biografia

Manuel Rodrigues de Jesus

Autor(es): Francisco Cancela
Biografado: Manuel Rodrigues de Jesus
Morte: 1734
Povo indígena: Meniã (Kamakã)
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia
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Manuel Rodrigues de Jesus: uma liderança indígena da vila de Belmonte no final do século XVIII[1]

Durante muitos anos a historiografia brasileira renegou aos povos indígenas o papel de protagonista da história. Tradicionalmente, a escrita da história do Brasil foi hegemonizada por uma visão dicotômica que restringia a abordagem da participação dos índios ao conflito entre civilização/barbárie, aliado/inimigo, paz/guerra e aculturação/resistência, resultando na disseminação de uma versão simplista da história que destinava aos povos nativos ou o papel de vítima da colonização europeia ou a colocação de herói que impedia a conquista das terras americanas. Nesta narrativa, os povos indígenas não foram reconhecidos como sujeitos históricos, atuando apenas como atores coadjuvantes da formação histórica da sociedade brasileira (cf. MONTEIRO, 1995; ALMEIDA, 2010; OLIVEIRA, 2016; CANCELA, 2016).

Na contramão dessa tradição, este trabalho analisa o protagonismo dos índios na história do Brasil colonial. Um pequeno percurso da trajetória de vida de uma liderança indígena pôde ser reconstruído através do diálogo com os requerimentos feitos pelo próprio índio para a coroa portuguesa, exigindo reconhecimento régio da sua colaboração na defesa da vila de Belmonte, no posto de capitão da conquista do gentio bárbaro. O processo tramitou na corte lisboeta durante cinco anos, sendo possível perceber as estratégias traçadas por Manuel Rodrigues de Jesus para legitimar sua condição de liderança num período de transformação da política indigenista. Esta história de vida é analisada como um ponto de partida para se pensar as várias políticas indígenas gestadas no cotidiano da sociedade colonial, que permitem não apenas destacar a participação ativa dos índios na história, mas também evidenciar como as estratégias individuais estavam carregadas de experiências acumuladas pela própria história de cada grupo étnico.

No presente texto buscou-se utilizar algumas proposições teórico-metodológicas sugeridas pelo historiador inglês Edward Palmer Thompson. A primeira está relacionada ao uso da idéia de experiência histórica. Segundo este autor, os indivíduos e os grupos sociais não vivem suas experiências de forma desconectada do conjunto das experiências passadas registradas na sua consciência ou na memória coletiva, nem mesmo desligada de seus valores, princípios e hábitos. Frente a determinadas condições históricas, os indivíduos ou grupos sociais vivem suas experiências como necessidades, interesses ou antagonismos (THOMPSON, 1981). Nesse sentido, para entender a experiência histórica do índio Manuel Rodrigues optou-se por investigar o processo histórico no qual os povos indígenas da antiga capitania de Porto Seguro estavam inseridos, tentando compreender e analisar como, em diferentes situações, os índios elaboraram e executaram políticas próprias que deslizaram da negação à adaptação ao mundo colonial.

A segunda proposição está ligada ao modo de analisar os comportamentos dos sujeitos históricos, especialmente em sociedade que o autor classifica como “pré-industriais”. Para Thompson (1998, p. 21), a análise dos comportamentos sociais e políticos das classes subalternas deve ser feita por meio de uma decodificação, na qual o historiador precisa “decodificar suas formas de expressão simbólica, revelando as [suas] regras invisíveis”. Desta forma, para entender o comportamento do índio Manuel Rodrigues de Jesus buscou-se apresentar os vários significados da sua experiência, tanto relacionado ao bem-estar pessoal, quanto referente ao impacto da sua ação para o grupo ao qual pertencia.

A história do índio Manuel Rodrigues de Jesus foi, certamente, muito mais dinâmica e diversificada do que o episódio aqui analisado. Infelizmente, o que sabemos sobre sua vida se restringe aos dados levantados no processo para concessão de salário no exercício do cargo de capitão. A ausência de documentos eclesiásticos da vila de Belmonte (livro de batismo, livro de casamentos e livro de óbitos) e a dispersão da documentação colonial nas inúmeras instâncias de poder do Estado português impuseram forte limitação à formação de um acervo de memória da presença e participação dos índios na sociedade colonial regional. Diante da falta de documentos de autoria indígena e da reprodução de uma política de silenciamento do protagonismo indígena, a alternativa para a reescrita desta história foi a leitura crítica de documentos oficiais acompanhada do exercício meticuloso de cruzamentos de dados (GRENDI, 1998), de ligação nominativa (GINZBURG & PONI, 1989), de contextualização das experiências (THOMPSON, 2001) e de valorização dos indícios (GINZBURG, 1990) encontrados aleatoriamente na documentação.

Um índio colonial da vila de Belmonte

 Manuel Rodrigues de Jesus era natural da vida de Belmonte. Localizada na margem direita do rio Grande (atual Jequitinhonha), a vila surgiu em 1765 para demarcar fronteiras. De um lado, delimitava o alcance jurisdicional da comarca de Porto Seguro, formalizando a fronteira político-administrativa com a comarca de Ilhéus. Do outro, formava um importante ponto de apoio para a expansão portuguesa num território com grandes reservas de madeira e muitas terras férteis, impondo uma fronteira político-militar entre a sociedade colonial e os bravos índios dos sertões do rio Grande. Mas, antes de tudo, a vila de Belmonte foi criada como uma estratégia para “conservar” a utilidade de mais de cem índios Meniãs que habitavam aquelas paragens desde o século anterior (cf. CANCELA, 2018).

Os índios Meniãs formavam um subgrupo dos Kamakã (PARAÍSO, 2014). A sua história está marcada por uma trama de conflitos, negociações e acomodações, comuns também aos demais grupos indígenas na América portuguesa. Habitantes originários do território entre os rios Pardo e de Contas, na capitania de Ilhéus, os Meniãs foram violentamente atacados por expedições escravistas dos paulistas durante a primeira metade do século XVII, sendo parte da sua população dizimada nesses conflitos. Os sobreviventes das correrias escravistas resolveram avançar sobre outros territórios, deslocando-se para o sul, em direção ao leito do atual rio Jequitinhonha, fugindo dos perigos dos sertões de cima e procurando algum abrigo que lhes garantisse, ao menos, a vida. Nesse deslocamento, acabaram por fazer contato com os colonos Francisco Burjon, José de Oliveira Correia, André Brito de Almeida, Francisco de Oliveira Rego e o capitão Simão da Silva, todos moradores da freguesia de Santa Cruz, distante cinco léguas da vila de Porto Seguro[2].

