biografia

“Seu” Basto Cosme: um migrante Xukuru-Kariri

Autor(es): Adauto Santos da Rocha
Biografado: “Seu” Basto Cosme: um migrante Xukuru-Kariri
Nascimento: 1954
Povo indígena: Xukuru-Kariri
Estado: Alagoas
Categorias:Estado, Alagoas, Biografia, Etnias, Xukuru-Kariri
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“Aí eu cheguei, pai, vô, chegou um dia, parece com três dias nós viajamos para as usinas. Eu nunca tinha visto nem o que era uma roça de cana!

Não tenho nada de usina não! O que eu tenho é desgosto que trabalhei muito, ganhei pouco e nunca arrumei nada até hoje! Arrumei foi só doença. Hoje vivo um velho todo ferrado”.

Sebastião Cosme de Oliveira, “Seu” Basto

Cosme, 64 anos, Aldeia Fazenda Canto.

 

“Seu” Basto Cosme na retomada do Sítio Macaco, Aldeia Fazenda Canto, Território Xukuru-Kariri, Palmeira dos Índios/AL em 2004. Foto: autor desconhecido. Acervo pessoal do “Seu” Basto Cosme.

 

A Aldeia Fazenda Canto está localizada na zona rural em Palmeira dos Índios, região do Semiárido em Alagoas. Foi adquirida em 1952 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) através das mobilizações dos Xukuru-Kariri, liderados pelo Cacique Alfredo Celestino e com amparo financeiro dos índios no Paraná, um processo de “territorialização”[3] fundamental para o aldeamento de 13 famílias indígenas dispersas nos entornos de Palmeira dos Índios e cidades adjacentes como Anadia, Igaci, Quebrangulo, Belém, etc. (SILVA JÚNIOR, 2013).

A partir de 1952 a localidade com solo pobre, cercada por propriedades de políticos opositores ao então Prefeito de Palmeira dos Índios, Manoel Sampaio Luz (Juca Sampaio), ex-proprietário das terras que compuseram a Fazenda Canto, passou a ser administrada pelo SPI com Inspetores que criaram poucas possibilidades de manter a mão de obra dos indígenas nas glebas de terras pertencentes à aldeia. Além dos problemas citados, os Xukuru-Kariri conviveram com redução territorial, pois, o “Seu” Juca Sampaio vendeu 346 ha, mas repassou 276 ha de terra improdutiva, o que provocou deslocamentos dos índios para trabalhos sazonais (MARTINS, 1994; FERREIRA, 2016).

Analisar a história de vida do “Seu” Basto Cosme é fundamental para entender os fluxos migratórios dos índios em busca de trabalhos sazonais no setor sucroalcooleiro em Alagoas, buscando evidenciar os protagonismos de migrantes indígenas Xukuru-Kariri, habitantes em Palmeira dos Índios/Alagoas.

 

Sebastião Cosme de Oliveira, “Seu” Basto Cosme.  Aldeia Fazenda Canto, Território Xukuku-Kariri, Palmeira dos Índios/AL em 09/02/2019. Foto: Adauto Rocha.

 

“Seu” Basto Cosme nasceu em 1954 na Fazenda Macuca, no município de Paulo Jacinto, próximo a Palmeira dos Índios. Filho dos Xukuru-Kariri migrantes e agricultores Cícero Cosmo de Oliveira e Maria Olívia da Conceição passou boa parte da infância morando na zona rural onde nasceu e acompanhando os pais em trabalhos para fazendeiros em Viçosa/AL e municípios adjacentes, época em que trabalhavam como “alugados” por irrisórios salários ou como “meeiros”, dividindo a produção agrícola com os latifundiários.

Teve seis irmãos, dos quais, três residem em Cajueiro e Viçosa, interior em Alagoas, dois em São Paulo e um na Aldeia Fazenda Canto em Palmeira dos Índios. Casou-se com Josefa Rosa Ferreira de Oliveira, com quem teve cinco filhos. Chegou à Aldeia Fazenda Canto, com seis anos de idade, na década de 1960. Na época os avós do “Seu” Basto haviam recebido convites do Cacique Alfredo Celestino para retornarem aos territórios Xukuru-Kariri, esbulhados pelo Estado desde 1872 com a efetivação da Lei de Terras de 1850 na Província de Alagoas (PEIXOTO, 2013).

