biografia

Jovino
Autor(es): Jovino de Jesus Ponçada
Biografado: Jovino
Povo indígena: Pataxó
Terra indígena: Aldeia Mãe Barra Velha
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia, Etnias, Pataxó
Tags:Bahia, Masculino, Pataxó
Professor Jovino e a Escola Indígena Boca da Mata: histórias trançadas
Mas não sou eu só/ Não somos dez, cem ou mil / Que brilharemos no palco da História. / Seremos milhões, unidos como cardume/ E não precisaremos mais sair pelo mundo./ Eliane Potiguara
Apresentando minha aldeia
A aldeia Boca da Mata nasceu no ano 1974, mais de vinte anos após o massacre do Fogo de 51, que ocorreu na nossa aldeia mãe Barra Velha, obrigando os Pataxó a se espalharem por toda região do sul e extremo sul da Bahia, em busca de refúgios onde pudessem viver seguros com suas famílias e parentes. Muitos de nossos parentes pouco tempo depois retornaram, outros nunca mais foram lá, nem para visita. Nossa aldeia está localizada no Território Indígena Barra Velha no município de Porto Seguro no extremo sul da Bahia e iniciou-se com aproximadamente 12 famílias, tendo um total de 05 pessoas por domicílio, sendo crianças, jovens e adultos. Eram mais ou menos sessenta guerreiros e guerreiras com muita vontade de retomar o direito de viver novamente em comunidade, conforme a cultura dos nossos antepassados.
A luta ganhou força, principalmente depois do grande movimento de retomadas levantado a partir das comemorações dos 500 anos do Brasil. Hoje, após mais de quarenta anos, a aldeia Boca da Mata têm aproximadamente 209 famílias com uma população aproximada de 1500 pessoas. E é sobre ela que quero contar um pouco.
O nosso meio é a agricultura de subsistência e a produção de artesanato. Trabalhamos com madeira, penas e principalmente sementes, mas utilizamos também objetos comprados na cidade que facilitam o trabalho e nos dão mais possibilidades de criar. Este trabalho gera 30% da renda da aldeia. Os outros 70% estão parte empregados na educação e saúde da aldeia, e a outra parte no cultivo da pimenta-do-reino, de hortaliças, do café, entre outros. Também criamos algumas poucas cabeças de gado.
Nosso meio de sobrevivência no período de 74 a 90 restringia-se à agricultura de subsistência, à caça, pesca e ao extrativismo comercial da piaçava, quando o tempo permitia. Hoje o nosso maior rio, que é o Cemitério[1], ainda é um local onde se pode pescar algumas espécies de peixe, como a traíra, o tucunaré, mas as pessoas utilizam mais para tomar banho mesmo, já que não temos tanto pescado mais.
Com o crescimento contínuo da comunidade, as necessidade de ampliar as formas de sobrevivência aumentaram e tivemos que criar alternativas para que todos pudessem viver com trabalho dentro da própria comunidade.
A educação indígena escolar como direito
A escola indígena representa um marco de autoafirmação, um dos lugares onde se soma o conhecimento próprio aos de outras culturas, e se articula de forma a constituir possibilidades de informação e divulgação para a sociedade nacional de seus saberes e valores como povo indígena, também de preservar nossas tradições e nossa identidade étnica.
É a partir da constituição de 1988 que os indígenas deixam de ser considerados uma categoria social em vias de extinção e passam a ser respeitados como grupos étnicos diferenciados, com direito a manter sua organização social, costumes, crenças e tradições. É a partir daí que a educação escolar indígena se consolida também.
Para os povos indígenas a escola é mais um ambiente de aprendizagem, sendo a comunidade possuidora de sabedoria a ser comunicada, transmitida e dividida entre cada um que compõe a comunidade. É entendida como um espaço que proporciona reflexões, desmistifica conceitos, preconceitos e constitui saberes que proporcionam a equidade.
Escola indígena de Boca da Mata – o sonho de uma comunidade
Surgiu ainda a necessidade de criar uma unidade escolar, para isso a articulação entre as lideranças e comunidade foi fundamental neste processo, pois era uma vontade grande de todos nós, um sonho.