Ao se aliarem aos colonos, os índios Meniãs foram aldeados em algumas fazendas na margem do rio Grande. Em 1681, o governador do Estado do Brasil, Roque da Costa Barreto, autorizou a criação de um único aldeamento com os índios Meniãs, concedendo a Francisco Burjon o direito de administrá-lo. Para orientar a administração desses índios, o governador despachou um regimento datado de 1678, que estabelecia as regras para a administração dos aldeamentos particulares no Brasil. Esse regimento instituía a necessidade da assistência espiritual aos administrados, legitimava o governo temporal dos administradores e regulamentava a repartição da mão de obra, determinando que os índios trabalhassem “no serviço dos moradores e na conquista do gentio bárbaro”[3].

Por mais de 50 anos, Francisco Barjon administrou os Meniãs, aproveitando-os como mão de obra compulsória nas atividades de pesca, no corte de madeira e na plantação de mandioca. Além disso, disponibilizou inúmeras vezes seus administrados para o serviço público, especialmente nas atividades de abertura e manutenção de caminhos e de defesa contra os índios dos sertões. Com sua morte em 1734, seus netos, os padres José de Araújo Ferraz e Sebastião de Araújo Barjon, recorreram à justiça para conquistar o direito de administrar o aldeamento, conforme o “uso e costume da terra”. Pouco tempo depois, em 1739, a câmara de Porto Seguro emitiu um documento favorável ao padre José de Araújo Ferraz, assegurando-lhe o cargo de administrador e enaltecendo a “competência e zelo” com estava “ensinando a doutrina e ministrando os santos sacramentos” aos índios Meniãs[4]. O controle da família Ferraz sobre esses índios demonstra o recurso a um direito tradicional que sustentava a prática dos aldeamentos particulares, o qual

se fundamentava ideologicamente na justificativa de que os colonos prestavam um inestimável serviço a Deus, ao rei e aos próprios índios ao transferir estes últimos do sertão para o povoado – ou, na linguagem de séculos subsequentes, da barbárie para a civilização – e se firmava juridicamente no apelo ao “uso e costume” (MOTEIRO, 1994, p. 139).

Em fins de 1759, a notícia da decretação da liberdade dos índios pelo marquês de Pombal chegou ao aldeamento do padre Ferraz por intermédio do capitão-mor Antônio da Costa Souza e do ouvidor interino Manuel da Cruz Freire. A recepção dessa informação por parte dos índios se traduziu numa expectativa política de ruptura com os grilhões que os amarravam ao modelo da administração particular, que, em pouco tempo, resultou na total desestruturação da povoação criada no século anterior. Alguns índios resolveram retornar para os sertões, fugindo do contato permanente com a sociedade colonial. Outros optaram pela vida itinerante, dispersando-se em pequenos grupos pelas longas margens do rio. E ainda tiveram uns, liderados pelo índio Baltazar Ramos, que decidiram negociar melhores condições de vida, deslocando-se para uma grande palhoça e roçado de mandioca que lhes ofereceu o colono Manuel de Araújo, morador da freguesia de Poxim, na margem esquerda do rio, no território da capitania de Ilhéus.

Em 1763, outra ordem pombalina interferiu na história dos índios Meniãs.  Ao tentar construir um modelo alternativo de administração para a antiga donataria, o reinado de d. José I transformou a capitania numa ouvidoria subordinada ao governo geral da Bahia e nomeou um magistrado régio para ministrar a justiça, instituindo mecanismos mais sofisticados de fiscalização e centralização do poder. Com vistas a integrar a região ao sistema colonial, determinou sua transformação num polo produtor de gêneros alimentícios para abastecer as cidades do Rio de Janeiro e Salvador, fomentando a dilatação da ocupação territorial, a expansão das atividades agrícolas e extrativistas e a construção de canais de comunicação terrestre com o Rio de Janeiro[5].

Para a viabilização desse empreendimento, o aproveitamento da população indígena da capitania se converteu numa condição fundamental. Com sua efetiva participação no processo colonial, seria possível criar novas povoações e aumentar o domínio português sobre os sertões de Porto Seguro. Como agentes da colonização, os índios passariam a contribuir com a arrecadação tributária e participariam das instituições de poder local. Atuando no mundo do trabalho, seriam obrigados a abrir roças de mandiocas e a prestar serviços compulsórios aos colonos luso-brasileiros. Com tal estratégia, empregada à época em todos os cantos da colônia americana por meio do Diretório, os povos indígenas assumiram um papel central no projeto reformista de colonização da antiga capitania (cf. ALMEIDA, 1997).

Um dos aspectos basilares do projeto colonial definido pelo reinado de d. José I, em 1763, para a antiga capitania de Porto Seguro consistia na ocupação efetiva de seu vasto território. Na intenção de reverter um quadro de total descontrole sobre aquele domínio colonial, no qual os sertões se agigantavam frente a pequenos vilarejos, a coroa portuguesa ordenou aos seus oficiais régios a tarefa de criar novas povoações coloniais com o objetivo de dilatar o controle sobre as gentes e os territórios porto-segurenses, expandindo o domínio monárquico sobre uma região estrategicamente localizada entre os dois principais centros urbanos da colônia americana (Salvador e Rio de Janeiro) e o seu mais importante centro produtor de ouro e pedras preciosas (capitania de Minas Gerais). Desta forma, por meio do estabelecimento de novas vilas esperava-se alcançar melhores condições para o aproveitamento da população indígena local, maiores possibilidades de exploração das riquezas naturais da região e maior capacidade de controle fiscal das vias de acesso à Capitania de Minas Gerais, bem como de defesa militar contra as intensas incursões que os índios hostis realizavam nas fazendas, povoações e estradas de Porto Seguro.