Sem terras, morando de favor para fazendeiros, “Seu” Cícero Cosmo, pai do “Seu” Basto, decidiu acompanhar os pais para Palmeira dos Índios, pois, viu o processo de aldeamento como possibilidade de se libertar do julgo de patrões nas exaustivas jornadas de trabalho que exercia como vaqueiro ou trabalhador alugado.

Na Aldeia Fazenda Canto criaram-se expectativas de subsistência com a agricultura, resultando, entretanto, em esparsas colheitas pelos solos improdutivos e frequentes secas na região. As alternativas encontradas por muitos Xukuru-Kariri foram às migrações para trabalhos na construção civil, com vaqueiros nas fazendas de invasores dos territórios indígenas, em serviços domésticos, e deslocamentos para a Zona da Mata em Alagoas e estados vizinhos, como a Bahia, na busca por melhores condições de vida (SILVA JÚNIOR, 2013). Nos muitos trabalhos que exerceu o “Seu” Basto Cosme lembrou[4] da época em que atuou no cultivo de cana e como “cabo de turma”[5] em usinas na Zona da Mata alagoana, conforme o mapa[6]:

 

Destinos migratórios do “Seu” Basto Cosme na Zona da Mata em Alagoas

 

Usina Uruba

Usina Ouricuri

Usina Capricho

 

Distribuição geográfica das usinas e destilarias em Alagoas em 1982. Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA. Fonte: ANDRADE, 1988, p. 530. Adaptações: Adauto Rocha.

 

A precariedade na agricultura do Posto Indígena e a falta de água foram situações decisivas para a partida em direção ao “Sul”. As experiências de aprendizagem na escola do Posto foram primordiais no exercício das funções exigidas entre os canaviais, embora as aulas tenham sido interrompidas pelas necessidades materiais e financeiras.

Sobre a experiência na escola “Seu” Basto relatou:

 

Com quinze anos, toda a vida morei ali em cima, pequenininho, pequenininho. Chegou um conhecido do meu pai lá em casa aí falou – eu já tinha andado para a escola, já sabia assinar meu nome e os de umas pessoinhas – aí ele chegou lá em casa e disse, o meu pai se chamava Ciço, aí: “Ciço, e esse menino? Ele sabe ler e escrever o nome de alguma pessoa?” Aí o pai disse: “Sabe!”. Eu estava na fase da escola ainda, estava na escola, estudando, ainda, mas já estava farrapando que estava indo trabalhar para ganhar uma besteirinha. Aí ele disse: “Sabe”. […] Eu já estava meio prático mesmo, conta de dividir eu dividia por seis algarismos, hoje não divido nem por dois. Se eu for dividir, é por dois, apulso! Porque nesse tempo a gente, era tudo manual, não tinha máquina, não tinha nada! A gente fazia conta de multiplicar […] esses cadernos pequeninhos, era uma página daquela para uma conta só de dividir, eu botava os seis algarismos em cima, até o nove e eu saía dividindo, dividindo, até chegar embaixo, eu achava bonito! Eu ganhava nota dez na escola! Eu e um tio do Gênio Messias, aquele que a gente chamava de Edi.[7]

 

Ao recordar o perfil dos trabalhadores que cortavam cana na época, “Seu” Basto afirmou que o trabalho de jovens menores de idade era prática corriqueira nas usinas. Ao ser perguntado sobre a escolaridade dos trabalhadores o entrevistado afirmou ter conhecido muitos bóias-frias que não tiveram contatos com a escola por imposições do ritmo trabalhista. Outros frequentaram ambientes escolares próximos da maior idade:

 

Era sufoco, a vida do agricultor fraquinho, hoje não, hoje estão todos ricos, que hoje não tem mais fazendeiro, hoje não tem mais essas coisas, já foi proibido. Um menino nascia na usina, nas fazendas, só ia para a escola, quando ia pra escola estava com catorze, quinze anos, já. Era um menininho, com nove anos nós já cortava cana igual um cabra velho daqui de cima, mais do que eu, se fosse contratado um molequinho de nove anos, dez anos, cortava mais do que eu. O menino ir para a escola era um bicho, por que […] foi proibido né? Esse negócio de menino sair pra trabalhar na roça com catorze anos, quinze anos, essas coisas, né?!

