dous Braços que embora não tenha assumido as proporções trágicas do Alto Alegre, onde o conflito se transformou em guerra, ficou negativamente registrada na memória dos desse povo.

A colônia indígena, Dous Braços, foi instalada, em 1874, com o objetivo de reunir os Tentehar, que viviam em aldeamentos distantes uns dos outros e chamá-los “ao trabalho comum e aos hábitos sociais”. Um incidente ocorrido durante a gestão do diretor frei Antonino de Reschio é ilustrativo de como os frades tratavam os Tentehar. Em outubro de 1879, após manter três Tentehar presos por solicitação do diretor da colônia, o delegado de polícia de Barra do Corda soltou-os e mandou-os apresentarem-se ao referido diretor, que se encontrava na cidade. O frade não gostou da ação do delegado e prestou queixas ao chefe de polícia da província que, por seu lado, pediu explicações ao delegado. Em resposta ao chefe de polícia, o delegado assim se pronunciou:

“Eis a minha falta, se falta houve em não querer segundar o revdmo. Capuchinho na perseguição e no massacre das suas vítimas, procedimento este incompatível com o caráter paternal e evangélico de quem deve estar revestido como frade e como director de uma colônia de índios” (Of. do delegado de polícia de Barra do Corda ao chefe de polícia interino da província, 07.12.1879).

Desgostosos com o sistema implantado na colônia os Tentehar foram, aos poucos, fugindo enquanto outros foram sendo expulsos por indisciplina. A indisciplina e as fugas representavam a guerra simbólica deflagrada pelos Tentehar.

A memória de um Tentehar, já falecido, mas em 1998 tinha 83 anos e vivia na aldeia Colônia, é repleta de episódios dos tempos da colônia Dous Braços, que ele chama, simplesmente, “colonha”. Suas recordações se baseiam, principalmente, nas narrativas feitas pelo seu pai. Ele lembra da polícia indígena, instituída pelo diretor frei José, para prender índios que se afastavam da colônia, por qualquer motivo, até mesmo para caçar ou pescar. A imagem do frei José construída por esse senhor é bastante desfavorável. Para ele, uma das piores coisas da colônia era a obrigação de participar dos trabalhos, mesmo contra a vontade:

Foto de Silvaninho Guajajara (Aldeia Colonia 1998). Fonte: acervo da pesquisadora

Ele castigava também. O pessoal acharam bom ele ir embora daqui porque o pessoal nunca disseram, mas eu tô sabendo porque o meu pai contava, porque ele mandava, aquele que não queria ouvir, ele obrigava, pegavam ele, amarravam e traziam. Ele num queria deixar a aldeia dele então era obrigado ele vir, os pessoal obrigavam. Tinha soldado indígena aí prá ir buscar os outros. (Cacique da aldeia Colônia, entrevista em out.98)

 O frade mandava prender aquele que resistisse à catequese e ao trabalho da lavoura, assim como mandava arrebanhar aqueles que se encontrassem escondidos pela mata. Esses fatos marcaram profundamente a relação entre os Tentehar e a sociedade nacional e foram reproduzidos com a experiência da missão do Alto Alegre.

Caiuré destacou-se por dar uma dimensão coletiva a sua luta. Diante das perseguições e maus tratos que sofreu, decidiu lutar contra o processo de catequese que vinha sendo executado pelos capuchinhos, que transcendia as questões religiosas e afetava toda vida dos Tentehar.

O Jornal A Turma da Barra assim descreveu a ação de arregimentar seu povo, efetivada por Caiuré:

Caboré convoca todos a marchar contra a povoação de Alto Alegre e suas redondezas e matar a gente que não pertencia à tribo Guajajara. Como visto, no discurso de Caboré, ele utiliza de elementos de falha dos frades no seu processo de catequização, o sentimento etnocêntrico destes, toca na questão da invasão das terras após a chegada dos missionários, também cita outros problemas que estavam a desagradar várias aldeias, tudo para instigar a animosidade já existente dos índios em relação aos frades. Ele, se utilizando da renegação da cultura indígena pelos frades, vem a favor da proteção aos costumes Guajajaras conclamando todos a se levantarem contra os brancos. Naquela noite os índios cantam e dançam ao redor da fogueira, excitados pelo som dos maracás, sons típicos de uma vigília de guerra, alcoolizados, os índios preparam-se para o ataque a São José da Providência. (http://turmadabarra.com/histo6.htm 04.02.18)

A saga de Caiuré, por sua importância, foi tema de filme, de trabalhos acadêmicos e de livro documentário. Em sua monografia de conclusão de Licenciatura em História pela UEMA Guedelha, descreve Caiuré como um dos mais bravos guerreiros da tribo:

….. criado por uma família de brancos, posteriormente passa a viver entre os seus e a habitar a colônia de São José da Providência, ele lidera o bem planejado ataque à colônia, após algumas desavenças com os frades. O Caboré nasceu nas grandes florestas da Serra Branca, mais precisamente na aldeia do Jacaré. Ainda criança foi recolhido por uma distinta família de Barra do Corda, os Rodrigues. Desde jovem mostrava-se ativo e inteligente, despertando cedo o desejo pela vida errante nas florestas, partindo para junto dos seus aos doze anos de idade. Tornou-se em pouco tempo um dos mais bravos guerreiros da tribo Guajajara, sendo admirado e respeitado por todos (http://turmadabarra.com/histo6.htm 04.02.18, consultado em 22.02.18)

Cruz (1982), no livro que publicou intitulado Cauiré Imana, o cacique rebelde, descreve Caiuré como um tuxaua valente, astuto. Afirma que na época do “massacre” ele teria cerca de 40 anos. O mesmo autor faz referência a um sonho que Caiuré relatou aos demais Tentehar que o seguiam em uma expedição de caça. Este sonho expressa o desejo de Cauiré lutar contra o que considerava ser o extermínio de seu povo:

Contou então Cauiré que essa viagem fazia parte do plano de libertação da sua raça, ameaçada de ser escrava. Ele precisava lutar contra o extermínio. Precisava lutar para afastar de suas terras aquele bando de invasores que lá estava se apoderando de tudo o que era dos índios, somente deles. (CRUZ, 1982, p. 29)

As Edições do Senado Federal publicaram o livro intitulado O Massacre do Alto Alegre, do Padre Bartolomeo da Monza, traduzido por Sebastião Moreira Duarte. No prefácio que fez para publicação desse livro, o jornalista Antonio Carlos Lima, natural de Barra do Corda, referiu-se ao medo que marcava a relação dos brancos com os índios:

O medo dos índios foi um sentimento que perdurou. Minha primeira lembrança é de olhar, pela fresta da porta de minha casa, a fila de índios que entrava em Pinheiro, enquanto todos se escondiam e fechavam suas casas e minha mãe nos chamava para dentro. Mas eles vinham em paz, para buscar mantimentos, como sempre faziam quando a caça e a coleta dos produtos florestais escasseavam.

Segundo Gomes (1977, p.52) uma das principais consequências do “tempo do Alto Alegre” foi deter o processo de perda da terra pelos Tentehar. Esse processo estava em ascensão, na medida em que um número crescente de camponeses brasileiros imigrava para essa região e iam ocupando as terras dos Tentehar. Com o clima de animosidade criado, ou pelo menos a suspeita da cobiça dos brasileiros, os Tentehar tiveram condições de formar uma ideologia de uma frente unida do tipo nós contra os brasileiros.

O “tempo do Alto Alegre” marcou as relações entre Tentehar e brancos no Maranhão, inclusive devido a forma como foi explorado pela Igreja. Até os dias atuais podem ser observados, nas paredes da Igreja de Barra do Corda, retratos das freiras e dos frades que foram mortos no conflito, que são cultuados como os mártires.

Fonte: Acervo da pesquisadora

Após o chamado “massacre do Alto Alegre” a repressão aos Tentehar foi violenta. Eles permaneceram no Alto Alegre e lutaram contra dois ataques policiais oriundos de Barra do Corda. Embora não haja registro da quantidade de mortos, sabe-se que foram muitos, entre Tenethar, policiais e índios canela (GOMES, 1977). Os canelas haviam sido recrutados para auxiliar na repressão e conseguiram romper o cerco Tenethar[3]. Nessa ocasião os Tentehar se dispersaram, porém cerca de cinco anos depois, grande parte dos que haviam fugido retornou aos seus locais de origem.

O retorno dos aos locais de origem demonstrou a necessidade de retomar suas vidas no local que entendiam como seu território. A animosidade entre Tentehar e brasileiros permanece até hoje, ocasionando freqüentes conflitos.

João Caboré foi preso no final de maio, juntamente com os outros líderes da rebelião, na cadeia de Barra do Corda. Faleceu a 13 de novembro de 1901, oficialmente vitimado pelas febres paludes. Entretanto, há polêmica sobre sua morte, pois suspeita-se que ele morreu pelos maus tratos sofridos na cadeia.

Cruz (1982, p.92) é partidário da versão de que Caiuré sofreu maus tratos na prisão. Afirma que foi instaurado um inquérito, sendo Caiuré o primeiro a ser ouvido nos longos interrogatórios, e o mais acusado, por ser considerado o cabeça do movimento.