O estabelecimento dessas novas vilas deveria ser realizado através da incorporação dos índios “mansos”, ou seja, aliados à política colonial portuguesa. De acordo com as ordens régias encaminhadas aos ouvidores, as novas vilas deveriam ser formadas tanto pela reunião das pequenas povoações indígenas classificadas como “domesticadas” quanto pelo agrupamento de “índios descidos” dos sertões em tom de paz. Em ambas as situações, a coroa portuguesa nomeava as populações indígenas como agentes essenciais para o povoamento da antiga capitania de Porto Seguro, dependendo diretamente do seu engajamento para a realização do projeto colonial, gerando, por isso, a possibilidade de conflitos, a necessidade de negociações e boa dose de riscos.

Foi nesse contexto que a vila de Belmonte foi criada em 1765. O primeiro desafio do ouvidor Tomé Couceiro de Abreu foi convencer o líder Baltazar Ramos a retornar à capitania de Porto Seguro, juntamente com os demais índios Meniãs. Numa difícil negociação de três dias, o ouvidor apresentou os direitos que o Diretório assegurava à população indígena, como servir nos cargos da governança local e possuir lotes individuais de terras. Baltazar e os índios Meniãs aceitaram fundar a nova povoação, reconhecendo a freguesia de Santa Cruz como o primeiro local de abrigo dos seus antepassados e que representava uma “herança” territorial que lhes era fundamental não apenas para a afirmação da sua identidade étnica como também para a apropriação dos recursos naturais locais que lhes garantia a sobrevivência econômica e social. Além disso, a apropriação dos direitos difundidos pela legislação pombalina pode ter sido realizada a partir de um contraponto à antiga condição de subordinação direta ao administrador, surgindo uma interpretação de novas possibilidades de mediação entre os interesses indígenas e a demanda colonial por meio do uso desses “cargos honrosos de juízes e vereadores” que o Diretório assegurava aos próprios índios. Desta forma, ao aceitar a recomposição da antiga povoação e criação da nova vila na margem direita do rio Grande, os Meniãs apostavam na construção de um cenário de maior barganha dentro da própria situação colonial.

Foi nessa vila de índios, no final do século XVIII, que Manuel Rodrigues de Jesus emergiu como liderança indígena. Fazia parte da segunda geração de índios que viviam inseridos na dinâmica colonial das vilas pombalinas, participando da câmara, das ordenanças e das irmandades. Casado com uma índia chamada Rosa, com quem vivia “com muito honrado procedimento”, era qualificado como exemplar para os outros indígenas. Pela sua postura de mediador dos interesses da população indígena local frente os poderes coloniais, Manuel recebia elogios por ser “bom católico e amante da Pátria”[6].

Uma liderança indígena militar

Manuel Rodrigues de Jesus estava alistado nas ordenanças da vila de Belmonte. Criadas originalmente no reinado de d. João III, no ano de 1549, as companhias de ordenanças eram forças militares auxiliares que possuíam importante papel na defesa da ordem pública e na conservação da soberania portuguesa nas inúmeras vilas, cidades e lugares do seu império ultramarino. Considerada como um mecanismo de “militarização geral da sociedade”, as ordenanças estavam assentadas em um sistema de recrutamento obrigatório, que compelia todos os homens maiores de 16 anos e em condições de pegar em armas a se alistarem em suas companhias (MAGALHÃES, 1988, p. 338). Sem remuneração e sem treinamento militar sistemático, esses “paisanos armados” eram escalados ocasionalmente para atuarem em situações emergenciais, tais como a contenção de uma revolta, a captura de fugitivos, a defesa das fronteiras ou a prisão de criminosos.

Ao serem implantadas na América portuguesa, as ordenanças cumpriram papel crucial enquanto representação do poder régio a nível local. De acordo com Caio Prado Júnior (1970, p. 301), essas instituições militares tiveram a capacidade de espalhar a ordem régia sobre o território americano, enraizando “as malhas da administração cujos elos teria sido incapaz de atar, por si, o parco oficionalismo oficial”. Nanci Leonzo (1986, p. 325), por sua vez, também destacou a importância das ordenanças não apenas como um instrumento de defesa militar, “mas, sobretudo, [como] um importante auxiliar da administração central na tarefa de submeter e disciplinar a população local”. No entanto, pesquisas mais recentes têm destacado o caráter ambíguo dessa instituição, pois, para além da sua natureza político-disciplinadora, as ordenanças também atuaram como dispersadoras do poder monárquico ao fomentar o fortalecimento das elites locais por meio da reprodução de uma lógica clientelar baseada em critérios de amizade, fidelidade, honra e serviço, que possibilitava, inclusive, a ascensão social de sujeitos tradicionalmente marginalizados (cf. MELLO, 2002; COTTA, 2002).

Na antiga capitania de Porto Seguro, as companhias de ordenanças criadas nas novas vilas de índios incorporaram um sentido especial para a luta política das populações indígenas locais. Com ritmos distintos, os moradores indígenas iam aos poucos ocupando espaço no interior das companhias que se formavam em cada povoação. Em vila Verde, os índios organizaram duas companhias de infantaria, formadas exclusivamente por indígenas e, além de tudo, comandadas por capitães também indígenas. Na vila de Trancoso, três companhias de índios foram instaladas, sendo sujeitas ao capitão-mor da vila de Porto Seguro. No Prado, com a presença mais intensa de moradores brancos, a companhia de ordenanças local era composta por índios e luso-brasileiros, sendo o cargo de capitão ocupado por um não índio. Em Viçosa, o ex-diretor dos índios Inácio Valensuela Veiga chegou a ser nomeado como capitão-mor de um terço das ordenanças da vila, que era composto majoritariamente por companhias de índios. Desta forma, não tardou para que os índios representassem quase a maioria dos homens listados nas companhias de ordenanças instaladas em Porto Seguro[7].

