biografia
Manoel Santana
Autor(es): José Raimundo Santana (Patxyó)
Biografado: Manoel Santana
Nascimento: 1924
Povo indígena: Pataxó
Terra indígena: Aldeia Boca da Mata / Território de Barra Velha
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia, Etnias, Pataxó
Tags:Bahia, Masculino, Pataxó
Apresentação
Pretendo com esse trabalho escrever a trajetória de vida de Manoel Santana para que as pessoas da nova geração conheçam a história de um herói pataxó que sempre lutou para a sustentabilidade do território e uma vida melhor para sua família e comunidade, onde o seu pensamento sempre foi ver os seus filhos e netos vivendo bem.
Digo que se esses relatos não forem escritos, perderemos muitas histórias, como já perdemos outras histórias e relatos que deveriam servir hoje como fonte de pesquisa para os jovens estudantes que hoje, muitas vezes, desconhecem a sua própria história.
Escrevo sobre estas histórias para que não se percam os relatos dos grandes anciães desta comunidade, sendo este um guerreiro que sempre foi exemplo para os jovens caciques que hoje estão na luta.
Origem familiar, trabalho e vida comunitária
Manoel Santana nasceu na aldeia Barra Velha no ano de 1924. É filho de Isidória Ferreira e Alfredo Marcos Santana, e na infância morou em Caraíva e no rio Jambreiro. Quando jovem, voltou a morar em Barra Velha, sua aldeia de origem. Não foi criado por seu pai, seu pai não era indígena, a família dele veio de Serrinha, perto de Salvador. Sua mãe, uma índia da família Ferreira foi quem o criou, e assim, seu nome ficou Ferreira, a família Ferreira.
Desde menino ele já era esperto. O pessoal conta que ele era muito trabalhador e que desde criança ele já mexia com muitas coisas. Ele tinha uma roça pra cima de Caraíva, como os nossos espaços nesse tempo eram grandes, o pessoal conta que pra todo canto o índio botava roça, ele tinha a sua roça no Jambreiro, na terra dele, só que ele morava em Barra Velha. Naquele tempo eles andavam muito, antigamente morava muito índio em Caraíva, lá era uma aldeia também, tinha Barra Velha e tinha Caraíva. E assim, seu Santana, como era chamado pelos seus colegas na aldeia, em sua trajetória aprendeu a fazer de tudo um pouco: pescar, serrar, carrear com boi, barciar[1] no rio e desde cedo aprendeu a trabalhar na roça. Ele viveu muito em Caraíva e quando ele já estava grande, saiu junto de sua mãe para Barra Velha, lá ele constituiu família e começou a luta, com o pessoal de lá, desde pequeno já lutando pela aldeia e os parentes. Na época da criação do Parque Nacional e do Fogo de 51, ele apresentou seu espírito de liderança ao reunir o povo pra não sair naquela época.
Constituiu a sua família ainda muito jovem, casou-se com a sua primeira esposa, dona Adélia, em Barra Velha, com quem teve 4 filhos: Josias, Maria José, Nalva e Oziel. Depois se casou com Maria Braz Ferreira e teve um filho, José Raimundo. Dona Maria adoeceu e morreu, e assim, um tempo depois, se casou com Anália Maruim, com quem teve dez filhos sendo eles: Célia, Alfredo, Ivan, Juliana, Didi, Matias, Neguinha, Indiária, Antônio José e Cassinha. Além de dois filhos que vieram a falecer precocemente. Com esse total de filhos, foi feito uma pesquisa onde os netos e bisneto chegam a cento e vinte, isso há cinco anos atrás, agora já deve chegar aos cento e cinquenta ou mais. Contam as pessoas que o conheceram que quando ele era novo ele era valente e muito namorador, dizem que ele teve cento e vinte namoradas, foi noivo doze vezes e se casou com três mulheres.
Umas das suas expectativas era de fazer uma aldeia com filhos e netos e para isso ele tinha a ideia de preparar seus filhos para assumirem as ações de trabalhos como cacique, liderança, professor, coordenador, diretor, agente de saúde, e na política como vereador, etc. Seu Santana tinha uma grande expectativa entre a sua família de fazer novas lideranças capazes de levar em frente os seus trabalhos com a comunidade. Quando ele falava em melhorias para a aldeia ele não se referia apenas a sua família, mas sim a todas as famílias pataxó. A onde tinha um pataxó ele ia lá para falar com aquela pessoa, ele não olhava a idade sempre acolhia a todos.