Já condenado, depois de mais de dois anos o chefe guajajara, com o corpo todo inchado e as faces arrocheadas, pelas servícias, não resistiu e morreu na cadeia pública da cidade, no suspiro de um deus vencido

O “Massacre do Alto Alegre” foi tema de um filme produzido por Murilo Santos.  No Blog Olhar panorâmico pode ser lido o comentário abaixo sobre o filme:

Domingo, 13 de março de 1901. O dia amanhece em Alto Alegre e o sino da capela anuncia a missa das seis horas. Na igreja estão reunidos os frades, as freiras, famílias de trabalhadores da Missão Capuchinha e as meninas do internato, a maioria índias. No instante em que o padre que conduz a celebração ergue a hóstia, uma flecha lhe atravessa o corpo. Dezenas de índios, armados de espingardas, flechas e facões, assaltam a igreja e, logo depois, as residências do povoado, matando cerca de 200 pessoas.

O incidente em Alto Alegre ficou conhecido como o maior massacre de brancos praticado por índios em toda a história do Brasil, muito embora, na represália que se seguiu, os brancos tenham exterminado aproximadamente 400 índios.

O documentário “O massacre de Alto Alegre“, de Murilo Santos, que será exibido hoje, às 23 horas, pela Rede Pública de Televisão, dentro do Programa DocTv II, procura refletir sobre a violência física e simbólica contra o povo Tentehar/Guajajara, perpetrada pelo estado brasileiro, que acreditava na ação civilizatória da Igreja Católica para integrar os chamados selvagens à vida nacional. Um massacre que se origina na intolerância cultural e religiosa, no etnocentrismo, na suposta superioridade da cultura branco-cristã. Um massacre decorrente do desrespeito à diversidade cultural, em um momento em que o estado brasileiro se consolida, ancorado nas idéias de ordem e de progresso. Embora as conjunturas históricas tenham variado, nas relações entre brancos e Tentehar/Guajajara permanecem os fundamentos da intolerância, fazendo com que as marcas do conflito de alto Alegre se façam sentir até hoje na região de Barra do Corda, no Estado do Maranhão. (http://olharpanoramico.blogspot.com.br/2006/04/o-massacrede-alto-alegre.html)

O cartaz de divulgação do referido filme, disponível na internet, traz em destaque o personagem Caiuré, com o corpo pintado de genipapo.

Cartaz de divulgação do filme O massacre de Alto Alegre,
Fonte http://omassacredealtoalegre.nafoto.net/photo20060413203012.htm  acessado em 04.02.18

As repercussões desse episódio podem ser percebidas pela ampla divulgação que obteve. Ao digitar “Massacre do Alto Alegre” no Google, inúmeras páginas e links estão disponíveis com informações sobre o ocorrido. Em Barra do Corda, a cada ano, no dia 13 de março, os frades capuchinhos celebram a memória daqueles que denominam os mártires de massacre. Nas aldeias Tentehar da Terra Indígena Canabrava as novas gerações cultuam a memória do grande líder, responsável em grande medida pela continuidade do povo Tentehar.

Referências

CRUZ, O.Cauiré Imana, o cacique rebelde. Brasília: Thesaurus, 1982.

GUEDELHA, M. S. Massacre do alto alegre: benção e dor, fé e sangue no sertão maranhense. Monografia de conclusão do curso de Licenciatura em História na Universidade Estadual do Maranhão/UEMA.

RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1979.

SANTOS, P.B. et ali. O massacre de Alto Alegre. São Luís: IPES, 1991

Notas

[1] Tentehar é a autodesignação que significa o ser verdadeiro. Guajajara é o termo utilizado pelos brancos para designar esse povo e que tem sido utilizado também pelos Tentehar, especialmente os mais jovens.

[2] A presença dos franciscanos no Maranhão remonta à chegada dos franceses, em 1612. Primeiro vieram Claude d’Abeville e Yves d’Evreux. Exerceram seu trabalho de catequese acima de qualquer injunção estatal, até serem expulsos, juntamente com outras ordens, pelo marques de Pombal. No século XIX, pelos anos 20 e 30 reuniram alguns povos indígenas em missões. Na década de 40 vieram, por solicitação do governo, evangelizar o interior da província. Até meados dos anos 80 estiveram , de forma isolada dirigindo algumas colônias indígenas e diretorias parciais, a rogo do governo provincial.

[3] Segundo William Crocker, antropólogo americano que estudou os canela por mais de 20 anos, esses índios não tinham nenhuma historia anterior de guerra com os Tentehar. No entanto, alguns documentos que consultei referem-se aos canela como tradicionais inimigos dos Tentehar.

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