 

A migração para trabalhar no setor sucroalcooleiro foi provocada pela falta de recursos financeiros. Aos 15 de idade, assim como muitos índios Xukuru-Kariri, vivenciou duras jornadas de trabalho no cultivo e corte da cana de açúcar. As primeiras atividades foram realizadas na Usina Uruba, município de Atalaia, Zona da Mata em Alagoas.

Nos relatos das memórias “Seu” Basto afirmou que a chegada aos canaviais era marcada por indicações dos empreiteiros que arregimentavam os trabalhos, sendo frequentes as estratégias para exploração dos trabalhadores. Uma das formas utilizadas eram os furtos na pesagem ou medição da cana cortada no final das diárias trabalhadas, orientações recebidas quando atuou como “cabo de turma”, medindo e pesando as canas cortadas:

 

Na usina, cabo de turma, lá botaram pra trabalhar como cabo de turma, me ensinou a medir conta para os pinhão, e, pesar cana. A cana era pesada, uma varetinha assim, aí o caba cortava as canas, os móios pra fazer um feixe. Aí deles diziam assim: “você casse o feixinho mais pequeno, só pode apontar de dez quilos, pode ter quarenta, cinquenta feixes de cana, que, pesa um feixe ou dois, os mais pequenininhos daquele meio, só aponta dez quilos e conta os feixes que ele cortou e tira um pelo outro.

 

“Seu” Basto teve os trabalhos como “cabo de turma” interrompidos após o terceiro mês de atividades nas usinas. O retorno para os canaviais ocorreu quando estava próximo de completar a maior idade, dessa vez para limpar os canaviais em Cajueiro, município alagoano. Sobre a interrupção e retorno aos trabalhos em usinas o entrevistado relatou:

 

Três meses, só trabalhei mais esse homem, de empeleitada, aí vim-me embora, não vinha em casa e meu pai foi buscar eu, ainda estava de menor, aí vim embora e não voltei mais pra canto nenhum. Voltei, depois, já ficando de maior, com dezessete anos, aí já fui para várias fazendas, limpar cana com os empeleiteiros também! Chegava assim, em Cajueiro, ai tá o cara, que nem eu fazia mais o empeleiteiro, antes: “êpa meninos, vocês vão trabalhar, querem trabalhar? Chegue pra cá, bote as coisas aqui, nós vamos para a fazenda fulano de tal, assim”. Aí, nós ia. É, pra canavial de cana, limpar, meu serviço era limpar. Limpava assim, no verão, nesse tempo de agora, limpava dois meses, aí pronto, aí vinha pra casa e não ia mais, no outro ano ia de novo.

 

O retorno para a Fazenda Canto ocorria no fim do verão. Com as primeiras chuvas, os Xukuru-Kariri se mobilizavam para as pequenas plantações nas dependências do Posto Indígena. A agricultura para o consumo dependia dos raros volumes pluviométricos. Os trabalhos em usinas geralmente eram exercidos sob a clandestinidade e em regimes sazonais, o “Seu” Basto foi um dos poucos com a carteira de trabalho registrada entre os índios Xukuru-Kariri entrevistados. As atividades na lavoura canavieira foram motivadas pela falta de recursos financeiros e exploração em fazendas circunvizinhas ao Posto:

 

No verão, as roças aqui eram naquela serra ali, aí meu pai não tinha […] a gente trabalhava para o fazendeiro, ganhava um trocadinho, a diário do fazendeiro era muito barata aqui, e lá na usina eu ganhava uma diarinha mais maior, aí eu ia né?! Até quando eu me casei que eu tinha dezenove anos, eu ainda fui uns dois anos, em setenta e cinco foi que eu deixei que fui trabalhar de fichado em usina.