Assim, o seu trabalho e sua trajetória sempre foi em busca de melhoria para a comunidade, foi liderança por muito tempo até se tornar o cacique da aldeia, atualmente é o pajé em Boca da Mata. Desde pequeno, lutou para ajudar o seu povo e em sua trajetória como líder sempre foi ouvido, pois as suas ideias sempre foram bem sucedidas, ou seja, reconhecidas pelas pessoas, já que era um grande conhecedor de todo território pataxó, bem como os locais de morada das pessoas que vivem aqui. Sempre lutou em busca da demarcação das suas terras e foi um defensor da educação quando ainda não tinha escola em Boca da Mata. Fez muitas viagens à Brasília para cobrar uma escola de qualidade para seu povo.
Santana, como sempre foi chamado, é uma pessoa que todos têm o seu respeito, é compadre de toda a comunidade. Na época de semana santa uma grande parte da aldeia vai até a sua casa e ajoelha aos seus pés. Manoel Santana, como é conhecido, vai fazer 100 anos.
A sua luta pelo território e a organização do povo pataxó
Na época da criação do parque de Monte Pascoal[2] em terras pataxós, ele travou uma briga com os guardas e representantes do órgão IBDF (Instituto Brasileiro de Defesa Florestal) onde eles queriam que eles saíssem. Mas ele foi insistente e não saiu, foi morar no combro[3] da praia, mas não saiu do seu lugar. Após o massacre do fogo de 51, os nossos parentes estavam todos espalhados em fazendas e vilarejos próximos da aldeia. Os guardas do IBDF, na época da demarcação, chegaram falando que iam demarcar o território que seria a terra dos índios, depois que a terra estava demarcada eles falaram que não era mais uma terra indígena, que era um parque nacional que tava sendo criado em cima daquele território. Disseram que era para os indígenas saírem, se retirar dali, que naquele momento ninguém mais botava roça. E meu pai nesse tempo morava no Campo do Boi, a roça dele era lá, e aí, ele falou: “Vou pra onde, morar a onde? Deixar minhas coisas aqui e sair daqui? Não vou!”.
Naquela época o governo ofereceu uma indenização para tirar o pessoal do local demarcado para o parque nacional. Eles tinham colocado um valor na roça dos índios, e na hora de pagar veio dar outro valor, muito menor que o prometido. Então uns pegavam, outros não pegavam, aqueles que não aceitavam, não pegavam nada, saiam sem nada, aí ele pegou vinte e cinco (25) mil réis naquele tempo e falou: “Eu vou pegar esses vinte e cinco (25) mil réis, mas não vou sair não! Eles que tão me dando, eu vou ficar!”. Contudo, como ele morava no Campo do Boi, dentro da área demarcada pelo IBDF para o parque nacional, ele teve que se juntar aos índios que não saíram de suas terras e foi morar no combro da praia, na beira do mar[4].
Neste local, os índios não tinham espaço para plantar nada, porque na praia não dá nada, ou você vive da pesca ou você vai passar fome. Esses índios moraram um bom tempo lá, no barranco da praia. Ele conta que quando foi um dia, ele estava imaginando o que que ia fazer ali na beira da praia quando então chegou um senhor comprando cobre (eram panelas, coisas velhas, tachos velhos, coisas antigas…), e perguntou a ele se tinha alguma para vender e ele falou: “Rapaz eu mesmo não tenho não, eu não tenho nada! Mas os parentes aí, os mais velhos têm panela, algum tacho véio aí…”. Foi então que o tal senhor falou assim: “Rapaz vocês estão morando aqui? Por quê que vocês estão morando aqui? Vocês moravam numa terra tão boa aí…”
Foi então que ele contou o que havia acontecido, e da proibição de viverem na área demarcada. Após ouvir a situação dos índios relatada por Santana, o senhor que comprava cobre falou pra ele: “Por que que vocês não vão pro Rio de Janeiro, lá no Rio de Janeiro tem um órgão, que é o SPI, e que trata das questões indígenas, por que que vocês não vão pra lá pra resolver estas questões? Eles vão ajudar vocês nestas questões aí…”. Naquele dia o viajante falou pra ele o endereço e explicou que era numa praça que tinha no Rio de Janeiro. Ele era de lá do Rio de Janeiro. Foi então que Santana falou: “olha, eu vou procurar os meus parentes e ver se nós consegue ir…”.