E foi assim que no ano de 1982 foi criada a primeira escola indígena Pataxó de Boca da Mata composta por uma sala de aula, uma cozinha e um quarto para alojar o professor (a). A construção da escola foi feita de taipa não revestida, coberta de telha e com piso de cimento. Todo recurso utilizado na construção foi conseguido pela própria comunidade, com o esforço de cada um.
Nesse começo as turmas eram multisseriadas de 1° a 4° série, e este modelo de ensino permaneceu até o ano de 1989, passando por vários professores no decorrer dos sete primeiros anos, pois era muito difícil a tarefa de ensinar crianças de diferentes idades e conhecimentos ao mesmo tempo. Só em 1990 a FUNAI, depois de muitas cobranças, reconheceu a necessidade da educação na aldeia e juntamente com a comunidade construiu uma unidade escolar feita de madeira, composta por uma sala mais extensa que a atual, com alojamento, um depósito e um banheiro.
Porém, com o passar do tempo a comunidade felizmente foi crescendo, com isso surgiu a necessidade de aprimorar melhorar as condições da nossa educação. Então, os pais reuniram a comunidade e construíram mais uma unidade escolar, contendo duas salas de aula e uma secretaria, mais uma vez com recursos próprios, cada um ajudando como podia.
No ano de 1996 percebemos a necessidade de ampliar o ensino fundamental de 1º ao 4º, para oferecermos de 5º ao 8º. Reivindicamos providências à prefeitura municipal de Porto Seguro, que construiu um prédio escolar conforme todos os padrões de como deve ser uma escola: duas salas de aula, dois banheiros e uma cantina, terminando essa construção em 2000. Em 2001 tivemos as primeiras turmas deste ensino, sendo alunos do fluxo 5° e 6°, 7° e 8° série.
No ano de 2002, o Governo Federal em parceria com a FUNAI construiu uma unidade escolar com estrutura modelo, no valor de R$ 449.000,00 contendo quatro salas de aula, uma diretoria, uma secretaria, uma sala de professores, um almoxarifado, um depósito, uma cantina, uma dispensa, uma lavanderia, dois banheiros (masculino e feminino) uma sala de informática, uma sala de leitura e um pátio com espaço físico bem amplo. Com o término da obra fizemos a inauguração da escola, felizes porque agora sim nossos alunos tinham o espaço que mereciam!
Com o crescimento populacional da comunidade e do desejo de nossos alunos em continuar estudando, houve a necessidade de implantar o ensino médio na nossa aldeia Boca da Mata. Em 2005 iniciamos a primeira turma do ensino médio, sendo regimentado em forma de alternância, com aulas nos turnos vespertino e noturno durante três semanas por mês, isso para atender as necessidades dos estudantes. Em 2008, formou a 1° turma do ensino médio, no curso de formação geral. Desde então, novas turmas se formam a cada ano.
É com muito orgulho que vejo nossos estudantes terminando o nível médio e indo para as instituições públicas de ensino superior, tais como a UFBA, o IFBA, a UNEB, a UFSB e a UFMG principalmente. Eles tem ingressado nas mais variadas áreas: agronomia, enfermagem, direito e tantos os outros cursos que ajudarão nosso povo nessa dura jornada da autodeterminação, que há tempos começamos e da qual não vamos desistir nunca. Como nem todos conseguem estudar nas universidades públicas, alguns vão até para as faculdades particulares.
Devagarinho nós vamos ocupando os espaços que até outro dia não eram nem sonhados por nós. Agora estamos lá, inclusive ensinando os não indígenas.
Quem são nossos alunos?
Nosso alunado é proveniente de classe baixa, moram em suas casas, mas apesar disso possuem banheiros com fossa séptica. Infelizmente, a água da aldeia não é tratada, mas não falta nunca, pois temos dois bons poços artesianos, um construído especialmente para a escola com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE e outro, de uso da comunidade, construído pela SESAI.
Os pais dos alunos em sua maioria não são alfabetizados. Em 2005 a maioria das famílias sobrevivia do artesanato de madeira nativa do parque Nacional do Monte Pascoal e da agricultura de subsistência, sem praticamente nenhuma tecnologia que ajudasse diretamente em nosso cotidiano. Para se ter uma ideia, em apenas duas casas havia energia.
