biografia
Casé Angatu Xukuru Tupinambá e a reexistência autonomista indígena
Autor(es): Saulo Carneiro , Geovanna Piloto
Biografado: Casé Angatu Xukuru Tupinambá
Nascimento: 1963
Povo indígena: Xukuru
Terra indígena: Comunidade Xucuru
Estado: São Paulo/ Pernambuco
Categorias:Biografia, Estado, São Paulo, Etnias, Xukuru
Tags:Masculino, São Paulo, Xukuru
“Nós não somos donos, nós seremos donos e não fomos donos, nós somos a própria terra”.
Nascido em 1963, Carlos José Ferreira dos Santos nasceu fisicamente na comunidade Xucuru na cidade de São Paulo, mas atribuí seu nascimento espiritual a uma aldeia indígena localizada no semiárido alagoano, na cidade de Palmeira dos Índios, onde está localizado o território do povo Xucuru. Casé é junção dos seus dois primeiros nomes oficiais, já Angatu, como ele conta, foi um nome dado pelo Cacique Alicio, ancião mais velho do povo tupinambá. Anga em tupi quer dizer alma e Katu boa, logo, uma “alma boa”. Essa descrição é muito compatível com a personalidade de Casé, um sujeito de fala tranquila e bem-humorado.
Seu pai, indígena Xucuru, mudou-se para São Paulo em um movimento de migração forçada, ao que Casé define como “diáspora indígena” que ocorreu entre as décadas de 1930 e 1940. Em São Paulo, seu pai conheceu a sua mãe, uma mulher indígena Kaingang. Seguindo a tradição do povo Kaingang, sua mãe mudou-se e foi morar com sua família paterna, portanto, sua criação foi nas tradições do povo Xucuru, por isso ele considera que sua origem é Xucuru e Kaingang, mas sua criação foi com base na tradição do povo Xucuru.
Sua infância foi praticamente toda na cidade de São Paulo, Casé e sua família moravam em uma comunidade Xucuru. Nessa comunidade as condições de vida eram muito precárias, não havia água nem energia, os indígenas que ali moravam utilizavam a água de um rio próximo para beber, cozinhar e lavar roupas enquanto as crianças aproveitavam para nadar e brincar. No subúrbio paulistano a comunidade Xucuru ainda mantinha seu idioma e tradições, criavam bichos e plantavam alimentos e realizavam anualmente uma festa junina.
Sua educação formal aconteceu em um contexto onde não existiam escolas indígenas, com uma matriz curricular voltada para educação desses povos e ensino de seu idioma. Assim, toda sua educação formal se deu em escolas não-indígenas, como muitos da sua geração. Não havia, da sua parte, um desejo em estudar, que sua inserção na escola foi forçada por sua mãe. Tanto ela quanto seu pai não sabiam ler nem escrever em português, bem como boa parte das pessoas que moravam na comunidade Xucuru.
Por conta da sua dicção e pelo movimento bocal feito pelos falantes de tupi, foi considerado portador de necessidades especiais, portador de Síndrome de Down. Toda sua trajetória escolar foi marcada por muita violência, racismo e preconceito. Por conta dessa experiência, para Casé estudar sempre foi algo muito difícil, não pelo esforço de estudar, mas por conta das violências que sofreu que tornaram tudo mais difícil. O que o incentivou a dar continuidade nos estudos foi o apoio que recebeu de seu pai e sua mãe, ambos eram ativos na luta indígena. Para Casé, o apoio e incentivo recebido dos pais foi fundamental para que ele terminasse os primeiros anos de escola.
Depois que concluiu o ensino médio, Casé ingressou na faculdade de agronomia, seu objetivo era se inserir em um curso onde pudesse adquirir saberes que ajudassem sua comunidade e devolver o que aprendeu ensinando seu povo. Porém, ele descobriu que agronomia não era sua área de interesse e que sua vocação não era ser engenheiro. Além disso, o curso era composto em sua maioria por filhos de fazendeiros, que eram hostis com ele.
Apesar da sua área não ser a agronomia, o propósito de Casé residia na vontade de ensinar, de transmitir o que aprendeu, sua vocação era ser professor. Seguindo esse proposito ele ingressou no curso de História da Universidade Estadual Paulista na década de 1980, porém, o mesmo cenário de preconceito e racismo se repetiu, o ambiente também era hostil. Sua dificuldade oral em pronunciar palavras com “r” e “l” e com a gramática dificultaram ainda mais sua vida acadêmica. O medo de fracassar e de não concluir a faculdade, somatizados com a violência racista cotidiana, o levaram a uma tentativa de suicídio, que foi um ponto de renascimento para ele.
Nesse período, década de 1980, não existiam cotas no ensino superior público. Logo, a universidade pública era muito diferente do que é hoje, seu perfil étnico era majoritariamente composto por pessoas brancas. Esse cenário começou a mudar com a mudar quando indígenas e negros se organizaram em defesa de um sistema de cota que democratizasse o acesso ao ensino público superior para estes grupos. Colaborou e participou ativamente dos movimentos por conta racial, ocupou a universidade por política de permanência estudantil como moradia e restaurante universitário.
Enfrentando todas essas dificuldades, ele graduou-se em História e passou em um concurso público para professor da rede pública em São Paulo, onde ainda estava sua família. Ingressou no mestrado em História na Pontifícia Universidade Católica, onde iniciou sua pesquisa sobre a composição étnica da cidade de São Paulo, seu trabalho de dissertação resultou no livro “Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza” (1890-1915) publicado pela primeira vez em 1998, nesse trabalho Casé argumenta que a composição étnica da cidade que dominava o imaginário social de que cidade foi fundada por imigrantes italianos não correspondia a realidade histórica e a diversidade étnica.