Santana conta que logo após a partida do viajante, ele olhou para ver os índios que tinha mais próximo e foi falar com os colegas. No primeiro momento, os colegas pularam fora, diziam: “Rapaz você tá doido, como é que nós vamos pra lá? Vamos mexer com isso aí? E a polícia moço?”. E ele falou: “Não moço, primeiro nós vamos conversar com o pessoal, vamos procurar apoio”. Aí ele mandou chamar seu tio Epifânio, que nessa época tava morando em Itaquena, o filho de Epifânio, que era Luiz Capitão, e Parmiro. Esse velho veio e falou para ele: “Nós vai!” Então, reuniram mais alguns e pensaram: “como é que nós vamos?”
E assim, eles se reuniram à noite para articular essa viagem, porém um dos membros da aldeia que estava ali na reunião foi até a sede do parque falar pra os guardas que os índios estavam se articulando para ir ao Rio de Janeiro reivindicar os seus direitos. Quando foi no outro dia, os guardas chegaram lá na praia falando: “É, nós estamos sabendo que vocês vão pro Rio de Janeiro reivindicar os direitos, quem for pra lá vai, agora quem ficar aqui vai tomar uma surra”. Então, os índios que estavam querendo ir ficaram com medo e falaram: “Pô, vou deixar meus filhos, minha mulher e meus filhos aqui pra apanhar desses caras”. Foi então que o véio falou: “Não, eu vou meu filho, vocês têm coragem de ficar?” Aí meu pai falou: “Eu fico! Pode deixar sua mulher mais nóis aqui que eu fico, daí o senhor vai”. E assim foram o véio Parmiro, Epifânio e seu filho Luiz. Santana ficou tomando conta das mulheres, ele ficou esperando os guardas e eles não apareceram.
Mas ainda havia outra questão para ser resolvida: “E o dinheiro?”. Foi então que eles se reuniram e venderam “uns trens velhos” que tinham. Manoel Santana, que estava pescando na época, arrumou um saco de peixe e cedeu um jegue dizendo: “Pega esse jegue, bota cangaia nesse jegue, monta e vai embora pela praia até onde o senhor der de topar com uma passagem”. O seu tio Epifânio, que não aguentava andar muito por conta da idade, foi montado até Alcobaça, lá eles deixaram o animal e pegaram um trem para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro onde encontraram com o agente do SPI. Eles fizeram a primeira reunião com eles e retornaram à Barra Velha.
Um tempo depois que eles retornaram, um pessoal do SPI veio para ver como é que tava a situação em Barra Velha, e dessa época que eles foram para o Rio de Janeiro pra cá, foi que começou a evolução de novo da conquista do território. Nesse período Manoel Santana se engajaria na luta pela demarcação do território e não pararia mais. Na época o cacique era o véio Epifânio, depois passou pra Luiz, por isso que o nome de Luiz capitão, porque não era cacique neste tempo, era capitão. E assim começou a história de Santana. Nesse período os Pataxó de Barra Velha não tinham liberdade nem sequer pra pegar lenha na aldeia, só após essa viagem que os pataxó tiveram liberdade novamente para entrar nas matas do território pataxó. Ele sabia articular as suas ações diante da comunidade mesmo sem nunca ter ido à escola. Embora não saiba escrever, ele sabe ler e desenha o mapa do nosso território com todos os detalhe parecendo que foi um profissional de geografia
Depois do fogo de 51, ainda jovem, tinha na sua mente um projeto que poderia lhe ajudar na conquista do território. Ele teve um sonho onde uma pessoa lhe disse: “faça um viveiro de plantas nativas para reflorestar as áreas degradadas do território e assim resolver os problemas com o IBDF”, órgão com o qual viviam sempre em constantes conflitos. Os guardas colocavam o maior terror: “Se botar roça levo todos presos!”. Foi então que Manoel Santana reuniu toda a comunidade para botar uma roça. Santana chamou seu irmão Firmo Ferreira e disse: “Vamos colocar uma roça, quando os guardas vierem eu vou preso por minha comunidade e você tome conta dos outros que ficarem”. Diante de tal iniciativa, seu irmão falou: “Você só não, eu vou também!” e então mais dois colega também disseram que iriam com eles botar a roça. No dia seguinte todos estavam de prontidão para o trabalho, mas o que não sabiam é que na aldeia tinham três colegas que eram espiões dos guardas. No dia seguinte eles saíram de Barra Velha e vieram no pé do Monte Pascoal falar com os guarda que os índios iam colocar roça. Quando foi a tarde mais de dez guardas chegaram na aldeia, mas para azar deles toda comunidade estava reunida, os guardas partiram todos com as armas em cima dos índios mas os índios não se amedrontaram, partiram pra cima deles também e foi aquela correria, os guardas não tiveram coragem de atirar e nesse momento os pataxó colocaram eles para correr.