 

As muitas idas e vindas entre o Semiárido e a Zona da Mata em Alagoas ocorreram com o uso dos trens, pelo curto tempo que transportavam os migrantes que saíam das terras indígenas em direção às áreas do setor sucroalcooleiro. De Palmeira dos Índios gastavam em média duas horas, situação bem diferente caso fossem em caminhões cedidos pelas usinas. A chegada nos canaviais era hostil, marcada pela relativa distância do território indígena e o autoritarismo de funcionários com cargos de confiança.

Sobre os deslocamentos em trens o entrevistado afirmou:

 

Apanhava o trem e descia para Cajueiro. Eu esperava o trem nove horas do dia, quando era assim, umas onze horas nós tava lá. Nós ia no dia de domingo, era no dia que eles estavam nas estações, esperando o povo para ir levar […] com o caminhão […] para ir levar para as fazendas. Aí, quando levantava um bocado de gente, que não tinha mais ninguém […] aí empurrava para as fazendas, ninguém sabe a distância, era com dez quilômetros, cinco quilômetros, seis, oito, era assim.Vem gente para trabalhar, eles já sabiam que os sertanejos desciam, no verão os sertanejos desciam para trabalhar nas usinas, aí ficava ali, atocaiando ali. Não era um só não, era um bocado […] o cabra salta com a bolsinha na mão aí ele conhece: “ei, o senhor vai trabalhar? […] vem pra cá! Eu tenho um serviço em tal canto acolá, é limpa, corte de cana, não sei o quê, vamos pra lá que lá é bom”. Aí o caba chegava lá só faltava apanhar do caba, bicho ruim da poxa.

 

Em nossas pesquisas encontramos fotografias da construção de estrada férrea em Palmeira dos Índios em meados do século XIX. Outras imagens retratam a estação ferroviária em pleno funcionamento. O que chamou nossa atenção foi a grande quantidade de passageiros na estação. Observamos a presença de crianças e adolescentes partindo em busca de trabalhos, assim como o “Seu” Basto Cosme, trabalhador na lavoura canavieira desde os 15 anos de idade.

 

Construção da estrada de ferro em Palmeira dos Índios em 1933. Foto: autor desconhecido. Fonte: acervo do GPHIAL.

 

 

Setor de embarque da Estação ferroviária em Palmeira dos Índios em 1933. Foto: autor desconhecido. Fonte: acervo do GPHIAL.

 

“Seu” Basto afirmou que na lavoura da cana trabalhavam debaixo do sol escaldante, com irrisórios salários e sem proteções como: luvas, botas, roupas adequadas, etc. O cotidiano nos canaviais da Zona da Mata em Alagoas consistia em atividades no cultivo e corte da cana de açúcar e em moradias chamadas “barracos”. Construções de alvenaria que serviam para os migrantes dormirem, coletar lenhas, cozinharem a comida que era levada para as atividades de trabalho, conhecida como “boia-fria” pelo cozimento às vésperas da refeição e para lavarem roupas em córregos fronteiriços aos locais de moradias (MENEZES, 2002).

O entrevistado relatou:

 

Nós saía do “barraco”, nós ia […] depende a distância né?! Saía quatro horas da manhã pra chegar cinco e meia no trabalho, de pé. Aí lá, começava a trabalhar, com o dia clareando e quando era quatro horas da tarde largava e vinha simbora. Chegava no “barraco” pra fazer fogo, cozinhar um feijãozinho, pra levar bóia no outro dia, um pouquinho de arroz, nós ia preparar o fogo e preparar um cuscuz, um arrozinho para comer sete horas da noite, também. O pobre é sofrido, é um sofrimento da beleza.

 

Nos finais de semana os migrantes paravam as atividades na lavoura canavieira e retornavam para os “barracos”. Se tivessem transcorrido 15 dias de trabalho, significava que alguns iriam receber o salário das diárias trabalhadas e retornariam para os locais de origens com o dinheiro. Recursos geralmente usados na manutenção da família, como afirmou “Seu” Basto:

 

Bom, chegou o verão, aí o cara tinha que correr para trabalhar nas usinas, trabalhava quatro, cinco meses, seis, dependendo, terminava a moagem. Eu comprava uma calça um calçadozinho, comprava duas roupinhas, dois calçadozinhos, o dinheiro também era pouco aí… E depois, eu casado fui para fazer a feira, chegava aqueles 15 dias de 15 em 15 eu vinha em casa para fazer a compra, aí eu tinha pouco menino tinha só dois, em 1977 assim. Eu comia uma partezinha lá e a outra parte chegava em casa:“olha aqui velhinha!”. Fazia a compra dos meninos.