Esses milicianos indígenas eram requisitados para vários serviços em suas vilas. Em 1788, por exemplo, um grupo de soldados índios foi escalado para investigar uma denúncia de mineração ilegal nas cachoeiras do rio Grande de Belmonte. Em Porto Alegre, alguns índios da companhia das ordenanças foram nomeados para sair em busca de degredados que haviam fugido da povoação. Na vila do Prado, por sua vez, os soldados indígenas também foram obrigados a prestar serviços nas obras públicas, sendo convocados a trabalhar na construção de uma estrada próxima ao povoado de Cumuruxativa[8]. Apesar da grande versatilidade aparente, os milicianos indígenas eram, na verdade, os principais elementos requisitados pelas autoridades coloniais para o serviço da conquista dos gentios bárbaros, servindo majoritariamente nas expedições de ataque ou defesa contra grupos indígenas dos sertões. A importância desses índios militares nessas diligências se devia ao domínio das técnicas de guerra nas matas, a sua capacidade de sobrevivência na floresta e a sua habilidade de atuar como mediador cultural.

E foi inserido nesse contexto que Manuel Rodrigues de Jesus vivenciou a história que compõe o enredo deste capítulo. Nos primeiros anos da década de 1790, a vila de Belmonte estava envolvida na construção da nova igreja matriz da freguesia de Nossa Senhora do Carmo. Para colaborar com a empreitada, o soldado das ordenanças Manuel Rodrigues de Jesus foi escalado para a montagem de uma pequena expedição que subiria o rio Grande de Belmonte em busca de algumas pedras para a feitura do altar-mor do templo. Por conhecer os caminhos e as riquezas das matas do rio, a câmara municipal permitiu a partida da expedição, confiando a liderança da tropa ao índio Manuel. Contudo, antes de completar a missão, o grupo foi atacado nos sertões das cachoeiras por índios não aliados. Neste momento, segundo declaração do padre Joaquim Pereira Botelho, “mostrou o dito Manuel seu grande ânimo, pondo-se na frente de seus companheiros, seguindo o gentio de tal forma que breve os pôs em fuga, ficando um morto” [9].

Ao retornar à vila, Manuel foi enaltecido pelos membros da expedição. A coragem, a lealdade e a capacidade do índio foram difundidas como princípios fundamentais para serem apreciados e imitados por outros moradores indígenas da povoação. Em conseqüência do clima de heroísmo vigente, a câmara da vila de Belmonte resolveu encaminhar ao governador da Bahia, d. Fernando José de Portugal, um pedido de mercê ao índio, solicitando a concessão da patente de capitão da conquista do gentio bárbaro daquela região. No documento, os vereadores descreveram a “necessidade que tinham naquele continente de um capitão de conquista para evadir os insultos que o gentio bárbaro estava praticando todas as vezes que encontravam os portugueses”, além de destacar a “capacidade do índio Manuel Rodrigues de Jesus, por ter mostrado a experiência seu grande valor, zelo e atividade para semelhante emprego”[10].

A distribuição de títulos militares e políticos a lideranças indígenas foi uma estratégia comum na colonização portuguesa da América. Para assegurar os objetivos coloniais da expropriação da mão-de-obra, da ocupação do território e da defesa das povoações, os colonizadores tiveram que realizar negociações com as lideranças nativas, resultando na incorporação destes indivíduos em cargos militares e políticos, além do atendimento de algumas reivindicações dos seus comandados. Maria Regina Celestino de Almeida (2001, p. 53) explica que

Prestigiar, enobrecer e valorizar lideranças indígenas, através da concessão de favores, títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio fazia parte das políticas espanhola e portuguesa da colonização, visto que as chefias desempenhavam papel fundamental no processo de integração de seus subordinados ao sistema colonial.

Este mecanismo, na verdade, fazia parte da cultura e da prática política do império português. Representava uma das formas da monarquia moderna lusitana integrar e controlar a ampla e fragmentada estrutura pluricontinental da administração colonial. Ao fazer uso de redes clientelares típicas do Antigo Regime, a coroa cimentava relações sociais e políticas no seu vasto império através do tripé “dar, receber e retribuir” (HESPANHA & XAVIER, 1993). Em síntese, ao conceder uma mercê a um vassalo que prestou algum serviço importante à monarquia, o rei estava retribuindo o favor prestado e recebia em troca a fidelidade e a dilatação de seu poder soberano. De acordo com Fernanda Bicalho (2010, p. 220-221), essa norma assegurava os “mecanismos de afirmação de vínculo político entre vassalos ultramarinos e o soberano português”, garantindo “a coesão política e o governo do império”.

No caso do índio Manuel Rodrigues de Jesus, a legislação indigenista, baseada no Diretório dos Índios, garantia o direito dos indígenas de ocuparem cargos militares e políticos (cf. DOMINGUES, 2000; COELHO, 2005; SAMPAIO, 2001). Criado no contexto das reformas ilustradas e no bojo dos conflitos territoriais com a Espanha, o Diretório visava integrar os povos indígenas à sociedade colonial, por meio da extensão da vassalagem aos índios, da substituição dos missionários por párocos, da introdução de administradores civis chamados diretores, da obrigação do uso da língua portuguesa, da transformação dos indígenas em pagadores de impostos, do incentivo ao casamento interétnico, da introdução do governador como mediador na distribuição da mão de obra indígena e da transformação das chefias indígenas em autoridades coloniais. A esta última proposição, orientava aos diretores que

assim em público, como em particular, honrem e estimem a todos aqueles índios que foram juízes ordinários, vereadores, principais ou ocuparem outro qualquer cargo honorífico; e também as suas famílias, dando-lhes assento na sua presença e tratando-os com aquela distinção que lhe for devida, conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais, para que vendo-se com os ditos índios estimados pública, e particularmente, cuidem em merecer com o seu bom procedimento as distintas honras com que são tratados, separando-se daqueles vícios e desterrando daquelas baixas imaginações, que insensivelmente os reduziram ao presente abatimento e vileza (FURTADO, 1758).

