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HIPÓLITO DA CUNHA DA ASSUNÇÃO

Autor(es): Pedro Pinheiro de Araújo Júnior
Biografado: HIPÓLITO DA CUNHA DA ASSUNÇÃO
Estado: Rio Grande do Norte
Categorias:Biografia, Estado, Rio Grande do Norte
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HIPÓLITO DA CUNHA DA ASSUNÇÃO: BIOGRAFIA DE UM CAPITÃO-MOR DOS ÍNDIOS DA VILA DE ÍNDIOS DE EXTREMOZ, CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE  (1800-1822)

No decorrer do processo de colonização portuguesa no espaço que ora chamamos de Brasil, as relações entre autoridades coloniais e povos indígenas foram modificadas em meados do século XVIII com as novas Leis de Liberdade dos índios. Segundo a historiadora Fátima Martins Lopes, essas novas leis apresentam as decisões tomadas pela Coroa portuguesa sobre a posição dos missionários católicos, além das relações de trabalho e escravidão da população indígena. Assim, com o Alvará de 7 de junho de 1755, foi abolido o poder temporal dos missionários sobre os indígenas aldeados, extinguindo o parágrafo primeiro do Regimento das Missões, que dava aos jesuítas controle espiritual exclusivo sobre os povos tutelados .
Foi nesse contexto que a antiga Missão de São Miguel do Guajiru, na Capitania do Rio Grande do Norte, foi remodelada, quando ocorreu a fundação da Vila Nova de Extremoz do Norte em 3 de maio de 1760. Desse modo, a população indígena vilada pela administração do diretor de índios foi dividida em dois grupos – sendo a maior parte deles de indígenas Potiguara, que eram chamados de “índios da língua geral” e residiam na sede da vila e nas povoações de Cidade dos Veados e Olho d’água Azul, e os demais eram “índios da língua travada”, sendo estes últimos das “nações paiacu, assu e capela” – e distribuída em 194 fogos nos locais supracitados e mais 194 pessoas em desobriga .
Desse modo, as lideranças indígenas dessa população vilada eram chamadas de “principais” e eram nomeadas com patentes militares pelos governos do Rio Grande do Norte e por Pernambuco com o títulos de capitão-mor, sargento-mor e capitão dos índios. Essa política de inserção de principais indígenas nos espaços de poder e sociabilidade foi observada pela historiadora Maria Regina Celestino de Almeida como um incentivo promovido pelas autoridades coloniais e religiosas no sentido de criar uma “nobreza indígena” através da concessão de favores, patentes militares, títulos, nomes portugueses de prestígio e demais benesses que amalgamaram essas lideranças no fomento à expansão colonial pretendida pela Coroa portuguesa .
Para ela, esses postos de ordenanças eram também funções consideradas “enobrecedoras” quando exercidas por várias gerações de famílias indígenas, além de terem privilégios políticos e econômicos. Aliás, no interior dos aldeamentos e vilas havia mais de um principal, pois diversas etnias ali se misturavam, portanto, o principal líder da vila, o chamado capitão-mor dos índios, devia ser o principal do grupo dominante à época de seu estabelecimento .
Assim, essas ordenanças militares indígenas eram “corpos irregulares” e integrantes da organização militar colonial que se dividia em outros níveis hierárquicos com as milícias e tropas de 1ª Linha, sendo que esta última constituía a força regular e paga nas capitanias . Ademais a esses fatos, os postos mais elevados dessas ordenanças dos indígenas eram exercidos continuamente pelas lideranças indígenas até serem substituídos caso ocorressem confrontos com as determinações da Coroa lusa por outros indivíduos que fossem mais favoráveis às imposições coloniais .
A atuação de soldados das ordenanças indígenas ocorria em certa constância e consoante as necessidades militares da governança da Capitania do Rio Grande do Norte. Destacavam-se nesse processo a figura do capitão-mor dos índios como principal líder desse povo e articulador destes com a política colonial.
Assim, na Vila de índios de Extremoz, o personagem indígena de maior destaque nesse processo foi o capitão-mor dos índios, Hipólito da Cunha da Assunção, que atuou nos espaços militares, sociais e políticos da dita vila nas três primeiras décadas do século XIX.
Hipólito da Cunha era casado com a “índia” Luiza Maria e, posteriormente, teve uma segunda núpcias com a jovem indígena Ana Maria (1820-1844). Um de seus filhos, um dos únicos em que foi possível investigar, foi Francisco Xavier da Cunha, que casou com Quintiliana Maria da Conceição, filha dos casal de índios Geraldo Gomes e Maria Gomes de Jesus, na Igreja Matriz de Extremoz em 22 de maio de 1837 . Até esse período, os membros da família Cunha da Assunção eram nomeados nos assentos da Igreja Católica com a qualidade de “índios”, mantendo as relações desses indivíduos com o seu grupo social no espaço da Vila de Extremoz até meados desse século.
Ademais, Hipólito da Cunha recebeu sua patente militar possivelmente após o posto de capitão-mor dos índios ficar vago em fins do ano de 1800 e seu nome ser apresentado como um dos três principais indígenas selecionados pelo senado da câmara e pelos oficiais desse distrito para o Governo de Pernambuco . Com a sua nomeação consolidada, tornou-se responsável pelas seis companhias das ordenanças dos índios do território da Vila de Extremoz e galgou por vários anos as funções políticas nesse espaço, dentre elas a assunção aos cargos camarários da referida vila .
Uma das primeiras celeumas ocorridas no período em que ocupava o posto de capitão-mor foi advinda da prisão do “europeu” Pedro José Nolasco, morador na Vila de Extremoz. A ordem de prisão partiu do governo de Pernambuco após receber denúncias do vigário e diretor dos índios, José Ignácio de Brito, de que Nolasco estava se envolvendo amorosamente com diversas índias casadas, provocando diversos conflitos e escândalos com os moradores da vila .
Em um ofício de abril de 1803 que solicitava a prisão de José Nolasco, o descrevia como “um homem vagabundo, sem outro modo de vida, que não seja de promover intrigas contra as pessoas honestas dessa capitania, e por isso merecedor da prisão que [a] ordenamos” . Em continuidade aos fatos, o governador do Rio Grande do Norte, Lopo Joaquim de Almeida Henriques, após receber a ordem para prender o aliciador das mulheres indígenas, enviou um segundo ofício ao capitão-mor Hipólito da Cunha da Assunção, informando:

Logo para Vosmecê receber esta fará toda a diligência por me prender a Pedro José Nolasco, usando a este fim, datado o segredo, […] e espiando-o a fim de que não escape; Aliás me fizera responsável de toda a omissão que ver nesta ação Quartel da Cidade do Natal, 9 de abril de 1803. [Governador] Lopo Joaquim de Almeida Henriques .

Ao receber o ofício, Hipólito da Cunha, como principal oficial dos índios de Extremoz, convocou umas das suas companhias das ordenanças dos índios, encabeçada por um oficial de sua confiança, que era um capitão-mor dos índios da “língua travada”, para cumprir a ordem de prisão contra Nolasco.
Na diligência escrita pelo próprio Hipólito da Cunha, foi informado que o dito “europeu” fugiu da vila, sendo alcançado no Ceará, termo da Vila de Extremoz, por um dos soldados da companhia e, devido à sua resistência à prisão, acabou golpeado na cabeça com “duas bordoadas”. Em seguida, Nolasco foi conduzido preso à presença do governador Almeida Henriques no quartel da Cidade do Natal, “o qual o remeteu a selo do governador-geral onde havia assinado termo de não ir ao termo de Extremoz pelo escândalo em que vivia com uma índia, que a tirou de seu marido e outras 10 ou 12 que causava os mesmos índios” .
A cena incomum provocada pela agressão e prisão de um reinol pelas mãos de homens indígenas deve ter aguçado as críticas à governança de Almeida Henriques pelos potentados locais, haja vista que para esses últimos indivíduos, em seu cotidiano de domínio sobre os povos indígenas e pessoas escravizadas, ver um homem branco e português apanhar e ser humilhado por tropas indígenas era uma inversão da lógica colonial. Pois os moradores principais da referida capitania estavam acostumados a presenciar em sua vivências sociais os castigos e prisões motivados pelas resistências de homens e mulheres das vilas do Rio Grande do Norte, em que a Cadeia da Cidade do Natal tornou-se o principal destino desses indivíduos que lutavam contra a exploração, dominação e perda de território .
O soldado que capturou o fugitivo Pedro Nolasco foi identificado pelo nome de Antônio José “tapuio” nas reclamações proferidas por alguns moradores de Natal e Extremoz. Perplexos pelo ocorrido, informaram que o padre Valentim de Medeiros, José Teixeira da Silva e o reverendo Feliciano José Dornellas acudiram o fugitivo para não ser mais “maltratado” pela companhia dos índios da língua travada. Além disso, o diretor e padre de Extremoz, José Ignácio de Brito, e o capitão-mor Hipólito da Cunha da Assunção não puniram o referido soldado por este ter obedecido ordens do governador, elevando desse modo a tensão entre alguns moradores da capitania e seu representante maior da Coroa nessas paragens, Lopo Joaquim de Almeida Henriques .
Anos mais tarde, com a eclosão da Revolução Pernambucana de 1817, Hipólito da Cunha era o juiz ordinário do Senado da Câmara da Vila de Extremoz e, desse modo, presidia as sessões camarárias nesse ambiente político, projetando a sua influência entre os moradores da referida vila e com as demais instâncias de poder no Estado do Brasil .
Na vereação de 5 de abril de 1817, assinou uma carta com os demais vereadores apoiando o processo revolucionário encabeçado no Rio Grande do Norte por André de Albuquerque Maranhão, informando a este e a sua governança rebelde aquartelada na Cidade do Natal que o povo da Vila de Extremoz o reconhecia como legítimo e único governante do Rio Grande e que se empenhariam de “todas as nossas forças para infundir nos povos deste novo termo, amor à Pátria, a Liberdade, e Religião” .