 

Caso fossem os finais de semana anteriores aos 15 dias trabalhados, os índios migrantes se deslocavam para jogos de futebol nas dependências das usinas em caminhões de carregar cana, conhecidos como “gaiolões”[8]. Eram raros os momentos de folgas do trabalho que o “Seu” Basto denominou como “estar limpo”:

Porque o dia de domingo o cabra já estava fora, estava limpo. Até depois de sábado meio-dia o cabra já estava limpo, aí ia beber cachaça, os que queriam beber. Os outros iam […] já brincavam no sábado de tarde, treinavam e no domingo eles marcavam (o jogo), porque, é muita fazenda, aqui tem um campo, daqui a seis quilômetros tem outro campo, o cara marcava um dia para vir pra cá ou ia pra outro campo, aí tinha, essas coisas sempre tinha. Os caminhão dos fazendeiros enchiam aqueles “gaiolões” de carregar cana enchia da peãosada daquela fazenda e agente ia, quando era terminava, uns já viam cheios de pingas, cervejas, e outros vinham sem beber mesmo, aí vinha. Quando chega(va) em casa, meio doidão, tinha que fazer fogo, botar arroz no fogo, feijão, um pedaço de carne ou charque dentro do feijão, senão, assar, preparar para levar pra madrugada, os seis dias da semana! Uma cabacinha d’água de barro, se pudesse tinha que levar por que tinhas muitas partes de cana, roça de cana que não tem água ali pertinho […] aí nós ia andar muito até chegar no riacho.

 

Uma forma de dominação[9] constantemente utilizada pelos usineiros e empreiteiros para forçar a estada dos migrantes em atividades nas usinas foi a formação de estruturas para a comercialização de alimentos, com valores superfaturados entre os cortadores de cana: os “barracões, como um pesquisador escreveu:

 

O senhor observava para que o morador não pudesse prover sozinho o conjunto de suas necessidades, por exemplo, através da concessão de roçados de tamanho insuficiente para cobrir o consumo anual, ou colocando à sua disposição armazéns vendendo fiado, chamados barracões. Através destas práticas colocava o morador em tal situação que este tinha sempre interesse em trabalhar nos campos coletivos do domínio sob as ordens diretas do proprietário; era o único meio de conseguir um pouco de dinheiro para as compras indispensáveis, como o sal e o querosene, e para o pagamento das dívidas eventuais contraídas no barracão. Além de contribuir para reforçar a dominação específica do senhor, os barracões redobravam o isolamento dos moradores, ao evitar os deslocamentos semanais para as feiras das cidades; então o trabalho, a residência e as trocas necessárias à vida quotidiana se passavam no interior do domínio. Nas situações extraordinárias ou difíceis da vida corrente, nascimentos, doenças, mortes, recorria-se ao senhor, e a sua generosidade nestes momentos que alimentava a imagem de protetor legítimo de todos os que habitavam no interior do domínio (GARCIA JÚNIOR, 1989, p. 40)

 

“Seu” Basto afirmou que os cortadores de cana recebiam tentadoras promessas de melhorias na compra de alimentos e eram enganados pelos empreiteiros, pois, ao menos 1/3 do salário quinzenal era usado para ressarcir dívidas nos “barracões”:

 