Organização da comunidade escolar
Em relação à organização da escola, a direção é escolhida por lideranças representantes da comunidade local, possui três coordenações, sendo uma representante da comunidade local e dois indicados por membros da própria escola junto com a secretaria de educação municipal. Todos estão integrados à comunidade de Boca da Mata, não há ninguém de fora. A escola possui também na área de apoio dois vigilantes, oito auxiliares de serviços gerais e três auxiliares administrativos, também parentes moradores da própria aldeia.
Nossa escola realiza quinzenalmente reuniões pedagógicas e de estudos. No plano da cultura destaca-se a reafirmação cultural da tradição local da aldeia, através de eventos de socialização onde todos participam. Realizamos também projetos educacionais desenvolvidos pela escola junto com a comunidade, debates que englobam temas relevantes como saúde, educação, segurança, sexualidade, drogas, moradia, tecnologias na comunidade. Temos ainda todos os anos a semana cultural da aldeia e a feira cultural Pataxó.
Também temos problemas parecidos com os dos não indígenas, como a ausência dos pais na escola, o uso de bebida alcoólica como refúgio, o difícil acesso à escola para as famílias que moram mais distante, altos índices de evasão nas turmas de adultos, mas enfrentamos tudo isso como comunidade, pois cada um quer se profissionalizar, crescer e poder contribuir com o crescimento da própria comunidade, valorizando e fortalecendo os saberes e os valores da nossa cultura Pataxó.
Por fim, quero falar de uma coisa que é o que mais marca a escola de Boca da Mata: os portões nunca estão fechados, pois ela é de toda a comunidade, pode ser visitada a qualquer hora, é o local onde tudo que é importante para nós acontece, se tornou uma referência quando o assunto é comemorar, conquistar e planejar lutas. É um lugar do qual sentimos muito orgulho, do pequeno ao mais velho.
Quem são os profissionais da educação na nossa escola?
Quanto aos profissionais da Educação que atuam em nossa escola podemos salientar que grande parte tem formação em nível médio, magistério indígena e nos encontramos em busca de formação continua para aperfeiçoamento profissional. Atualmente nós estamos cursando as licenciaturas interculturais nas instituições de ensino federais e estaduais (UNEB, IFBA e UFMG).
Somos profissionais de diversas idades e histórias de vida, mas desde o porteiro até o diretor, o que nos une é o desejo de fazer a nossa escola crescer.
Minha história
Natural da Aldeia Águas Belas, eu, Jovino de Jesus Ponçada, nasci no dia 03 de março de 1969. Pude conviver com toda a minha família durante quatro anos, depois eu e meus pais nos mudamos para a aldeia Barra Velha. Eles foram trabalhar na roça e eu os acompanhava todos os dias.
Aos sete anos comecei a estudar na primeira série do ensino Fundamental da Escola Indígena Pataxó Barra Velha. Naquela época, a FUNAI era responsável pela escola. Minha primeira professora se chamava Ilza Fernandes, ela me ensinou muitas coisas e por isso pude continuar os meus estudos.
No ano de 1981 aconteceu a primeira demarcação de Barra Velha, que foi o primeiro território indígena a ser demarcado no sul da Bahia. Neste tempo a roça que foi delegada para meus pais ficava muito longe da aldeia, por esse motivo eles se juntaram com outras pessoas e vieram para a aldeia Boca da Mata. Naquele tempo morava 3 a 4 famílias, era tudo mata fechada. Com o passar do tempo outras pessoas chegaram para viver na nova aldeia com a intenção de facilitar o acesso às terras e dar sustentabilidade às suas famílias.
Na década 80 a comunidade de Boca da Mata fez uma escola de taipa e no ano seguinte as aulas iniciaram com mais conforto. Naquela época sair de Boca da Mata todos os dias para estudar na cidade, era impossível, e ainda hoje é muito complicado o deslocamento. Por esse motivo fiquei sem estudar por 15 anos.
Minha carreira na educação começou quando, em 1997, fui convidado para lecionar na Escola Indígena Boca da Mata, na segunda série do Ensino Fundamental. No início foi dificílimo, porque eu só havia estudado até a quarta série. Sinceramente, eu pensava que não iria resistir por tantas dificuldades encontradas. No final desse ano tão sofrido, eu percebi que amava ensinar e que já era impossível ficar longe dos meus alunos. Então, decidi que iria dedicar minha vida à educação.
