biografia

Júlio Beré

Autor(es): Simone Farias de Jesus , Mônica Farias de Jesus
Biografado: Júlio Beré
Nascimento: 29/06/1964
Povo indígena: Pataxó
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia, Etnias, Pataxó
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Origem famíliar, trabalho e escolarização

Seu Júlio Farias do Nascimento, mais conhecido como Júlio Beré, é natural da Aldeia Barra Velha, também conhecida como Aldeia Mãe dos Pataxó. Ele nasceu no dia 29 de junho de 1964. Seus pais eram: o senhor Valdomiro Farias do Nascimento e a senhora Emiliana Alves da Conceição, com os quais conviveu até a idade de dezesseis (16) anos. Em Barra Velha seus pais trabalhavam com roças, com a pesca e com caçadas. Seu Júlio estava presente em todas essas atividades e aprendeu assim, desde pequeno, a maneira de subsistência da família e cultivou um sentido de responsabilidade em relação a produção de farinha junto com os pais. Esta farinha, depois de produzida, era comercializada em um vilarejo próximo à comunidade, hoje conhecido como Montinho, distrito do município de Itabela/BA.

Júlio Beré foi o sexto filho do casal e teve um total de 8 irmãos, sendo eles: José Farias do Nascimento (Zebedeu), Antônio Farias do Nascimento (Antônio Grande), Claudionor Farias do Nascimento (Banha), Maria da Conceição Farias do Nascimento (Conceição), Claudinei Farias do Nascimento (falecido com 2 anos de idade por sarampo), Edivaldo Farias do Nascimento (falecido antes de completar dois anos por causa desconhecida), Florisvaldo (Fulô) e Gilson (DVD). Todos trabalhavam juntos para o sustento da família, permaneceram por um tempo na aldeia Barra Velha e hoje apenas Antônio e José permanecem por lá, enquanto Júlio, Fulô, Gilson e Conceição moram atualmente em Boca da Mata.

Em 1977, aos treze (13) anos de idade, seu Júlio Beré começou a estudar na Aldeia Barra Velha, com a professora Ilza Fernandes. Lá cursou a primeira série do ensino fundamental, onde pôde aprender a ler e a escrever com esta professora que era da equipe da Funai. Esta foi a primeira turma da escola em Barra Velha e seus colegas de turma eram Valto, Neide, Chiquinha, Maria da Silva, Salvino e Zael. Apesar de entrar na escola ainda jovem, seu Júlio Beré recorda ter aprendido a ler e escrever com seu irmão mais velho, José Farias do Nascimento, mais conhecido como Zebedeu. No entanto, as dificuldades daquela época, seu Júlio Beré foi forçado a abandonar a escola e os estudos para ajudar a família nos trabalhos e assim manter seus pais.

 

Trabalho, deslocamento e constituição familiar

No ano de 1980, seu Júlio Beré saiu da casa de seus pais para trabalhar em uma fazenda chamada Água Azul, localizada no pé da serra do Gaturama, no município de Prado. Nesta fazenda, seu Júlio Beré realizava trabalhos braçais, como roçar cacau e colher os frutos. Seu irmão Claudionor também se deslocou até a fazenda para trabalhar. Seu Beré conta que na fazenda havia muitos outros indígenas trabalhando por lá também e que ficavam todos juntos numa casa da fazenda. O nome de seu patrão era Vilson e a relação com os patrões costumava ser boa pois pagavam em dia. Lá produziam cacau, banana e jaca. Ele permaneceu nesta fazenda por aproximadamente seis (6) anos, voltando para sua comunidade, a Aldeia Barra Velha, aos vinte e um (21) anos de idade. Na Aldeia Barra Velha continuou ajudando sua família.

Logo após seu retorno à aldeia, conheceu a senhora Creonice de Jesus Silva, com quem se casou aos vinte e dois (22) anos, dando assim início a sua própria família, já na aldeia de Boca da Mata. Seguindo o que aprendeu com seus pais, seu Júlio Beré veio a sustentar sua família por meio de roça, caça e pesca. Logo depois, seu Júlio Beré e família se mudaram para a localidade chamada Campo do Boi, que por sua vez fica localizada entre a aldeia Barra Velha e Boca da Mata. Neste local também trabalhavam com roça, caça e pesca, além de criarem animais como porcos e galinhas. Seu Júlio Beré lembra que naquela época havia muita fartura. Quatro anos depois, seu Júlio Beré saiu da localidade do Campo do Boi e retornou novamente para a Aldeia Boca da Mata. Isso se deveu sobretudo porque não havia escola no Campo do Boi, o que fazia com que seus filhos e filhas ficassem afastados da escola e dos estudos.