Às vezes (o empreiteiro) era cabra ruim da boba, prometia o mundo e o fundo, o cabra comprava fiado no “barracão”, os cabras iam, compravam umas coisinhas para comer, né?! Aí ia trabalhar, botava o cabra pra se ferrar lá, limpar as canas […] novinha, velha. O cara ia de fora, ia comprar, porque ele sabia que o cara ia trabalhar certo pra ganhar um dinheirinho, pronto, hoje a gente trabalha a semana todinha a 40 conto, ganha 200 conto, lá, na época, nesse tempo, devia ganhar 300. Aí, quando era na primeira semana o cara comprava naquele barracão dele, pelo menos 100 o cabra deixava no barracão. Pra o cabra que queria comprar mais daqueles 300 que o cabra ganhou, ele comprava na feira um pouquinho e ia deixar cem pra trazer pra casa. O cabra ia trabalhar pra trazer uma coisinha pra casa. Com quinze dias ou três semanas o cabra tinha que vim em casa trazer um dinheirinho para comprar a piaba dos meninos. Trabalhava na empeleitada dele (o empreiteiro) e ele, quando ia pagar a gente, no sábado, o cara tava devendo, já comprou aquele, tem que descontar.

 

Após o regresso da Zona da Mata alagoana os índios trabalhavam em fazendas, na agricultura e na construção civil. Outras experiências de trabalho em usinas foram na edificação de casas e galpões para armazenamento do açúcar. Ao atuar como servente de pedreiro na Usina Capricho, Cajueiro/AL, “Seu” Basto Cosme utilizou no pouco tempo de descanso a oportunidade para aprender com alguns pedreiros técnicas de construção. Estratégia que favoreceu adquirir uma profissão, possibilitando autonomia financeira longe dos canaviais.

 

Chegou o verão e eu fui para usina trabalhar, fui trabalhar de servente de pedreiro, aí lá comecei trabalhando com os pedreiros, eu trabalhava muito o horário a construção era grande era um galpão para botar açúcar, ele tinha 40 metros de largura com 70 de comprimento era muito grande a “cumieira” dele era coberta com “brasilite” desse grosso, a coberta dele foi de 11 m empena era de 11 m de altura, até um dia nós tava de noite para botar material em cima e nós descemos que a parede balançava muito né, balançava muito, nós com medo de cair nós não ia morrer, o cabra morrer muito novo?Com 21 anos na época eu tinha. Aí lá eu fui treinando, pegando a colher dos pedreiros lá eles trabalhavam por hora, iam para casa tomar café pegava e 6 horas o horário quando era 7 horas ou 7:30 eles iam para casa tomar café e deixaram eu trabalhando pra lá, aí eu ficava reinando eu já tinha tomado café na casa da minha irmã lá eu tava na casa de uma irmã minha e eu ia reinar. Aí chegou um novato que se chama do meu nome, chamava-se Sebastião […] me deu umas dicas para me dar algumas dicas né eu já tinha uns dois meses lá trabalhando […] aí ele foi me dá dando umas dicas e né que quando foi com 7 meses eu pedir as contas para vim embora.

Para evitar o retorno ao trabalho na lavoura canavieira, “Seu” Basto atuou como servente de pedreiro, encanador, “cabo de turma”[10] e vigilante em uma usina na Bahia, conforme o quadro a seguir:

 

Empresa Sede Função Data de admissão: Data de saída:
Construtora E. Bezerra Cavalcanti Ltda. Palmeira dos Índios/AL Trabalhador de construção civil 14/08/1978 08/12/1978
Cunha Construções Ltda. Maceió/AL Servente 12/08/1986 26/03/1987
Master Incosa Engenharia S/A Maceió/AL Cabo de turma 13/06/1987 21/09/1987
Nova Aliança S/A Amélia Rodrigues/BA Vigilante 15/07/1989 27/10/1989

Quadro com registros formais de trabalhos do “Seu” Basto Cosme entre 1978 e 1989.

Fonte: Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) cedida pelo entrevistado.

Elaborado por Adauto Rocha.

Na Carteira de Trabalho e Previdência Social do “Seu” Basto constam registros como servente de pedreiro na empresa Cunha Construtora, entre agosto de 1986 e março de 1987, mesmo o entrevistado tendo ocupado o cargo de pedreiro, função que previa o recebimento de salários mais altos determinados pela responsabilidade ocupada na construção civil, conforme registrado no envelope de pagamento da citada empresa.

Entretanto, na última linha do citado documento está escrito: “o quanto você ganha é assunto seu que merece o maior sigilo”, inibindo as mobilizações dos trabalhadores na busca por melhorias salariais, pois, a empresa sequer pagava valores correspondentes às funções desempenhadas pelo “Seu” Basto, fator preponderante para migrações em busca de outros trabalhos.

