biografia
Izabel Ka’taga Arara
Autor(es): Jandira Keppi
Biografado: Izabel Ka’taga Arara
Povo indígena: Arara
Terra indígena: Aldeia Samaúma/ Aldeia Xerek Ka.
Estado: Rondônia
Categorias:Etnias, Arara, Biografia
Tags:Arara, Feminino, Rondônia
Muitos Arara
Sou filha de Paroyokâp (pai) e Yora’ap (mãe). Nasci na aldeia Samaúma, no rumo de Alquideia. Também morei na aldeia Xerek Ka. Nesse lugar uma onça matou meu pai. Ele ia para uma outra maloca chamada Samaúma buscar banana. Quatro mulheres foram com ele. A onça deixou todas as mulheres passar. Ele era o derradeiro. Então a onça pegou meu pai. Ele gritou, gritou até a onça matá-lo. Eu tinha uns dez anos. Nesta época ainda tinha muito Arara morando na aldeia, mais do que Gavião. Até Nova Colina era terra dos Arara. Nós chamamos este lugar Xa’tût Pap. Só andavam índios por aqui. Tinha Suruí que atacavam a gente. Não tinha branco. Meu marido já morava aqui onde hoje é Iterap, chamamos Yamoraxû nesta época. As famílias andavam entre aldeias, buscando frutas, bananas, mamão. Tinha muita roça espalhada por aí.
Os Arara se visitavam muito, uns convidavam os outros para beber mingau de macaxeira ralada, de milho, mingau de banana, comer macaxeira assada e cozida. A gente comia carne pisada e sopa de peixe. Nesta época não tinha sal e açúcar, só depois nos acostumamos com isso. A gente adoçava com batata. Foi um tempo bom. As pessoas ficavam velhas, não tinha doença, não tinha gripe, nem nada. As pessoas morriam de velhice, a gente ainda não comia como os brancos. Um grupo morava na boca do Igarapé Lurdes e os brancos foram lá pegar Arara para trabalhar para eles. Mas alguns Arara conseguiram fugir de volta. Aí um branco matou um Arara e os Arara mataram os brancos com espingardas e flechas com a ajuda dos índios Urubu. Os brancos foram para a aldeia e todos morreram porque os Arara mataram eles. Os brancos iam atacar os Arara e não voltavam mais. Mas os índios Urubu também mataram muito branco.
Presentes e doenças
A gente andava com o grupo entre as aldeias e ainda não usava roupas. O Barros dava roupas para nós em troca da gente limpar mandioca para fazer farinha. Mas a gente achava muito quente e jogava fora, dava coceira. O Barros era bom. Ele ensinou a gente a plantar caroço de manga. Ele dava as coisas para nós, dava machado e não deixava os brancos mexerem com a gente. O Barros também dava mel de cana, laranja, melancia e goiaba, mas a gente não gostava de melancia porque achava que tinha um cheiro ruim. O seringal era lá no Santa Maria. Lá a gente encontrou farinha, ainda não conhecíamos farinha.
Quando conhecemos o branco, logo veio a gripe. Depois da gripe veio o sarampo e matou muito gente. Eu peguei sarampo. No mesmo dia morria muito gente, muitas crianças. Minha mãe também morreu de sarampo. Não tinha como tratar. Às vezes morria tanta gente que era enterrada uma por cima da outra.
Marido
Meu primeiro marido foi o Napok. Napok tinha duas mulheres. A outra mulher, Catanhede vive hoje com um branco que mora na aldeia Gavião. Ela teve 4 filhos com Napok. Ele já era casado quando eu me casei com ele. Eu não queria casar com ele. Depois que minha mãe morreu, meu padrasto me deixou para casar com Napok. Meu padrasto me trocou pela irmã de Napok. Ela ainda era pequena e faleceu de sarampo antes de chegar o tempo de se casar com meu padrasto.
Me casei lá no seringal Urupá, do Urira (Pedro Lira). Ele era muito ruim para nós. Andava armado com revólver. Fazia medo pra poder pegar as mulheres na marra. Aí nós fugimos de lá, passamos por JiParaná (atual) e viemos por dentro do mato ou pela beira do rio Machado e varamos até o Santa Maria.
Tive uma filha e um filho com Napok. O filho foi assassinado na fazenda do Mario Piloto em 1997. Houve uma briga entre brancos e ele foi apartar e acabou sendo assassinado a facadas. Nada aconteceu com o assassino. Napok morreu quando os filhos ainda eram pequenos. O pajé que matou. Ele chegou em casa com febre e sangue saindo pela boca e aí morreu.