Durante este período, seu Júlio Beré e dona Creonice tiveram sete filhos: Renato Farias de Jesus, que nasceu na aldeia de Boca da Mata em 1988; Fernanda Farias de Jesus (Dona Madalena foi a parteira) que nasceu em 1989; Mônica Farias de Jesus, que nasceu em Boca da Mata no ano de 1991; Simone Farias de Jesus (Conceição foi a parteira), que nasceu no Porto da Palha em 1993; Kaleby Farias de Jesus, que nasceu em 1996 em Boca da Mata; Márcio Farias de Jesus, que nasceu no ano 2000 e o caçula Alexandre, que nasceu em 2003.

 

Luta pelo território e participação comunitária

Após o retorno da família à Boca da Mata, seu Júlio Beré começou a participar ativamente das reuniões da comunidade. Naquela ocasião as discussões estavam relacionadas às ações que seriam feitas na comunidade quanto a uma retomada da área do Parque Nacional do Monte Pascoal (criado em 1961 em pleno território de Barra Velha). Esta retomada teria sido frustrada devido a falta de apoio dos próprios companheiros, especialmente por falta de apoio de outras comunidades, e pelo fato de que teriam sido convencidos a desistir pelo delegado Chicão da Funai. 

 No ano de 1999, seu Júlio Beré estava ao lado do cacique Alfredo Santana e do vice Oziel Santana durante a reunião que aconteceu na igreja de Boca da Mata e que reuniu as comunidades da Aldeia Boca da Mata, Aldeia Meio da Mata, Aldeia Corumbauzinho, Aldeia Caramuru, Aldeia Coroa Vermelha e Aldeia Imbiriba. Nesta reunião, realizada na noite do dia 18 de agosto de 1999, o principal ponto de pauta foi novamente a organização da retomada do Parque Nacional do Monte Pascoal. Nesta reunião ficou combinado que a comunidade sairia às duas (2) horas da madrugada.

Devido ao mau tempo e à chuva muito forte, que durou a noite toda, a viagem acabou atrasando e a comunidade só saiu às cinco (5) horas. O povo saiu a pé da Aldeia Boca da Mata e durante o percurso foi juntando mais pessoas da aldeia Cassiana. Ao subirem o Parque em busca da retomada, chegaram lá por volta das seis (6) horas da manhã. O grupo estava composto por mais de oitenta (80) indígenas, todos homens, com exceção de uma mulher indígena, Lelian. No Parque se encontravam dois (2) seguranças e um (1) guarda florestal, este último mais conhecido como Sinquara, esse guarda já havia feito muitas ações contra os indígenas sendo elas, prisão, espancamento e maus tratos. Essas ações aconteciam dentro da extensão do Parque Nacional do Monte Pascoal. As crianças e mulheres foram chegando ao local da retomada do segundo dia em diante.

É importante lembrar que esta retomada foi totalmente pacífica, mesmo porque os indígenas estavam lutando pelo seu território, onde os indígenas pediram a desocupação daquele espaço de maneira pacífica. Com dois dias de retomada, alguns órgãos, como a FUNAI, o IBAMA, propuseram a desocupação do local em troca de bens materiais. No entanto, como os indígenas estavam lutando por seu território, recusaram toda e qualquer proposta em relação a bens materiais. Os indígenas permaneceram no território do PNMP por algum tempo sendo que cinco (5) famílias permaneceram por mais tempo, sendo elas a família do senhor Oziel, de Alício, de Fubica, de Edvaldo e do Zé Durim. Outras famílias também ficaram no Parque por um tempo, no entanto, logo retornaram para suas aldeias. Após a ocupação bem-sucedida, o senhor Júlio Beré permaneceu no Parque por sete meses como motorista voluntário. Logo depois foi criada uma equipe de brigadistas voluntários da qual ele também fazia parte. Nesta equipe ele trabalhou por três (3) anos em prol da sua comunidade.

No ano de 2003, o senhor Júlio Beré foi escolhido pela comunidade para ser representante e cacique da Aldeia Boca da Mata, tendo viajado para Brasília, Salvador e Ilhéus em busca de melhores condições para seu povo. No ano de 2004 houve nova reunião, onde foi discutido a possibilidade de uma nova retomada na fazenda de Ordelo, localizada ao lado da Aldeia Boca da Mata, na outra margem do Rio Cemitério. O povo concordou com a proposta do cacique Júlio Beré em retomar esta fazenda. Assim, a comunidade se reuniu novamente e às seis (6) horas da manhã, um grupo com cinquenta (50) pessoas, aproximadamente, chegou pacificamente na fazenda em busca de retomar suas terras. O grupo conversou com o proprietário Ordelo e logo depois ele entregou a chave da sede da fazenda juntamente com outras chaves da propriedade.