No momento em que estavam discutindo descobriram que quem eram os traidores do grupo eram os próprios colegas que se assentavam junto com eles nas horas das conversas. No outro dia veio uma intimação de Caraíva, lá tinha um Juiz de Paz chamado Orentinho que conhecia eles muito bem. Os guardas chegaram lá e fizeram uma denúncia afirmando que os índios queriam matar eles, mas eles não disseram o por quê. Quando os índios chegaram lá, o juiz mandou que o grupo voltasse e só dois representantes dos índios fossem à Porto Seguro para prestarem depoimento. Para Porto Seguro foram Firmo Antônio Braz e Liormiro, o restante do grupo voltou para a aldeia. Quando os dois indígenas voltaram da viagem trouxeram uma ordem do juiz autorizando os índios de colocar as suas roças. Naquela ocasião, todos da aldeia vieram agradecer a iniciativa e a coragem de Santana. Assim os índios criaram coragem e partiram para a luta em busca de apoio para a conquista de seu território. Em Porto Seguro o juiz recomendou que eles fossem à Brasília para avançarem em suas conquistas. Com isso os indígenas foram criando coragem e voltando para seus lugares de origem.
Santana morou muito anos em Barra Velha, depois se mudou para Boca da Mata e morou em Coroa Vermelha. Depois retornou à Boca da Mata onde mora atualmente. Com o seu projeto de vida ajudou a criar outras aldeias em torno do Monte Pascoal onde todos os outros novos caciques têm muito respeito pelo seu trabalho.
Nos anos 70, quando a Funai veio para Barra Velha, como os índios passavam muita dificuldades, a Funai comprou redes de pesca e uma canoa (porque dava muito peixe nessa tempo…). Aí, como meu pai já pescava, eles deram para o meu pai botar no mar e pegar o peixe e dividir com a comunidade. Assim, ele ia até o mar, botava a rede, trazia o peixe e dividia para as famílias. Nos dias que pegava muito peixe, ele dividia muito, nos dias que pegava pouquinho ou que não pegava nada, pegava só dois peixinhos, ele cortava as palminhas do peixe e dividia entre aquelas mulheres que estavam amamentando ou gestantes e ia pro mangue pegar caranguejo para ele comer.
Depois a Funai comprou um barco que não era a motor, era à vela, e deu para os índios pescar. Os índios foram para o mar pescar, ficaram uma semana pra lá pescando, garoupa, etc., e trouxeram para Barra Velha muito peixe, trouxeram o barco lotado de peixe, eles dividiram com a comunidade e venderam o excedente. Diante de tal sucesso, marcaram outra pescaria, disseram: “Na próxima semana nós vamos de novo pescar!” Só que era tempo de inverno, chovia muito, com vento forte e o pessoal mais velho falava: “Rapaz não vai esse mês porque não é bom de pesca e dá muito temporal”. O pessoal falava assim: “Olha, não vai não, porque o tempo vai mudar” E mostravam: “Olha o tempo vai mudar, olha a marca no céu aí…”. Os velhos conheciam e diziam: “O tempo vai mudar, vocês não vão sair pra fora”. No dia de ir (meu pai também ia pescar com eles) os índios teimosos: “Ah, nós vai, nós vai moço…”. E o pessoal mais velho dizia: “Rapaz não vai, o tempo vai mudar, o vento sul vai entrar… olha aí o vento sul aí…”. Mesmo assim o pessoal foi, foram sete (7) pessoas, meu pai ia neste dia também, mas na hora de ir ele falou que deu um sono, um sono mesmo que não teve jeito e teve que se deitar de baixo de um pé de mato. Disse que deitou e pegou no sono e o pessoal lá na praia esperando ele: “Rapaz, aquele cara não vai chegar não pra nós ir, vai passar da hora, vai passar da hora!” até que decidiram ir sem ele: “Vamo embora!”. Entraram no barco e foram embora sem ele. Nesse tempo foi o filho de Zé Antônio Braz, o irmão de Luiz, seu Guilhermino, o pai de Naldo que era marido de Cacilda, foi o pai de Gerson, que é o finado Zé Antônio e foi um tal de Forró, que tava em Barra Velha. Eles foram e não voltaram mais…Entraram para o mar e o tempo tava bom, mas aí veio o temporal, o vento sul entrou à noite e foi vento e chuva a noite toda. Foram três dias de temporal e vento forte e o pessoal da aldeia ficou muito preocupado. E eles sumiram no mar, sumiram mesmo e não voltaram mais. Então ficaram as índias na aldeia com os filhos e sem os maridos. Seu Manoel Santana, muito comprometido com aqueles seus parentes, ficou com mais essa tarefa de ajudar as mulheres de seus parentes que sumiram no mar. E assim, tudo que conseguia tinha que dividir com aquelas crianças, foi uma luta muito grande, um sofrimento por bastante tempo, mas lá estava ele, sempre para ajudar. Até hoje, aqueles meninos já estão velhos, pai de netos, mas mantém um grande respeito por ele. Todos têm um grande carinho por ele desde quando ele era rapaz, contam as pessoas que conheceram ele novo que ele fazia as suas roças e que quem precisava ele dava e não queria nada em troca.