Um índio agraciado com título, honras e privilégios

Atento à legislação indigenista e às demandas da própria colonização, no dia 15 de setembro de 1795, o governador d. Fernando José de Portugal atendeu ao pedido da câmara e nomeou o “dito Manuel Rodrigues de Jesus no posto de capitão da conquista do gentio bárbaro no termo da vila de Belmonte”, designando o capitão-mor da capitania de Porto Seguro para dar posse ao índio agraciado. Na carta patente, o capitão-general da Bahia exigiu que os demais “oficiais maiores e menores, tanto de guerra quanto de milícia, o honrassem, estimassem e respeitassem por tal cargo”.  Notificou também que a aquisição do título militar não resultaria no vencimento de soldos pagos pela Real Fazenda, mas alertou que o índio gozaria “de todas as honras, graças, franquezas, privilégios e isenções que lhe tocam, podem e devem tocar aos mais capitães respectivos” [11]. Sendo assim, mesmo sem o recebimento de salário, a conquista do título de capitão atribuía a Manuel Rodrigues de Jesus uma condição diferenciada que alterava seu lugar na hierarquia da sociedade colonial portuguesa uma vez que, segundo o próprio regimento das ordenanças,

todo capitão-mor e capitão logram do privilégio de cavaleiro fidalgo; todo militar goza de nobreza pelo privilégio do foro, ainda que antes de o ser militar tenha sido mecânico, de qualquer qualidade, ou condição (…). São também isentos dos encargos dos concelhos, não pagão jogados aos reguengos, não podem ser presos em ferros, nem presos por dívida; logram o privilégio de aposentadoria ativa e passiva [12].

A nova condição de Manuel Rodrigues de Jesus era, de fato, diferente da dos demais indígenas. A nobilitação conquistada, ainda que fictícia do ponto de vista econômico, tinha grande importância política, especialmente no que se refere a abertura de um canal de negociação mais direto com as autoridades régias. Também se destaca o fato de não pagar impostos, nem ter que se submeter às demandas tributárias e laborais da câmara. Sendo assim, a mercê alcançada por Manuel pode ser considerada como um importante marco de sua atuação como liderança indígena.

No final de março de 1796, a carta patente chegou à vila de Belmonte. Após seis meses da nomeação, o índio Manuel Rodrigues de Jesus pôde gozar oficialmente da graça conquistada perante a monarquia portuguesa. Faltava tomar posse conforme a tradição e legislação da época. Por isso, Manuel Rodrigues se dirigiu à vila de Caravelas, onde se encontrava João da Silva Santos, capitão-mor da capitania de Porto Seguro, para apresentar a carta patente e oficializar seu título de capitão. Finalmente, no dia 27 daquele mês, Manuel Rodrigues de Jesus tomou posse de seu cargo, fazendo juramento de “bem e fielmente guardar em tudo e cumprir com suas obrigações no [seu] ministério”[13].

No exercício do cargo de capitão, Manuel Rodrigues buscou garantir a defesa da vila de Belmonte frente aos constantes ataques dos “índios bravios”. Nas várias expedições que realizou, expeliu os “inimigos da terra” para os territórios mais distantes, permitindo maior segurança para os moradores da vila, sobretudo para as lavouras de mandioca que se espalhavam sobre as margens do rio e para a extração das ricas reservas de madeira existentes na região. Com os bons serviços prestados, o capitão indígena resolveu recorrer ao governador da Bahia, solicitando o pagamento de salário, pois não conseguia garantir sua sobrevivência econômica e, ao mesmo tempo, desempenhar com desenvoltura sua função militar. No entanto, quebrando a lógica clientelar típica das relações políticas do Antigo Regime, d. Fernando José de Portugal negou a concessão do referido benefício, desprestigiando os serviços realizados pelo capitão Manuel Rodrigues de Jesus.

Insatisfeito com a posição do governador e com a situação em que vivia, Manuel Rodrigues resolveu tomar uma atitude drástica. Aproveitou suas relações construídas no porto da vila por causa de sua profissão de prático e embarcou em direção a Lisboa, onde buscaria “recorrer à Real Grandeza de Sua Majestade e colocar na sua Real Presença os referidos fatos” [14]. Em fins de 1798, o índio chegou à capital do império ultramarino português, dirigindo-se imediatamente ao Desembargo do Paço para requerer a mercê desejada.

Ao relatar seu pedido ao escrivão régio, demonstrou o domínio de uma lógica política própria das relações de poder da sociedade portuguesa – embora não soubesse ler e escrever. Em primeiro lugar, fez questão de informar que sua patente de capitão havia sido “conferida a requerimento da câmara daquela vila [de Belmonte] em atenção aos serviços pelo suplicante obrados”. Ao caracterizar estes serviços, destacou seu empenho na conquista dos territórios circunvizinhos àquela povoação por meio do ataque aos “inimigos bárbaros”, alertando que nessas diligências atuava “com grande risco de sua vida e com grandioso ânimo, valor e desembaraço”. Em seguida, procurou apresentar sua importância para a dilatação dos negócios coloniais naquele domínio ultramarino, dizendo que ele era “útil e preciso ao Real Serviço naquele continente no exercício do referido posto para evadir os insultos que o inimigo bárbaro esta[va] continuadamente praticando”. Por fim, depois da construção de uma cadeia de fatos, serviços e benefícios, o índio expôs seu desejo de receber soldo pelo cargo de capitão da conquista, argumentando que este vencimento era “indispensavelmente necessário, tanto para sua subsistência e de sua mulher, como para suprir as despesas nas ocasiões do Real Serviço” [15].

 

Um índio reivindicante de seus direitos

O trâmite burocrático do processo certamente acentuou as incertezas e os sofrimentos de Manuel Rodrigues de Jesus. Como procedimento padrão da máquina administrativa portuguesa, o Conselho Ultramarino encaminhou uma carta para o governador da Bahia, solicitando a confirmação das informações declaradas pelo índio. Longe de sua terra natal, solitário numa grande cidade, atordoado com outro modo de vida e assolado pelo forte inverno europeu, o capitão indígena começou a perceber o longo caminho que ainda restava para alcançar a “Real Clemência de Sua Majestade”.