Anos mais tarde, em 1822, com a expansão da sua influência política e militar, foi nomeado pelo senado da câmara para o cargo de diretor dos índios da Vila de Extremoz, feito possivelmente inédito nesse processo de colonização, haja vista que os diretores em sua maioria eram militares escolhidos entre as tropas pagas ou por funcionários camarários e em sua maior parte eram homens não índios . Portanto, Hipólito da Cunha foi o primeiro indígena nesse espaço a ocupar o cargo de diretor do seu próprio grupo social, assim, essas funções que atuaram nas instituições coloniais foram reflexos de sua trajetória para dirimir os conflitos entre moradores e indígena vilados, mantendo dessa forma os ditames almejados pelo Diretório dos índios no decorrer de sua vivência como liderança nesse território de Extremoz.
Passada essa breve trajetória de Hipólito da Cunha, retomando um fato importante sobre ele e os demais moradores indígenas da Vila de Extremoz. Por várias gerações, os povos tradicionais estavam imersos nas ribeiras dos rios do que depois se chamou de Capitania do Rio Grande do Norte, notadamente o vale do rio Ceará-mirim, principal zona de agricultura da vila de índios em estudo. Foi na ribeira desse rio que ocorreram diversas disputas entre os indígenas que defendiam suas terras contra os invasores não índios que criaram todas as estratégias possíveis para alijar essas famílias autóctones.
Com esses constantes processos de desterritorialização do povo indígena de Extremoz, no final do ano de 1810, Hipólito da Cunha e demais oficiais das ordenanças dos índios resolveram marchar para Cidade Paraíba do Norte para se encontrar com o desembargador da Comarca da Paraíba, sendo este o juiz privativo dos índios nessas paragens. Nesse período, o Estado do Brasil estava remodelado com a chegada da Corte portuguesa em 1808 devido aos conflitos napoleônicos no continente europeu. Além do mais, as instituições desse império colonial foram também transladadas para a capital administrativa da colônia nos trópicos, a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro .
Portanto, a Ouvidoria da Comarca da Paraíba era a primeira instância nesse ordenamento jurídico onde as lideranças indígenas de Extremoz clamaram por justiça. Assim, o desembargador que recebeu a documentação para protocolar o processo foi o ministro Manuel José Batista Filgueira. Possivelmente diante do oficialato da vila de índios, recebeu uma carta e mais nove documentos anexos nos quais se historiciza o processo de luta do povo da referida vila desde a fundação, em 1760 .
O conglomerado documental foi fruto da sistematização adquirida pela comunidade para comprovar judicialmente que as terras de plantio e criação da ribeira do Ceará-Mirim, as antigas sesmarias de Olho d’água Azul e Cidade dos Veados, eram dos moradores indígenas.
O preâmbulo do dossiê apresentado pelos oficiais da Vila de Extremoz informa que estavam representando o Príncipe Regente devido à “prepotência de homens poderosos” que privam os moradores da vila de índios do único meio de sua subsistência, a terra agricultável do Ceará-Mirim . O referido local do litígio fica a pouco mais de 10 quilômetros ao norte da vila e local de moradia e plantio das diversas famílias indígenas que estavam instaladas no vale há várias gerações, possivelmente bem antes da criação da Missão do Guajiru, quando os padres jesuítas solicitaram uma sesmaria nesse espaço no início do século XVIII.
Enfim, a carta finaliza o processo histórico que levou algumas famílias indígenas a se estabelecerem em outros locais da capitania com um pedido de clamor para o Príncipe Regente, haja vista que esses indivíduos estavam acossados pelo ambiente de litígio territorial que se instalou no vale do rio Ceará-Mirim desde a Guerra dos Bárbaros. No texto-denúncia, afirmaram que as