Consolidação do território e a luta pelo acesso às políticas públicas de infraestrutura, educação, saúde, preservação do meio ambiente e geração de renda
Em 1980, quando veio para Boca da Mata o primeiro funcionário da Funai, o sr. Cornélio, Santana teve a ideia de criar o primeiro grupo de liderança de Boca da Mata junto com a Funai para cobrar seus projetos para a aldeia pois a escola em Boca da Mata era uma extensão de Barra Velha. Santana se reuniu com as lideranças da aldeia e decidiram criar a sede da Aldeia Boca Mata. Com a sede pronta, a aldeia tinha autonomia para criar os seus próprios projetos e deixar de ser extensão de Barra Velha. Então eles foram até a Funai, ao CIMI e à ANAI e começaram a fazer os seus projetos para a aldeia Boca da Mata.
O primeiro projeto da aldeia que Santana fez foi para a ANAí e a CESE, lá de Salvador, para a compra de gado. Comprou 30 vacas para a aldeia mas, como os índios não sabiam lidar com o gado, as vacas acabaram morrendo. Mas eles continuaram fazendo projetos para a aldeia.
Nos anos 80, funcionava na aldeia uma escola feita de taipa pela comunidade até que vieram os projetos da prefeitura, como a escola e o posto de saúde construídos. Santana também teve a ideia de fazer três chafarizes de água na aldeia para as mulheres pegarem água no meio da aldeia para lavar a roupa e ter água mais fácil. Quando Manoel Santana queria fazer um projeto para a aldeia nunca ele fazia sem antes acertar com os colegas para discutir os temas das atividades que deveriam ser feitas. Por isso, seus projetos nunca davam errados, no seu tempo de cacique toda família da aldeia tinha uma roça da família onde todos trabalhavam em forma de mutirão. Trabalhavam o mês todo, cada dia para uma família na aldeia. Isso era programado antes, onde todos se preparavam pois sabiam que naquele mês todos iriam colocar roça, não ficava ninguém sem botar roça, até os homens da aldeia que não tinham mulher tinham roça, pois eles também participavam dos trabalhos comunitários.
Em Boca da Mata, Manoel Santana também é conhecido como seu Pedro pelos seus colegas. Lá ele realizou muitas atividades tanto na busca da saúde quanto na educação. Ele lutou pelo desenvolvimento da aldeia quando passamos a depender da política do homem branco e passou a cobrar pelo social da aldeia. Então, ele tinha um lema com ele e falava para as pessoas assim: “o seu dinheiro está no banco”. O povo, ouvindo isso ficava assustado e perguntava: “Como o meu dinheiro está no banco?” No que ele respondia: “É muito simples, é só você estudar, estamos precisando de profissionais para trabalhar na aldeia”. O sonho dele era criar os seus próprios profissionais nas suas áreas de trabalho, tanto na saúde, na educação, no saneamento, etc. Assim ele brigou para a construção de um bom colégio na comunidade onde as crianças deveriam estudar e formar os seus professores indígenas.
Na política conheceu José Ubaldino Pinto, candidato a prefeito que ajudou na abertura das estradas para o acesso da aldeia e também construiu o primeiro colégio da comunidade. Foi o começo de uma relação com um prefeito eleito com ajuda da comunidade indígena que fez algo para o povo e que eles não se esqueceram.
Seu Pedro sempre teve uma boa relação com os não índios, é um grande pensador sobre a educação. Ele sempre incentivou os seus filhos a estudarem, por isso a sua família sempre teve uma boa referência na comunidade.
Ele é católico e devoto de Santo Reis. Foi ele também quem criou a primeira igreja na aldeia. Ele também incentivou a pesquisa da língua Patxôhã e as festas tradicionais de Santo Reis no dia 6 de janeiro, São Sebastião no dia 20 e São Braz no dia 3 de fevereiro. Eram festas que eram celebradas só em Barra Velha. Seu projeto se tornou um grande evento da aldeia e hoje é uma grande atração para a região. As festas tradicionais na aldeia todo ano têm um festeiro diferente, antes era só para os índios, mas hoje outras pessoas não indígenas também podem pegar o ramo na festa.