No dia 05 abril de 1799, quase seis meses após sua chegada em Lisboa, Manuel Rodrigues resolveu fazer um novo requerimento. Indignado com a demora do processo e indisposto pela penúria em que vivia, o índio se pôs novamente diante do escrivão régio e radicalizou na estratégia de valorizar seus serviços prestados, acrescentando um novo elemento distintivo: a afirmação de sua identidade e a opção de servir à coroa portuguesa. Nesta ocasião, ditou ao escrivão que era “índio de nação” e que já teria prestado “relevantes serviços” para a monarquia portuguesa, “impedindo os insultos dos inimigos bárbaros” à vila de Belmonte. Aproveitou para informar que, na diligência de ir ao reino suplicar seu soldo, gastou todo dinheiro que havia trazido e, por isso, encontrava-se “consternado em terra estranha, onde não tem conhecimento algum”, além de estar na “triste situação de não ter com que se transportar para sua Pátria” [16]. Nessas condições, solicitou ajuda de custo para retornar à Belmonte e a urgente confirmação de sua patente e soldo.

Lamentavelmente, Manuel Rodrigues de Jesus não sabia que o pior ainda estava por acontecer. A resposta enviada pelo governador da Bahia colocava em cheque seus principais argumentos, chegando ao ponto de afirmar que desconhecia o suplicante, apesar da tentativa de encontrar nos arquivos da Secretaria de Estado os papeis referentes ao assunto. Mais problemática ainda foi sua alegação de que não sabia qual era o posto ocupado pelo índio, nem mesmo o “insignificante serviço” que alegava ter realizado. Com tais argumentos, tudo parecia convergir para uma verdadeira derrota dos objetivos do índio Manuel Rodrigues de Jesus. Mas, ao finalizar sua missiva, d. Fernando José de Portugal permitiu uma última esperança ao reconhecer a possibilidade de veracidade do caso, alertando ao monarca que “à vista de outro semelhante requerimento composto por documentos comprobatórios que diz o dito Manuel possuir, julgará Sua Majestade o que for servido” [17].

Após dez meses em terras lisboetas, Manuel Rodrigues de Jesus redigiu seu último requerimento naquela cidade. Confiante nos direitos que possuía, solicitou que se juntassem ao processo alguns documentos que comprovavam sua patente, bem como atestavam seu bom comportamento e eficiência no exercício de capitão. Assinados pelo vigário da vila, pelos oficiais da câmara e pelo capitão-mor das ordenanças, esses documentos confirmavam não apenas a verdade dos fatos, como também a sagacidade e consciência do índio Manuel, que se armou com um conjunto de documentos oficiais – considerados elementos essenciais na cultura política administrativa do império português[18].

Finalmente, em 15 de fevereiro de 1800, o índio Manuel Rodrigues de Jesus conquistou a mercê régia desejada. A sua persistência lhe garantiu não apenas o direito ao soldo, como também o pagamento retroativo de seus vencimentos a fim de custear o translado para a capitania de Porto Seguro. Demonstrando grande compreensão da lógica política da sociedade portuguesa do Antigo Regime, Manuel Rodrigues de Jesus fez valer sua condição de vassalo e conseguiu tirar benefício do sistema de mercês instituído nas relações de poder. Infelizmente, não foi possível saber as condições do retorno do capitão indígena à América portuguesa, nem a recepção dessa liderança pelas autoridades e demais colonos da vila de Belmonte. Contudo, o conteúdo do despacho do Conselho Ultramarino já indicava os novos horizontes que esperariam Manuel Rodrigues do outro lado do Atlântico:

Para Vossa Majestade seja servida por sua Real Grandeza e Graça espiritual em atenção aos sobreditos serviços [de Manuel Rodrigues de Jesus], fazer-lhe mercê de lhe conferir o soldo competente do posto de capitão de infantaria ou aquele que for servida destinar-lhe para sua subsistência e que este lhe seja paga nesta Corte desde o dia da sua praça e posse do dito posto até o em que se conferir esta graça para se poder transportar para aquele continente a continuar o seu serviço, sendo outrossim também Vossa Majestade servida confirmar-lhe a referida patente e mandar que em virtude dela se lhe passe Patente Régia com vencimento do soldo que lhe conferir[19].

Pensando as políticas indígenas a partir da experiência de Manuel Rodrigues

A experiência vivida por Manuel Rodrigues de Jesus pode ser tomada como ponto de partida para pensar as políticas indígenas formuladas e executadas pelos povos indígenas durante o período colonial na América portuguesa. Ao embarcar para o reino com objetivo de assegurar direitos legalmente conquistados e, principalmente, ao construir estratégia argumentativa que reforçava seu lugar e papel na sociedade colonial, o índio Manuel demonstrou que possuía não só uma noção peculiar de ação política numa sociedade de Antigo Regime, como também uma consciência de sua posição como índio portador de direitos garantidos pelo próprio monarca. Desta forma, ao ser agente de seu próprio destino, fugiu da tradicional e conservadora explicação histórica de que os índios teriam vivido apenas como vítimas do violento processo da conquista e colonização.

Mais que tipificar esse comportamento como “resistência”, deve-se entender essas ações políticas elaboradas e executadas pelos povos indígenas no enfrentamento da situação colonial como políticas indígenas. Elas não foram únicas para todos os povos, pois as conjunturas, os interesses em jogo, os sujeitos em cena, o tempo de contato e o estágio da colonização contribuíam para alterar a forma de relacionamento dos índios com os colonos e vice-versa. No complexo mundo colonial, um grupo indígena podia optar em se abrigar num aldeamento jesuítico diante da ameaça de ser capturado por expedições escravistas dos bandeirantes e, após alguns anos, quando o aldeamento já não oferecesse as condições de vida satisfatória para o grupo, este podia migrar para outro local em busca de melhores condições. As alianças, fugas, rebeliões, acomodações, negociações e outras manifestações das políticas indígenas precisam ser entendidas e analisadas neste contexto contraditório de confronto e mediação de mundos diferentes: o dos europeus e os dos indígenas.

E é dentro deste contexto que se explica a ação de Manuel Rodrigues de Jesus. De um lado, apropriou-se da tecnologia escrita, da retórica do Antigo Regime e do valor jurídico dos documentos escritos para utilizar na defesa de seus direitos. Não se sabe ao certo quando, nem como, mas Manuel conseguiu levantar os papeis necessários para virar o jogo, recorrendo ao registro escrito e oficial como forma de assegurar a veracidade de seus argumentos. Do outro, aproveitou as relações estabelecidas com o padre e alguns colonos para solicitar os referidos documentos e, também, as relações construídas no ofício de prático, onde mantinha contato com vários marujos, capitães de embarcações e comerciantes que entravam na barra do rio Grande de Belmonte, para conseguir carona em direção ao reino.

