biografia

Diacuí Aiute Kalapalo

Autor(es): Bruna Lacerda de Souza
Biografado: Diacuí Kalapalo
Nascimento: 1933
Morte: 1953
Povo indígena: Kalapalo
Terra indígena: Alto Xingu
Estado: Mato Grosso
Categorias:Biografia, Kalapalo, Estado, Mato Grosso
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Diacuí Aiute Kalapalo foi uma indígena pertencente ao povo Kalapalo, do tronco linguístico karib, que historicamente ocupava a região do Alto Xingu, localizado no estado de Mato Grosso. Baseado nos relatos de Ayres Câmara Cunha1, acredita-se que Diacuí tenha nascido por volta do ano de 1933, sendo considerada a mais linda de todas as mulheres Kalapalo. Foi classificada referência de beleza, inclusive, nos padrões ocidentais da sociedade brasileira, e razão da comunhão nacional durante a década de 1950 por conta de seu relacionamento amoroso com o sertanista2 Ayres Câmara Cunha, participante da expedição Roncador-Xingu.

Graças a expedição conheceu Diacuí na aldeia de seu grupo durante a adolescência dela, mais precisamente quando tinha 13 anos, durante uma das visitas dos sertanistas à aldeia dos Kalapalo no ano de 1946. Independente da grande comoção midiática que o enlace tenha despertado nas massas, Diacuí era uma figura muito importante entre o seu grupo, filha de um cacique, Nahuquá, com uma indígena Kalapalo de nome Apacu3. Teve seu processo de formação da pessoa4 interferido por Ayres quando este chegou pela primeira vez à aldeia de Diacuí, acontece que fazia parte dos ritos dos Kalapalo isolar os sujeitos que estivessem na fase da puberdade com a intenção de preservar o indivíduo e, principalmente, toda a comunidade. Segundo a crença dos indígenas, se houvesse interferência nesta etapa grandes consequências seriam sentidas no seio do grupo, pois, a corporalidade é mecanismo essencial para a garantia da formação do ethos grupal.

Sobre Diacuí temos poucas informações contundentes, isso por conta da maneira em que o conhecimento é transferido entre os indígenas. Enquanto que para as sociedades ocidentais, a escrita é a principal maneira de transferir os valores da sociedade, para os Kalapalo a cessão do dom, através do uso da oralidade, e a contação de história é o modelo central de educação dos indivíduos5. Grande parte das informações que temos sobre a indígena provém, essencialmente, dos livros escritos por Ayres em que cita o seu relacionamento e as reportagens produzidas pela mídia do Rio de Janeiro. Quando tratamos dos materiais citados podemos apontar que a construção do que foi Diacuí e significou passa pela perspectiva não-ameríndia e o que sabemos sofre influência da percepção cultural.

Isso não desqualifica a representação de Diacuí na História, a presença de sua figura vai além da sua constituição subjetiva, ela simbolizou o projeto utópico de Brasil ideal para a década de 50 baseado na miscigenação racial. O modelo de brasilidade estaria respaldado na união do homem branco com a indígena, no caso, eles serviriam de exemplo para o restante do povo de que a mistura de raças não era um fator degenerativo e sim particularidade a ver valorizada na constituição étnica do brasileiro, uma espécie de privilégio e comunhão das raças que existiria somente aqui. Vários intérpretes do Brasil convergiam e desenvolveram esse pensamento social, um exemplo é o sociólogo Gilberto Freyre que, com destaque à Casa-grande & Senzala, atribuía ser muito comum o envolvimento sexual de indígenas com os colonos pelo fato de haver pouca oferta de mulheres brancas. Em consequência, o resultado foi a formação particular do povo brasileiro representado na figura do mestiço que reunia as melhores qualidades do português com o indígena6.

Outro aspecto que contribui para a falta de documentação em que a própria Diacuí seja autora se dá por condições de gênero, racialidade e etnicidade na década de 1950. Importante lembrar que, o indígena valorizado era o “índio imaginário”, logo, esses grupos continuavam sendo considerados inferiores e atrasados, carecendo do homem branco como uma espécie de mestre que os guiaria até o encontro com o estado civilizado. Por isso, o poder tutelar foi de grande relevância para a manutenção do controle do Estado sobre as configurações culturais e territoriais dos indígenas, pois, desse modo, desejava-se tornar-los trabalhadores nacionais que estimassem os valores da brasilidade abrindo mão das suas respectivas particularidades étnicas e, posteriormente, seriam integrados à sociedade7.

 

Fonte: Diário da Noite (RJ)8

 

Embutido a isso estão manifestações controvérsias sobre Diacuí que a ridicularizavam, com ênfase a sua aparência física. Guzmán, em seu estudo sobre a Kalapalo, cita a passagem do jornal A nossa opinião em que diz:

Diacuí é, sem dúvida, um tipo de beleza indígena. Todos viram sua plástica, quando foram publicadas as primeiras fotografias, ao natural, sem tanga, nem nada. Falando francamente, temos que reconhecer que não agradou. E os que leram os nossos indianistas ficaram desencantados. Então, era […] assim […] Iracema? A falta de harmonia do conjunto, certa obesidade e a flacidez dos tecidos serão compatíveis com as idéias que muitos faziam da virgem dos lábios de mel? O Guerreiro Branco ter-se-ia apaixonado por uma índia sem elasticidade, cujo passo molengo e pesado não lembra absolutamente um raio de luar deslisando pela grama? Diacuí, pelo jeito, veio golpear de morte o encantamento de uma lenda nacional. Talvez para salvar a tradição romântica de Alencar, tenham apressadamente vestido a filha dos Kalapalos. Salões de beleza, cabeleireiros, modistas, tudo foi mobilizado. Mas não adiantou. Diacuí matou Iracema9.