 

Envelope de pagamento da Cunha Construções Ltda, 23/01/1987. Acervo pessoal do “Seu” Basto Cosme.

Durante o período em que atuou como vigilante na Usina Nova Aliança em Amélia Rodrigues/BA, “Seu” Basto sentiu saudades de casa. Por ser semi-analfabeto, esperava o fechamento do escritório da usina para datilografar e enviar cartas a Josefa Ferreira, esposa que ficava na Aldeia Fazenda Canto cuidando dos filhos e da pequena roça que o casal mantinha para o sustento da família.

As situações vivenciadas nos trabalhos sazonais inspiravam “Seu” Basto na escrita das cartas e poemas que ressaltavam as más remunerações nos locais de destino. Como o trecho de uma carta datilografada pelo entrevistado na citada usina em setembro de 1989: “aqi soe bom o amizade e nada mas, o melor era udinhero mas e munto poco não da pra qem venhe de longe”. Outras motivações para as datilografias foram: pedido de notícias de Palmeira dos Índios e da Aldeia Fazenda Canto; preocupação com a saúde dos familiares; pedido de ligações telefônicas a esposa; pretensão em procurar novos empregos na construção civil; etc.,

 

Carta para Josefa Rosa Ferreira de Oliveira, durante o trabalho como vigilante na Usina Nova Aliança S/A, Amélia Rodrigues/BA, 17/09/1989. Acervo pessoal do “Seu” Basto Cosme.

Alguns dias antes de deixar o emprego de vigilante e regressar para a Aldeia Fazenda Canto, em outubro de 1989, “Seu” Basto Cosme datilografou outra carta.Na ocasião, o indígena expressou saudades dos/as colegas de trabalho na Bahia e indignação pelo baixo salário que recebia, motivação para o retorno à Aldeia Fazenda Canto, como datilografou:

 

Carta escrita para colegas de trabalho durante o trabalho como vigilante na Usina Nova Aliança S/A, Amélia Rodrigues/BA, 25/10/1989. Acervo pessoal do “Seu” Basto Cosme.

 

Além de migrante, “Seu” Basto Cosme participou nas retomadas de terras realizadas pelos índios Xukuru-Kariri, como a Aldeia Mata da Cafurna em 1979. Recordou ter se mobilizado com lideranças de outros povos indígenas no Nordeste, com José Babosa (Zé de Santa), Vice Cacique Xukuru do Ororubá. Nas muitas funções que exerceu, o entrevistado procurava ter um rádio sintonizado nas emissoras de Palmeira dos Índios para manter-se atualizado sobre os conflitos fundiários com os fazendeiros invasores das terras indígenas, pois, a família do “Seu” Basto Cosme permanecia nos locais de origens.

Atualmente o “Seu” Basto reside, juntamente com a esposa, “Dona” Josefa Ferreira, na Aldeia Fazenda Canto. Sobrevivem de aposentadorias e pequenas produções de bananas, cereais e tubérculos em glebas de terras localizadas nas proximidades do açude da Aldeia. Orgulha-se em afirmar que, juntamente com alguns filhos como o José Carlos (Bagôna), atuou nas mobilizações dos Xukuru-Kariri por reconquistas territoriais e melhorias sociais; participa de assembléias, reuniões e palestras que são realizadas na Fazenda Canto para possibilitar diálogos entre os índios na busca pelo bem comum: a posse de terras que estão invadidas por fazendeiros da região.

Portanto, observamos que as relações de trabalho dos índios Xukuru-Kariri na Zona da Mata alagoana e em atividades sazonais motivadas pela insuficiência territorial nos locais de origens possibilitaram deslocamentos realizados por muitos indígenas na busca por melhores condições de vida, representados pela biografia de Sebastião Cosme da Oliveira, o “Seu” Basto Cosme, um migrante Xukuru-Kariri.

 

Referências

ANDRADE, Manuel Correia de. Área do sistema canavieiro. Recife: SUDENE-PSURE, 1988.