As estratégias construídas por Manuel Rodrigues de Jesus foram, em certa medida, resultado de um aprendizado acumulado ao longo de alguns anos de contato. Ao se afirmar como um “índio de nação” à serviço da coroa, Manuel queria se distinguir dos inúmeros indígenas não aliados que preferiam viver embrenhados nos sertões, apartados da sociedade colonial e distantes dos interesses da própria colonização luso-brasileira. Com essa estratégia, Manuel Rodrigues resgatava a longa trajetória histórica de aliança de seu grupo étnico com a sociedade colonial, afirmando sua condição de vassalo “amante da pátria” e, ao mesmo tempo, sua especificidade de ser indígena.

É provável que Manuel Rodrigues de Jesus carregasse consigo toda uma experiência de contatos interéticos vivida por seu grupo. A história dos índios Meniãs é expressão concreta dos “encontros coloniais” (ASAD, 1983), sendo marcada por inúmeras experiências de conflito e negociação. Da fuga dos sertões no século XVII ao aldeamento particular que durou até a segunda metade do século XVIII, os Meniãs souberam construir espaços de negociação, transitando entre as exigências coloniais e os hábitos e costumes nativos, como bem evidencia a própria história de fundação da vila de Belmonte (cf. CANCELA, 2018).

Com o exposto, é possível afirmar que a experiência vivida por Manuel Rodrigues traz consigo uma importante “expressão simbólica”. Se, de um lado, a coroa portuguesa construiu um conjunto de leis que visavam a cooptação das lideranças indígenas para auxiliar no processo de conquista e colonização dos territórios e povos americanos, as lideranças indígenas, do outro, também souberam se apropriar dessas leis para defender seus interesses, construindo um contrateatro no próprio palco lusitano. O índio Manuel agarrou-se a lei não porque estava “amansado”, mas porque percebeu as importantes vantagens que a legislação poderia oferecer. Afinal, além de honras, privilégios e salário, a patente de capitão garantia a sua dispensa do trabalho obrigatório e sua presença como mediador na repartição da mão de obra indígena na vila de Belmonte. Desta forma, atuando como liderança indígena, Manuel conseguiria não só melhores condições de existência para si mesmo como também poderia negociar interesses do seu grupo frente as demandas coloniais.

Ademais, é importante destacar que, quando Manuel Rodrigues de Jesus resolveu ir ao reino solicitar seu direito ao salário, o Diretório dos Índios tinha acabado de ser legalmente abolido. Do ponto de vista jurídico, os índios não possuíam mais direitos específicos vinculados a sua condição transitória de indígenas. Segundo determinou a Carta Régia de 1798, que aboliu o Diretório, os índios aliados não poderiam ser considerados diferentes dos demais vassalos do reino, sendo impostas para eles as mesmas disposições legais válidas para qualquer súdito. Entretanto, a própria existência de um caso como o de Manuel Rodrigues de Jesus explica porque a coroa flexibilizou suas intenções. Afinal, para a monarquia, recuar nos direitos assegurados aos índios significaria uma ruptura no acordo político firmado com essas populações, que poderia resultar no esvaziamento das povoações ou revolta da população. Para os índios, por sua vez, desistir desses direitos significaria reduzir as condições de mediação da opressão colonial, diminuindo os espaços de negociação de seus interesses e necessidades enquanto grupo social distinto. Portanto, foi a certeza da insistente presença das políticas indígenas que possibilitou que, mesmo após sua abolição, o Diretório continuasse oficiosamente vivo na regulamentação das relações entre a colonização e os índios aldeados.

Consideração final

Ainda que as exíguas fontes existentes apenas permitam a reconstrução dessa pequena história da vida de Manuel Rodrigues de Jesus, outros casos podem ter ocorrido nas demais vilas de índios da América portuguesa. Afinal de contas, os exemplos de indígenas que atravessaram o Atlântico em busca da obtenção de alguma mercê régia por meio do uso do mecanismo político de serviço/recompensa têm se multiplicado nas pesquisas realizadas nos últimos anos. Para as capitanias do norte, por exemplo, Rafael Ale Rocha (2009) identificou mais de uma dezena de índios que foram a Lisboa solicitar os mais variados títulos militares ao monarca português. No entanto, todos os casos por ele analisados carregavam consigo um traço em comum: os requerentes e beneficiados já possuíam algum prestígio nas suas povoações e, em geral, faziam parte de tradicionais famílias de lideranças indígenas, com longa experiência no jogo político baseado nas relações de troca de serviços, favores e benefícios.

No caso do índio Manuel Rodrigues de Jesus, não se tratava de uma liderança de longa trajetória político-institucional, nem de um descendente de prestigiadas lideranças indígenas. Ao contrário, quando resolveu partir rumo à capital portuguesa, o ex-soldado das ordenanças havia conquistado o título de capitão muito recentemente. Por essa característica particular, sua experiência pode ser tomada como ponto de referência para as reflexões até aqui desenvolvidas, especialmente por permitir inferir que o modo como procedeu, apropriando-se dos códigos típicos da sociedade envolvente, foi resultado do aprendizado conquistado ao longo da experiência de politização vivida a partir da implantação das instituições de poder na sua povoação. Embora o uso das práticas e valores políticos do Antigo Regime fosse um artifício relativamente comum a índios nascidos e criados na sociedade colonial desde o início da colonização, não se deve desmedir que, para a maioria daqueles índios incorporados à política colonial reformista na antiga capitania de Porto Seguro, o contato que construíram, desde a implantação da nova ouvidoria, com as relações de poder presentes nas câmaras, nas diretorias de índios e nas ordenanças foram singulares e, ao mesmo tempo, fundamentais para a redefinição de suas estratégias de sobrevivência e a reelaboração de seus mecanismos de identificação étnica naquela sociedade em formação.