[…] injustiças em abuso da lei, de estupidez, triste sorte dos suplicantes de vem este reduzido a maior consternação sem terras para suas precisas e indispensáveis plantações, o que tudo para em prejuízo da população e propagação da fé, que não só tem que dizer todo dá li muitos índios, mas que a notícia que disseminam do mal trato que receberam e da falta de execução das Graças concedidas pelo Real Trono afastam outros de vir em aumentar estas novas tão uteis colônias. […] os suplicantes sem forças sem respeitos, e sem arte não podem manter pleitos em forma judicial ao que atendendo aquele Alvará mandou que a demarcação, e tombo se fizesse a despesas da Real Fazenda.
CARTA do Capitão-mor dos índios Hipólito da Cunha da Assunção e demais oficiais índios das ordenanças da Vila de Extremoz .

À vista disso, a longa carta apresentada ao Ouvidor da Comarca da Paraíba por Hipólito da Cunha e demais oficiais índios da Vila de Extremoz foi mais uma tentativa de impedir que as suas terras fossem mais devassadas pelos grupos poderosos que nos últimos cinquenta anos, desde a fundação da vila em 1760, vinham expandindo seus domínios no referido vale, sendo o único meio político que encontraram para permanecer em seu território. Portanto, recorreram em carta para o Príncipe Regente utilizando as instituições jurídicas dessa Coroa nos trópicos para conseguirem a graça da definitiva posse e demarcação das suas sesmarias.
Nesse ínterim, o processo, recebido pelo desembargador da Comarca da Paraíba, foi encaminhado para averiguação para a sede da Corte, para a Mesa do Desembargo do Paço, a maior instância jurídica do governo Joanino. Na apreciação dos ministros do Príncipe, ocorrida em 6 de março de 1811, solicitaram que a percepção do Governador de Pernambuco era importante para o caso e precisavam dela para formular um novo entendimento sobre o problema, assim, mais uma vez, a troca de documentos escritos e a demora no trasporte das correspondências entre as instituições garantiam que os sesmeiros arrolados no processos ganhassem mais tempo e articulassem novas estratégias para garantir a posse da terra apropriada aos indígenas, principalmente utilizando-se de coerção contra eles e com apoio institucional da capitania .
Nesse meio século de conflito, o que se evidencia nesse relato histórico é o rotineiro processo cíclico que iniciava com a solicitação de uma data de terra por um sesmeiro, que utilizava de argumentos e meios escusos para se apropriar dos lotes da Cidade dos Veados. Em seguida, após conflitos com os moradores, estes recorriam ao Governo de Pernambuco, que encaminhava o caso à Comarca da Paraíba e que, por fim, encerrava uma correição no Senado da Câmara da dita vila, onde, mais uma vez, uma parte do território indígena era fragmentada em benefício dos potentados locais.
Portanto, as estruturas da administração colonial deixavam brechas para beneficiar os sesmeiros do vale do Ceará-Mirim, mesmo com todo o arsenal documental mantido pelo povo da Vila de Extremoz, que garantiu em nome da Coroa a posse das terras. Os agentes coloniais criaram artifícios para ganhar esse território em possíveis alianças com as autoridades locais.
No entanto, o movimento trilhado por Hipólito da Cunha e demais correligionários indica também que a Coroa, omissa nas últimas solicitações dos indígenas, poderia acatar a mudança desse ciclo e garantir definitivamente as léguas da Cidade dos Veados, essa era a única esperança dos suplicantes. Por isso, em todas as linhas escritas por esse grupo, se evidencia que estavam escrevendo diretamente à Sua Alteza Real e somente ela poderia agraciá-los com a verdadeira justiça.
Por fim, sobre a precarização territorial enfrentada pelos indígenas da Vila de Extremoz, pode-se refletir que esses indivíduos, mesmo perdendo grandes porções de seus territórios, criaram mecanismos para manter um território mínimo diante do avanço do domínio de suas terras, mesmo que esse minguado território fosse refletido nos debates políticos, no senado da câmara ou nas atuações nos cargos militares, nas ordenanças na vila de índios e, ainda, na construção de um novo território (reterritorialização), sob novas bases, ao fugirem ou trabalharem forçadamente em outros espaços da capitania em análise. Assim, nessas conjunturas de dominação, as famílias indígenas e suas lideranças da Vila de Extremoz, com o destaque de Hipólito da Cunha, construíram uma resistência sob todos os níveis para manter coesos os interesses de sua coletividade.
Não foram encontrados mais dados documentais sobre esse personagem após a década de 1820, mas com esses pequenos fragmentos apresentados neste texto, foi possível realinhar a sua trajetória e importância como líder ancestral da luta política do povo Potiguara de Ibirapi no Rio Grande do Norte .

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