Ysani Kalapalo, sobrinha-neta de Diacuí, em um vídeo para o seu canal do YouTube10 descreve a relação de sua parente com o sertanista de forma romantizada e a partir de uma perspectiva que pode ser considerada conversadora. Ela admite que Diauí, ao início, sentia medo de Ayres no início do contato, mas com o tempo se apaixonou por ele. Ressaltou que não acreditava nas críticas que o sertanista recebia de interesseiro e lembrou da enorme curiosidade da imprensa nacional sobre a relação.

 

Fonte: Diário da Noite (RJ)11.

 

Entretanto, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e seus técnicos não aprovaram a união fazendo com que o enlace se tornasse um dos principais assuntos na capital do país.

Uma ala do governo democrático de Vargas defendia a concretização do casamento sob o argumento de que os etnólogos eram guiados pelas ideias de Gobineau e a realização do casamento era possível por conta do Direito Natural. Já o SPI argumentava ser imprópria a união por Diacuí não estar apta a ser integrada à sociedade e que Ayres era um aproveitador. O impacto de Diacuí na cultura nacional foi tão forte que Ayres escreveu livros sobre a indígena, seu povo e a relação dos dois – A História da Índia Diacuí e Entre os Índios do Xingu – música – Índia Diacuí de José Fortuna e Pitangueira – e teve sua história comparada a uma novela por Ulysses Guimarães12.

 

Notas

1 CUNHA, Ayres Câmara. A História da Índia Diacuí. São Paulo: Clube do Livro, 1976, p. 38.

2 Vale ressaltar que, o título de sertanista atribuído à Ayres gerava grandes controvérsias, assim conhecido nas manchetes sensacionalistas que saíam na imprensa carioca. Todavia, o famoso indigenista Orlando Villas-Boas, em entrevista à Folha de São Paulo disse que não entendia o motivo pelo qual Cunha havia sido considerado sertanista, já que sua tarefa era de auxiliar os sertanistas na cozinha e na farmácia. Ver SÁ, Xico. Governo faz homenagem a branco que casou com índias nos anos 50. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 fev. 1996. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/2/20/brasil/23.html>. Acesso em: 07 jun. 2022.

3 CUNHA, op. cit., p. 44.

4 SEEGER, Anthony; DAMATTA, Roberto; CASTRO, Viveiros de. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, mai. 1979, p. 2. Disponível em: <http://www.ppgasmn-ufrj.com/uploads/2/7/2/8/27281669/boletim_do_museu_nacional_32.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2022.

5 Ver FRANCHETTO, Bruna. O aparecimento dos caraíba: para uma história kuikuro e alto-xinguana. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. Disponível em:<http://etnolinguistica.wdfiles.com/local–files/hist%3Ap339-356/p339-356_Franchetto_O_aparecimento_dos_c araiba.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2022;

Ver também CARVALHO, Verônica Monachini; MACIEL, Lucas da Costa. O quê e o como aprender, as crianças Kalapalo e algumas problematizações em torno do conhecimento. R@U – Revista Antropologia da UFSCAR, São Carlos: São Paulo, v. 11, n. 1, jan./jun. 2019. Disponível em:<https://www.rau2.ufscar.br/index.php/rau/article/view/276/243>. Acesso em: 07 jun.2022.

6 REIS, José Carlos. Anos 1930: Gilberto Freyre. O reelogio da colonização portuguesa. In:              . As identidades do Brasil 1: De Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 77-107.

7 SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos   XX   –   XXI,   Mana,   Rio   de   Janeiro,   v.   21,   n.   2,   ago.   2015,   p.   437.   Disponível   em:<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132015000200425>. Acesso em: 09 jun. 2022.

8 COMUNHÃO Nacional. Diário da Noite (RJ), Rio de Janeiro, p. 1, 21 out. 1952. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_03&Pesq=comunh%c3%a3o%20nacional&pag>. Acesso em: 09 jun. 2022.

9 DEVINE GUZMÁN, Tracy L. ‘Diacuí Killed Iracema’: Indigenism, Nationalism and the Struggle for Brazilianness. Bulletin of Latin American Research, v. 24, n. 1, p. 92-122, 2005. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/27733716?seq=1>. Acesso em: 09 jun. 2022, p. 113.

10        KALAPALO,           Ysani.           Amor           entre          india          e          branco.          Disponível          em:<https://www.youtube.com/watch?v=YxDlGeJQs54>. Acesso em: 09 jun. 2022.

11 GURGEL, Romildo. O casamento do sertanista com a índia. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 21 out. 1952. 1ª Seção,     p.                                                   6.                                       Disponível                       em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=221961_03&Pesq=Diacu%c3%ad&pagfis=23434>         . Acesso em: 09 jun. 2022.

12 MORENO, José Bastos. A história de Mora: Xingu, amor e maldição. O Globo, Rio de Janeiro, 07 abr. 2012. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/a-historia-de-mora-xingu-amor-maldicao-4520385>. Acesso em: 09 jun. 2022.

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