De acordo com a história de seu Santana, o seu pensamento sempre foi trabalhar para ajudar a comunidade no desenvolvimento sustentável gerando uma economia própria com profissionais da aldeia atuando em todas as áreas de trabalho como na educação, na saúde, como motorista ou agente ambiental para fiscalizar o território e em seus arredores. Essas propostas que ele tinha ele não guardava só pra ele. Ele pegava essas ideias e transformava em projetos para a aldeia e com isso foi multiplicando os seus conhecimentos como um bom líder que sempre foi. Para poder fazer seus projetos, Santana tinha o cuidado de toda vez que retornava de uma viagem, fazer uma reunião para dizer o que tinha ouvido das autoridades. Essa é uma preocupação que, às vezes, as lideranças de hoje não têm.
Ele sempre quis ter um representante político indígena para que as autoridades pudessem ouvir os povos indígenas. Com um representante pataxó ele tinha certeza que poderia cobrar do município, do estado ou mesmo em Brasília. Com os nossos representantes políticos indígenas estaríamos mais seguros para ir em busca dos nossos direitos. Seu Pedro tem uma grande importância para a comunidade, quando ele se aposentou pegava o seu dinheiro e comprava tudo da feira e distribuía com a comunidade, quando chamava o povo para uma reunião vinha todos da aldeia e faltava espaço para as pessoas.
Boca da Mata nos anos 2000 começou a perder as matas, foi quando seu Pedro colocou mais um de seus pensamentos em prática, o seu projeto de reflorestar as áreas que estavam sendo desmatadas ou que sofriam com as queimadas na aldeia. E assim, ele reuniu as pessoas da comunidade e mostrou a sua ideia. E assim, esse projeto cresceu tanto que se tornou uma cooperativa de plantas nativas (COOPLANJÉ) e hoje se tornou uma fonte de renda para algumas famílias que viviam da confecção de artesanatos e que precisavam de outro tipo de renda para sobreviver. Aos poucos esse projeto foi se tornando grande e hoje as mudas são vendidas para empresas que fazem reflorestamento na aldeia e fora da aldeia.
O projeto de seu Pedro hoje é uma referência que outras aldeias também querem desenvolver. A ideia é reflorestar as áreas degradadas no entorno do Monte Pascal. A ideia de seu Pedro é também fazer matéria prima de artesanato para as futuras gerações pataxó uma vez que seu lema é: “Se plantar pode colher!”.
Santana criou várias ideias para a sustentabilidade da aldeia como, por exemplo, a proposta de se fazer roças de modo agroflorestal. Essa proposta foi feita junto à órgãos do governo e entidades há muito tempo, mas que agora foi aprovado pelo BNDES para se implantada roça agroflorestal para a sustentabilidade da aldeia. Esse projeto ainda não é suficiente para ajudar toda a comunidade, mas já tem outras propostas que futuramente poderão beneficiar mais famílias na aldeia.
Luta e articulação pela educação escolar na aldeia
Ele também tinha uma preocupação com a educação onde o seu sonho era ver as crianças estudando para tomar conta das suas próprias escolas nas aldeias pataxó. Neste sentido, mesmo antes, quando não tinha nenhuma escola em nossa região, ele reunia aqueles pais que queriam que seus filhos estudassem e procurava alguém que sabia ler alguma coisa e pagava essa pessoa com material da roça, pois naquele tempo também não tinha dinheiro e a pessoa aceitava receber as mercadorias como forma de pagamento para ensinar os filhos daquelas pessoas.
Desde então, quando a FUNAI chegou em nossa aldeias e colocou a primeira escola, para seu Santana foi um grande avanço para os pataxó e assim, realizava mais um dos seus sonhos. Com esse pensamento nunca mais parou de seguir seu extinto de ir sempre buscar uma boa escola para seus parentes estudarem. Seu Santana sempre sabia conduzir as suas manifestações e movimentos em que ele estava à frente, era um dos melhores articuladores quando ia às reuniões com os órgãos do governo para discutir assuntos da comunidade.
O seu lema era que os jovens da aldeia pudessem encontrar uma maneira de trocar o arco e a flecha pelos livros e os cadernos, ele sabia que através da escola os jovens iriam encontrar novos conhecimentos para melhor dialogar com as autoridades do país para o reconhecimento de seus espaços de sobrevivência.