A comunidade ocupou a fazenda por 7 meses, trabalhando na plantação de roças de mandioca, feijão, milho e melancia. O povo estava feliz, no entanto, devido a falta de competência das autoridades em favor das lutas indígenas pelo território e demais direitos, o povo acabou sendo retirado à força da fazenda por policiais e pistoleiros. Uma vez mais, por falta de apoio, a luta dos Pataxó pela terra foi desacreditada e negada por aqueles que deveriam nos apoiar. Sendo assim, os índios retornaram à Boca da Mata sem a esperança de conseguirem a garantia de seus direitos, mais uma tentativa de tirar o povo da mata para que a preservem. O senhor Júlio Beré tentou inúmeras vezes reivindicar os direitos de seu povo, mas sempre encontrou empecilhos que dificultaram sua vida como representante e cacique.

Apesar das muitas dificuldades ele conseguiu trazer muitos benefícios para a comunidade, sendo eles a criação da Associação Comunitária com índios de Boca da Mata e da aldeia vizinha, Cassiana. O nome da associação era CAIBOMA e, através dela, a comunidade e o cacique criaram roças em prol de beneficiar todo o povo da aldeia. Produziam milho e feijão, não tinham financiamento de fora, eram os próprios cooperados que compravam o material. A colheita era sempre distribuída para toda a comunidade mas, por falta de financiamento a cooperativa deixou de existir. A roça ficava na Cassiana e seus principais participantes foram: Zirdo, Carreiro, Benedito Bau, Antônio Braz, Naldo e Barrigudo, todos da aldeia Cassiana. E Epifânio, Nelson, Renito, Moreno (Primo), da aldeia Boca da Mata. A roça estava localizada entre a divisa de Cassiana e do Parque.

Depois de muitas lutas e também por falta de apoio, o senhor Júlio abriu mão de seu cargo de cacique em 2004. Sendo assim, quem assumiu logo depois foi seu sobrinho Gigipati Farias do Nascimento. Deixando o cargo de cacique, o senhor Júlio Beré voltou a plantar roças e criar animais, sempre trabalhando ao lado de sua família.

Em 2015 houve uma nova reunião na comunidade junto com as lideranças e o cacique. Nesta ocasião decidiu-se a retomada do território Barra Velha. Nesta reunião estavam presentes representantes de várias aldeias, como as de Boca da Mata, Corumbauzinho, Craveiro, Trevo do Parque, Guaxuma, Pé do Monte, Aldeia Nova, Meio da Mata, Àguas Belas, Cassiana, Coroa Vermelha. Caramuru, Jitaí, Alegria Nova, Boa Esperança, Toca da Gia e Barra Velha. Todas as comunidades permaneceram por oito (8) meses próximo à BR 101, onde receberam o apoio. O acampamento da 101 se localizava na fazenda de Lito Ruim, perto da entrada que dá acesso à aldeia Boca da Mata. Neste local as comunidades plantaram roças de mandioca, milho, feijão, abacaxi, cana, além de uma horta que abastecia a Aldeia Boca da Mata. Contudo, além de passar muitas dificuldades em relação a estadia, saúde, alimentação e falta de apoio, o povo também foi expulso e massacrado pelo poder dos militares. Outra vez, a falta de apoio aos índios por falta de comunicação dos órgãos competentes resultou em uma reintegração de posse violenta, prejudicando mais uma luta pelo nosso território, que sabemos, temos direito a viver em nossa terra!

 

Com a palavra, seu Júlio Beré

Hoje sou liderança da minha comunidade e não abro mão das lutas e nem da minha voz, porque hoje temos o direito de falar e pensar livremente, porque somos os primeiros habitantes desta terra e devemos lutar pelos nossos direitos sem esquecer das histórias e das lutas vivenciadas pelos nossos anciões. É por isso que eu estou contando minha história: para mostrar a importância em registrar as verdadeiras histórias do nosso povo pataxó. E sempre firmando e reafirmando a cultura e as tradições, que têm de ser valorizadas e preservadas pelo nosso povo pataxó.

Continuo participando da vida da minha comunidade, em reuniões, conversas e ações comunitárias. Hoje, espero que nossos jovens tenham a preocupação em manter viva as histórias em relação a nossa Aldeia Boca da Mata. E que venham ainda muitas conquistas em prol da nossa comunidade, porque eu sempre estarei aqui pronto para defender e lutar por minha Aldeia Boca da Mata.

 

 

 

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