Mais que simplesmente dominar e explorar, as instituições locais de poder possibilitaram aos índios moradores das vilas a apropriação de elementos da cultura política europeia que foram instrumentalizados para a defesa, perante o Estado monárquico português, de seus interesses específicos. À semelhança da estratégia de Manuel Rodrigues de Jesus, outros moradores indígenas das novas vilas aproveitaram as brechas abertas no interior do sistema político colonial para lançar mão de recursos que resultassem não só em melhores condições de existência para si, como também para os demais integrantes de seu grupo. A ocupação de postos nas companhias de ordenanças se transformou no principal veículo de conexão dos moradores indígenas com o sistema de mercês, principalmente por causa do uso dos importantes serviços prestados na conquista dos povos e territórios dos sertões. Por meio dessa atuação política, lideranças indígenas como Manuel Rodrigues de Jesus construíam uma forma própria de interferir, dentro das possibilidades existentes em cada povoação, na distribuição da mão de obra, na correlação de forças locais, nos processos de ascensão e mobilidade social e na construção de seu próprio lugar na sociedade colonial.

Referências

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Notas

[1] Este texto é uma versão revisada, ampliada e modificada de um capítulo publicado no livro “Hegemonia & Resistências no Brasil” (Ed. Kawo-kabiyesile, 2012), intitulado “Políticas indígenas e políticas indigenistas na Capitania de Porto Seguro”.

[2] Em 1816, quando o príncipe Maximiliano (WIED MAXIMILIAN, 1989, p. 215) passou pela Vila de Belmonte, registrou a memória ainda viva da história deste grupo, narrando que “outrora viveram rio acima, até que os paulistas (habitantes da capitania de São Paulo) os rechaçaram dessa região, matando muitos. Os que escaparam, fugiram para o local da atual vila, onde se estabeleceram. Aos poucos, abandonaram de todo o antigo modo de vida, sendo agora completamente mansos e em parte cruzados com a raça negra”.

[3] REQUERIMENTO de D. Francisco Barjon solicitando certidão do Regimento da Administração dos Índios. (1681). AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 35, D. 6524; REGIMENTO para uso dos administradores das aldeias dos índios do Estado do Brasil. Bahia, 29 de julho de 1678. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 35, D. 6525.

[4] AUTOS DE JUSTIFICAÇÃO dos padres Sebastião de Araújo Barjon e José de Araújo Ferraz para provar que eram netos de D. Francisco Barjon, e que esse foi administrador da aldeia de gentio Menhãa, que sucederam. Porto Seguro, 24 de outubro de 1738. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 35, D. 6538; INFORMAÇÃO dos oficiais da Câmara de Porto Seguro sobre um requerimento e a competência do padre José de Araújo Ferraz para administrar a aldeia dos gentios Menhans. Porto Seguro, 26 de dezembro de 1739. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 35, D. 6532

[5] INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d’Ajuda, 30 de abril de 1763. AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603

[6] ATESTADO do Padre Joaquim Pereira Botelho, vigário da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Villa de Belmonte, sobre o bom comportamento e bons serviços do capitão Manuel Rodrigues de Jesus. Vila de Belmonte, 20 de fevereiro de 1798. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 113, D. 22.223.

[7] OBSERVAÇÃO relativa aos corpos de auxiliares e ordenanças da Capitania da Bahia. Salvador, 11 de junho de 1791. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 74, D. 14.397.

[8] CORRESPONDÊNCIA expedida ao capitão-mor da vila de Belmonte. Salvador, 10 de junho de 1788. APB – Seção Colonial, maço: 159; TERMO de vereação do dia 13 de março de 1773. Senado da câmara da vila de São José de Porto Alegre. APB – Seção Colonial, maço 485-3; RELAÇÃO Op. cit.. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 45, D. 8553.

[9] ATESTADO do Padre Joaquim Pereira Botelho, vigário da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Villa de Belmonte, sobre o bom comportamento e bons serviços do capitão Manuel Rodrigues de Jesus. Vila de Belmonte, 20 de fevereiro de 1798. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 113, D. 22.223.

[10] CARTA Patente pela qual o Governador D. Fernando José de Portugal nomeou Manuel Rodrigues de Jesus Capitão da Conquista do Gentio Bárbaro do distrito da Vila de Belmonte. Bahia, 15 de setembro de 1795. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 104, D. 20314.

[11] CARTA, Op. cit., AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 104, D. 20314.

[12] REGIMENTO das Ordenanças de 1570. In: COSTA, Veríssimo Antônio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças”, Lisboa, Impressão Regia, 1816, p. 62.

[13] TERMO de Juramento de Manuel Rodrigues de Jesus no cargo de Capitão da Conquista do Gentio Bárbaro no termo da Vila de Belmonte. Caravelas, 27 de março de 1796. AHU_ACL_CU_005, Cx. 113, D. 22.222.

[14] REQUERIMENTO de Manuel Rodrigues de Jesus, Capitão da Conquista do Gentio Bárbaro no termo da Vila de Belmonte, Comarca de Porto Seguro, no qual, alegando seus serviços, pede que lhe seja abonado o soldo correspondente à sua patente de capitão. [ant. 1799, Março, 27]. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 113, D. 22.221.

[15] REQUERIMENTO, Op. cit., AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 113, D. 22.221.

[16] REQUERIMENTO de Manuel Rodrigues de Jesus, Capitão da Conquista do Gentio Bárbaro do termo da Vila de Belmonte, Capitania de Bahia, nos quais pede uma ajuda de custo para se transportar do Reino para o Brasil e a confirmação régia de sua Patente. Lisboa, 5 de Abril de 1799. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 104, D. 20310.

[17] OFÍCIO do Governador D. Fernando José de Portugal para D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual informa acerca do requerimento de Manuel Rodrigues de Jesus, da Vila de Belmonte, Comarca de Porto Seguro, em que pede a confirmação da sua Patente. Bahia, 24 de julho de 1799. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 99, D. 19432.

[18] REQUERIMENTO do capitão Manuel Rodrigues de Jesus, no qual pede a junção de documentos e a confirmação régia de sua patente. [ant. 1799, Agosto, 27]. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 104, D. 20312.

[19] REQUERIMENTO, Op. cit., AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 113, D. 22.221.

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