Seu Manoel Santana sempre incentivou e cobrou de seus filhos para que estudassem. Eu, por exemplo, estudei até a quarta série em Barra Velha, quando começou a escola lá. Depois eu vim para Boca da Mata em 1980, não tinha nada aqui, era tudo mata, as primeiras roças foram abertas em 1978 e 1979. Em 1980 eu mudei para cá e, muito tempo depois, eu lembro que um dia eu tava doente, estava trabalhando doente, com febre, e meu pai chegou lá, se sentou num pau e eu peguei conversar mais meu pai. Então ele chegou para mim e falou assim, eu lembro que nem hoje, ele falou assim: “Olha, você vai ter que parar de trabalhar na roça e você vai ter que estudar”. Naquele tempo já tinha a escola em Boca da Mata, mas como eu tinha muitos filhos, dez naquela época, então eu falei para o meu pai: “Como é que eu vou pra escola? Pai, como é que eu vou pra escola com essa gente de menino pra cuidar?”. E ele falou: “Não, você tira um tempo, você tira um tempo pro seus estudos, você trabalha de dia e de noite você… uma horinha que você vai estudar…”. Foi então que eu botei na minha cabeça e falei: “Poxa, então é isso mesmo que eu vou fazer!”. E ele falou: “Porque quando você chegar cá na minha idade você não vai ter fôlego pra você ficar puxando enxada não”. Então eu pensei: “E agora heim?”. Naquele tempo, os filhos obedeciam os pais, e é o que eu tenho falado aqui: eu fui de um tempo que o respeito que os filhos tinham pelo pai era diferente
Então eu voltei para a casa e falei para a minha mulher a conversa que eu tinha tido com meu pai. Naquela ocasião a minha mulher deu um pulo e falou: “Ôh, negativo! Você vai fazer o que na escola?”. Então ela jogou água no meu pensamento, mas mesmo assim eu falei: “Rapaz, eu vou enfrentar e vou fazer o pedido do meu pai!”. E assim, eu peguei um livro, comprei um caderno e na hora de eu ir pra escola eu abracei meu caderno e fui pra escola. Chegando na escola eu topei com uns camarada que me falaram: “Ói, ele bota o caderno igual as muié!’ Mas assim mesmo fui. Na volta, vindo da escola eu topei um compadre meu e falei: “Compadre, bora pra escola moço, mais eu?” E ele falou: “Rapaz o que você vai fazer lá moço? Pára com isso moço, tu não aprende nada mais não!” Ele falou: “Vai trabalhar em sua roça rapaz, é melhor, você vai pra escola perder o seu tempo, não vai aprender nada!”. Aí voltei com a cabeça assim, teimando, não incentivam você a fazer escola depois de grande. Mas eu não desisti.
Comecei a estudar e já no segundo ano de escola me convidaram para dar aula de cultura. Na ocasião eu falei: “Poxa, mas como é que eu vou dar aula? Dar aula me pareceu muito forte naquele momento, como é que eu ia dar aula se eu não sabia nada? Eu já sabia falar algumas palavras de nossa língua tradicional, sabia cantar algumas músicas, mas mesmo assim eu neguei. No mês seguinte me convidaram de novo: “Rapaz vai, você tem potencial pra isso”. Mas eu tinha muito receio de ir para frente de um grupo de pessoas pra falar. Foi então que o cacique falou que me ajudaria, ele era meu irmão e então resolvi começar.
Depois uma pessoa da secretaria me falou: “Se você vai estar dando aula, você vai ter que fazer um curso, você vai ter que fazer o magistério”. Para fazer o magistério eu teria que viajar para Eunápolis, Salvador e Porto Seguro, onde aconteciam as aulas. Nesse primeiro momento a minha mulher não aceitou, a família em casa não apoiou, mas eu ingressei no curso mesmo assim. E foram oito anos de luta até eu me formar. Depois, quando a minha mulher viu que aquele trabalho estava virando uma renda, ela começou a me apoiar e começou a mudar, a ter uma visão diferente sobre os estudos. Foi então incentivado pelo meu pai Manoel Santana que começamos e hoje eu estou na faculdade, cursando a Licenciatura Intercultural Indígena no IFBA de Porto Seguro.
Manoel Santana: grande pensador e educador entre os pataxó
O pensamento dele sempre foi de coletividade, de buscar recurso e desenvolver a comunidade no trabalho, na educação, na política, na saúde, na construção da aldeia. Levantou várias ações e hoje na aldeia ele é lembrado pelas pessoas que vivenciaram sua trajetória política e sua luta pelo reconhecimento dos direitos de nosso povo. Ele também sempre teve uma preocupação com a preservação do meio ambiente, sempre foi mostrando e explicando para as pessoas da aldeia. Sempre falava com os mais novos: “Quando você ir na mata derrubar uma árvore, derrube uma e plante duas porque nunca vai faltar, sempre vai ter”.