Apesar de ter concluído o mestrado e publicado um livro, que atualmente se encontra na quarta edição, mesmo tendo tentado duas vezes, não foi aprovado no doutorado. Para ele, as duas tentativas representavam a negação da possibilidade de se pesquisar a história dos povos indígenas da cidade de São Paulo, pelo menos na PUC. Para ele, os cursos de História não estavam prontos para lidar com a história dos índios vivos: “[…]historiador não gosta de indivíduo, historiador gosta de índio morto.”
A convite de um professor, ingressou no doutorado em arquitetura na Universidade de São Paulo. Onde pesquisou os aldeamentos indígenas da cidade de Guarulhos, em razão do seu envolvimento com movimentos sociais da cidade, e por ser contrário a construção de uma terceira pista no aeroporto de Guarulhos, foi perseguido e exonerado do cargo de professor na educação municipal. Depois de terminar o doutorado tentou fazer concurso para diversos lugares do país, mas uma constante se repetia, o máximo que conseguia alcançar era o cargo de professor substituto. Foi professor da Universidade Estadual de Londrina, da Universidade Estadual Paulista. Em 1998 foi convidado pela Universidade Estadual de Santa Cruz para ser professor externo na UESC, fez pós-doutorado em psicologia em 2002 na Universidade Estadual Paulista. Em 2011 passou no concurso para professor titular na UESC, porém a universidade não reconhece até hoje seu título de doutorado por não ser na área de História.
Para Casé sua trajetória no mundo acadêmico foi muito dura, isto se reflete na sua concepção sobre esse espaço, que ele não vê como sendo seu lugar de escolha.
“[…] a mudança não está na universidade, está fora da universidade. E por isso que eu digo, entre o conhecimento universitário e a sabedoria indígena, eu fico com a sabedoria indígena, é o conhecimento universitário que geralmente é quadrado, que tem que se arredondar na circularidade da sabedoria indígena. Então, entre o conhecimento acadêmico e a sabedoria, fico com a sabedoria. Entre a história escrita pela universidade e a memória, eu fico com a memória. Entre a escrita e a oralidade, eu fico com a oralidade. Então, essas são formas de eu fazer a minha reexistência epistemológica na universidade, não ser engolido por ela.”
Para Casé a universidade é um ambiente muito duro e muito colonial, pelo seu desprezo pelos sabres tradicionais, pela oralidade. Na sua prática docente ele luta para reconhecer esses saberes. Ele tem atuado no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnicos Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia onde já orientou mais de dez estudantes indígenas.
Na luta indígena, que é política, Casé se posiciona como um autonomista, agindo sempre de maneira coletiva. Ele traz como inspiração política os movimentos indígenas Mapuche do Chile, Zapatistas do México. Na sua visão, os povos indígenas devem se reconhecer como povo com direito à autonomia perante o Estado, as ONG’s e Igreja, pois este seria o universo epistemológico dos povos indígenas, libertário, contracolonial, anticapitalista e antimercadológica. Por conta disso, que o genocídio e etnocídio seguem em curso contra os povos indígenas, pois eles representam uma forma de vida que é essencialmente contracolonial, anticapitalista e libertário.
Casé, é também Tupinambá, foi acolhido pelo povo de Olivença e se juntou a eles na construção da luta indígena. A introdução na etnia se deu pela parentagem e construção de laços de amizade entre ele e o povo Tupinambá. Alguns parentes o chamam de “Angakaru”, que significa comedor de almas esse apelido reflete a perspectiva sobre o processo de introdução de Casé no povo Tupinambá, por meio da antropofagia, devorando as almas uns dos outros, elas são unificadas.
A conquista de maior espaço pelos povos indígenas, ampliada pela difusão permitida pela internet, trouxe uma das maiores conquistas para o movimento indígena segundo Casé. Para ele, o aumento de pessoas que empatizam e entendem o sentido da luta indígena e a apoiam contribuiu muito para o seu fortalecimento. Essa conquista ajuda diretamente no combate as violências físicas e verbais, que foram comuns no cotidiano de Casé. A constituição de 1988 também foi uma grande conquista que rompe com ideia de indígenas mortos e sem direitos. Porém, essa conquista, e todas as outras institucionais, apesar de serem legítimas, não traduzem a importância da conquista da empatia pelos povos originários.
É na resistência e na autonomia que Casé encontrou sentido para sua luta. Os povos indígenas brasileiros resistem porque a luta pelas suas vidas é um ato político contra todas as violências que acometem os povos indígenas. Para além disso, a resistência é ainda um movimento espiritual que se conecta com o real, por meio das pinturas corporais, adereços, rituais, ou seja, a resistência não é somente material, mas também é espiritual. Essa espiritualidade é uma via de reencontro com a ancestralidade que orienta a mentalidade coletiva de luta e resistência. Para Casé é preciso evitar as armadilhas coloniais da individualidade, egoísmo e antropocentrismo, para isso, é preciso se orientar por uma forma de pensar e agir coletiva. Aqueles que cedem a individualidade, perdem o sentido coletivo e o contato com a natureza sagrada, morada dos encantados e isso resultaria na morte coletiva. O sentido da vida coletiva reside na manutenção da relação com a natureza sagrada, os ancestrais e com o coletivo.
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