No mesmo ano em que fui convidado para lecionar, tive a oportunidade de voltar aos estudos, fazendo o curso supletivo em Porto Seguro com duração de dois anos, o curso era quinzenal. Na mesma época, mediante a necessidade, fui liberado para cursar também o Magistério Indígena oferecido pelo Governo do Estado, e assim consegui concretizar o meu sonho de terminar meus estudos.
Em 2000, resolvi cursar outro magistério oferecido pelo governo Federal, só que não era indígena, acontecia em Eunápolis-BA semestralmente, com estrutura modular, com duração de dois anos. Com isso, pude enriquecer ainda mais meu aprendizado na educação.
Durante cinco anos estive trabalhando em sala de aula, aprendi muito com os meus alunos e compartilhei com eles todo o meu conhecimento. Hoje, me sinto feliz e gratificado por vê-los terminando o Ensino Médio. Acho que essa foi a minha maior contribuição para a comunidade.
Em 2002 concluí o segundo grau e logo depois me chamaram para ser vice-diretor da escola Indígena de Boca da Mata. Durante quatro anos tive uma responsabilidade muito grande, aprendi a organizar e a elaborar os documentos da escola. Ainda neste ano tive a oportunidade de fazer o curso de Pró-Formação em Eunápolis- BA, com etapas presenciais por bimestre, com a duração de quatro anos.
Em 2006 assumi a direção da escola e a responsabilidade aumentou. O meu tempo era dedicado ao trabalho e em buscar melhorias para a escola, ao mesmo tempo que procurava trazer conhecimentos para que os professores enriquecessem cada vez mais suas aulas e assim pudessem transmitir melhor os conhecimentos para os alunos.
Meu papel enquanto membro da comunidade, sempre esteve ligado à participação nas mobilizações em favor de melhorias para a aldeia. Sou membro ativo dos movimentos sociais pela comunidade, como: conscientização sobre o destino do lixo, prevenção contra o mosquito da dengue, reflorestamento da aldeia e combate às queimadas. Como um líder escolar tenho feito reivindicações visando a melhoria do ambiente e o aperfeiçoamento dos profissionais da educação.
Nunca deixei de buscar mais conhecimento, de querer aprender mais e mais. Foi com esse desejo no coração que em 2010, comecei a cursar a Licenciatura Intercultural Indígena (LINTER). O curso contribuiu muito para o meu crescimento, sei que é estudando que poderei ajudar a oferecer a minha comunidade uma educação de qualidade, que desperte para novas realidades e oportunidades, além de realizar o meu grande sonho de estudar na universidade e poder compartilhar com todos os conhecimentos adquiridos. Minha expectativa para o curso superior, como Pataxó, é que ele atenda as necessidades da comunidade.
Essa importante licenciatura é um curso específico para formação de professores indígenas, financiado pelo Ministério da Educação (MEC), através do edital de 2009 do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (PROLIND). Além disso, recebemos recursos financeiros do MEC através do PIBID Diversidade, que é um programa de bolsas de incentivo à docência, fundamental para que muitos de nós pudéssemos nos manter no curso, já que de outra forma ficaria muito difícil ou mesmo impossível, arcarmos com despesas de estadia, alimentação e com compra de materiais necessários ao nosso estudo.
A primeira turma começou em 2010 e foi formada pelos povos indígenas aqui da região sul e extremo sul da Bahia: Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe e Tupinambá. Foi uma riqueza muito grande conviver e compartilhar os conhecimentos com os parentes de outras etnias e aldeias, todos aprendemos e ganhamos muito. Apesar de todas as dificuldades, porque às vezes o início dos módulos atrasava pela demora dos recursos, fizemos nossa formatura em dezembro de 2018. Foi uma grande festa!
E o sonho da gente vai se realizando.
Autor: Jovino de Jesus Ponçada
Organização
e edição do texto: Vera Lúcia da Silva
Notas
[1] O rio se localiza na extrema da aldeia com as fazendas que a cercam. Leva esse nome porque há muito tempo, aconteceu que dois homens trabalhavam por ali e um deles morreu. O outro para evitar o trabalho de ter que andar muito com o morto nas costas até a cidade mais próxima, enterrou o companheiro ali mesmo. Até hoje quando morre alguém, a pessoa é enterrada lá.
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