Por onde Santana passou sempre tem algo para ser lembrado. Foi um grande conselheiro, se ele via um pai de família jogando bola no meio de semana, quando ele ia até a casa dessa pessoa, ele conversava com ela, com muito respeito ele falava: “Olha seu fulano, você é um pessoa de respeito na aldeia, mas seu filho precisa de você, deixe a bola para o fim de semana, vai plantar no seu quintal um pé de banana, um pé de cana, um pé de batata e quando for daqui alguns dias você terá até pra vender e não vai ser preciso comprar”
A comunidade tem ele como referência em todos os pontos positivos que venha beneficiar o povo. Se uma pessoa queria brigar na aldeia, ele não mandava prender, ele chamava três vezes no conselho e essa pessoa por si mesma acabava envergonhada e até sumia da aldeia Ele visitava a casa de todas as pessoas na aldeia e incentivava a todos da aldeia a estudar. Ele dizia que só através do estudo é que nós poderíamos encontrar conhecimento para ir em busca de novos reconhecimentos de nossa identidade como Pataxó do território Monte Pascoal.
Como vimos, o território Monte Pascoal se tornou palco de luta entre os Pataxó e o órgão do IBDF no passado, pois foi criado um parque nacional em cima do espaço indígena. Até então, nosso povo vivia livre em um lugar com mata, rios, mangues, lagoas e muita fartura de frutos, raízes e mariscos. O governo e os fazendeiros da região foram quem colocaram a vida de nosso povo em um verdadeiro conflito de terra, onde o principal prejudicado foram nós, indígenas. Eles se baseavam em uma lei antiga da capitania de Porto Seguro onde quem não tem o documento de terra não é dono dela. Porém, baseado em uma lei de Deus, Santana nunca desistiu de lutar por seus ideais. Ele queria encontrar uma maneira para dar abrigo ao seu povo, sempre que podia reunia o povo para falar da demarcação do seu território.
Na época do fogo de 51 ele foi um grande marco de resistência, pois não arredou o pé da aldeia e não se curvou diante das ameaças de autoridades que apareciam na comunidade. Ele sempre tinha argumentos para debater e falar temas relativos às questões do seu povo. Com o crescimento da população pataxó nos últimos anos, seu Manoel Santana ajudou na conquista dos espaços das outras aldeias, sendo que quando ele não podia ir nas retomadas, ele mandava um grupo de parentes ir para ajudar as outras pessoas. O seu forte não era fazer retomada, ele sempre preferiu partir para a lei. Sempre que surgia uma retomada ele ia, ou já estava em Brasília para comandar as negociações com as autoridades juntos com os demais companheiros e lideranças das aldeias.
Quando foi para demarcar as 8.600 ha do território Barra Velha ele deu uma grande contribuição para a identificação dos pontos e dos rios no mapa da aldeia, ele conhece todos os pontos referentes à nossa comunidade. Santana, como era referência para os demais caciques, também era um grande conselheiro. Ele sabe dialogar com as pessoas com dinâmica para distrair o público, gosta de uma festa de Reis no mês de janeiro e é devoto de São Sebastião e São Braz.
Notas
[1] Trata-se do transporte de madeira pelo leito do rio, provavelmente em barcas. Em geral do rio Caraíva até a serraria que estava localizada em sua foz. Nota dos editores.
[2] O Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP) foi criado em 1961, tendo inicialmente 22.500 e possui importância biológica ímpar, sendo um dos poucos fragmentos de Mata Atlântica ainda restantes no litoral nordestino. O PNMP é um dos principais remanescentes de um dos três focos de endemismo da Mata Atlântica, com taxa de 26% a 28% das espécies endêmicas e a maior diversidade de árvores por hectare do mundo. Fonte: Texto extraído de Vianna (2004). N.E.
[3] Na praia, nas proximidades do mar. N.E.
[4] Segundo Sampaio (2000), ignorados pelo órgão indigenista nacional e tratados pelo órgão encarregado de administrar o parque como posseiros, os Pataxó foram então forçados a receber indenizações por suas “benfeitorias” e deixar sua aldeia, sendo permitido ficar apenas em uma área de 210 ha em Barra Velha. A maioria dos índios resistiu a isto, sendo porém impedidos de plantar suas roças na área, por isto esta época é considerada uma época de muitos conflitos e de grandes dificuldades de sobrevivência que levaram muitas famílias a uma nova diáspora ou a venderem sua mão de obra para os fazendeiros locais. N.E.
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