Na aldeia Mamão, perto do Igarapé Lurdes, me casei com Paulo. Não tive filhos com ele. Ele criou os meus dois filhos como se fossem dele.
Antigamente e hoje
Antigamente um pajé podia matar pelos espíritos maus. Eles depois mataram o pajé. Pajés podem estar com espírito bom ou com espírito mau. Os pajés Urubu mataram muitos Arara. A pessoa estava boazinha e morria de repente. Os pajés Urubu contavam que matavam Arara. Eles jogavam morte nos Arara. Por isso os Arara também matavam os Urubu.
Antigamente era melhor, porque a gente não adoecia tanto, agora todos pegam doença.
Antigamente os jovens não saíam de casa à noite. A gente tinha medo de pisar numa cobra. O pajé não quer que andem de noite para não encontrar espírito mau, mas eles andam assim mesmo. Eles não escutam e não acreditam nisso. Eles acostumaram com o branco. Antigamente qualquer coisa que o pajé falava, a gente respeitava por que tinha medo. Hoje os jovens ficam fora toda noite, rindo, falando, usando internet da escola. Agora essa molecada não respeita mais nada, só estão no celular.
Gavião
Quando os Gavião nos atacaram, eu tinha uns dez anos, morava no rumo do Igarapé Lurdes. Os Gavião se pintaram com urucum e falaram que iam lá para os brancos. Mas não foram. Dormiram na nossa aldeia. Em cada maloca dormiu um Gavião. Tinha uma maloca grande e outras pequenas. Eu ficava na grande. Quando todos estavam dormindo, eles nos atacaram com espingarda. Eles mataram 7 pessoas: seis homens e uma mulher que estava deitada na rede com seu marido. Uma criança e uma mulher foram atingidas. Minha mãe me acordou e nós fugimos pelo buraco da maloca para o mato. De noite mesmo os Gavião foram embora gritando. Eles levaram a Antônia e seu pequeno irmão juntos e mataram o bebezinho de Antônia. Mais tarde, Antônia e seu irmão conseguiram fugir da aldeia dos Gavião e voltaram para a nossa maloca.
Os Gavião nos atacaram por causa de uma fofoca de uma mulher Gavião que falava um pouco Arara. Ela falou para os Gavião que os Arara não gostavam que eles ficavam passando por nossa aldeia para chegar até onde estavam os brancos. Isso podia trazer muita doença para os Arara. Por isso os Gavião atacaram os Arara. Os Arara queriam fazer as pazes com os Gavião para depois atacá-los de surpresa (como vingança). Mas aí veio o sarampo e matou muitos Arara.
Brabos
Os Gavião e os Zoró eram índios brabos. Os Arara já conheciam os brancos. Foi o Barros que amansou a gente. Mas os Urubu conheceram o Barros antes que nós. Um deles falava bem o português. Nós e os Urubu falávamos a mesma língua. Os pajés Urubu mataram muitos Arara.
Os Gavião queriam matar o Barros. Pediram pra ele dar passagem de barco pra eles atravessarem o rio Machado pra ir no barracão do Barros. Atacaram ele na canoa, mas não conseguiram matar. Com medo do Barros, os Gavião pediram para os Arara apresentarem eles ao Barros como se fossem Arara.
Totó New
Totó New deixou fogo para nós. Ele ensinou como fazer com duas varinhas. Ele também deu tucumã para fazer rede das fibras de tucumã e também paneiros. Ele ensinou como fazer paneiro com tiras para serem usados nas cabeças e nas costas.
Os Arara só usavam rede de tucumã, porque era mais fácil de andar com ela. Durante as viagens, cada um carregava sua própria rede. Totó New também ensinou como fazer rede de algodão e o abano de babaçu. Antes do contato, a gente já tinha macaxeira, milho, mamão, banana, algodão e cará que Totó New trouxe de novo pra nós.
Hoje tenho pouca semente. Sempre guardo semente de milho mole dentro de casa. Têm muita curica e bichos do mato que comem as coisas da roça. Os bois também comem e estragam muitas plantações. Tem gente que cria gado e não faz cerca. Antes do gado a gente tinha muito mamão, macaxeira, banana. Hoje a gente não tem quase nada. Às vezes as crianças querem comer banana, mas não tem. Hoje a gente não oferece mais macaloba, mas café, por que tem pouca macaxeira. Nós não temos mais a macaxeira e a batata (petik xotkîn) que Totó New nos deixou.
Notas
[1] Narrativa retirada do livro “Nossas vidas: histórias de mulheres Karo Arara. Iba’kât kanã: ma’pâyrap at kanã xet to’”, organizado por Jandira Keppi e Nienke Pruiksma (2018) do Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (COMIN).
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