COVER, Maciel. O tranco da roça e a vida no barraco: um estudo sobre os trabalhadores migrantes no setor do agronegócio canavieiro. João Pessoa: EdUFPB, 2011.

FERREIRA, Gilberto Geraldo. Educação formal para os índios: as escolas do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nos Postos Indígenas em Alagoas (1940-1967). Recife: UFPE, 2016 (Tese Doutorado em História).

GARCIA JÚNIOR; Afrânio Raul. O sul: caminho do roçado: estratégias de reprodução camponesa e transformação social. Brasília: EdUNB, 1989.

MARTINS, Sílvia Aguiar Carneiro. Os caminhos da aldeia: índios Xukuru-Kariri em diferentes contextos situacionais. Recife: UFPE, 1994 (Dissertação Mestrado em Antropologia).

MENEZES, Marilda Aparecida de. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famílias de camponeses-migrantes. João Pessoa: EdUFPB, 2002.

OLIVEIRA, João Pacheco de. A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: os Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. João Pessoa: UFPB, 2013 (Dissertação Mestrado em Antropologia).

REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 15-38.

SCOTT, James. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.

SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando sentidos: os Xucuru-Kariri e o Serviço de Proteção aos Índios no Agreste alagoano. Maceió: EdUFAL, 2013.

Entrevista

Sebastião Cosme de Oliveira, ““Seu” Basto Cosme”, 64 anos. Aldeia Fazenda Canto, Território Xukuru-Kariri, Palmeira dos Índios/AL, em 09/02/2019.

 

Notas

[1]As reflexões apresentadas nesse texto são parte das pesquisas realizadas para elaboração da Dissertação de Mestrado no PPGH/UFCG, sob a orientação do Prof. Dr. Edson Silva.

[2]Mestrando em História no PPGH/UFCG como bolsista da CAPES. Licenciado em História pela UNEAL/Palmeira dos Índios. Membro do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas (GPHIAL). E-mail: adautorocha49@gmail.com

[3]No Nordeste ocorreram dois processos de territorialização; o primeiro com a Lei de Terras de 1850 e a extinção dos aldeamentos (em Alagoas ocorreu em 1872); e o segundo processo com a atuação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), primordialmente com instalação dos Postos Indígenas para o aldeamento de índios dispersos. Ver OLIVEIRA, 1999.

[4]Sebastião Cosme de Oliveira, ““Seu” Basto Cosme”, 64 anos. Aldeia Fazenda Canto, Território Xukuru-Kariri, Palmeira dos Índios/AL, em 09/02/2019.

[5]A função do “cabo de turma” era formar e supervisionar grupos de trabalhadores para o corte de cana, além de ser o responsável pela medição ou pesagem no fim da atividade trabalhista, outra possível definição para o cargo seria “turmeiro”. Ver COVER, 2011, p. 17-18.

[6]Dados obtidos na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) do “Seu” Basto Cosme e com entrevistas realizadas na Aldeia Fazenda Canto.

[7]Sebastião Cosme de Oliveira, ““Seu” Basto Cosme”, 64 anos. Aldeia Fazenda Canto, Território Xukuru-Kariri, Palmeira dos Índios/AL, em 09/02/2019.

[8]Nos relatos os Xukuru-Kariri afirmaram que os caminhões de transporte da cana de açúcar, conhecidos como “gaiolões”, receberam essa denominação por assemelharem-se as gaiolas de madeira usadas em caminhões para o transporte de animais, como os bovinos. O que nos chamou atenção foi à similaridade entre as distintas funções de um mesmo transporte: carregar cana durante a semana e transportar migrantes aos sábados e domingos como animais: aglomerados e sem proteções.

[9]A dominação representa as maneiras pelas quais os usineiros obrigavam os cortadores de cana a manterem-se nas atividades, resultando em estratégias utilizadas por migrantes para resistirem aos interesses em explorar mão de obra nos canaviais. Ver SCOTT, 2013, p. 19.

[10]Nesse caso, “Seu” Basto atuou como “cabo de turma” em empresas de instalações hidráulicas, comandando encanadores em Maceió/AL, responsabilizando-se em contabilizar a quantidade de funcionários e os dias trabalhados para os acertos salariais mensalmente.

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