biografia
Crỳc Krĩkati
Autor(es): Kátia Núbia Ferreira Corrêa
Biografado: Crỳc Krĩkati (Francisco Milhomem)
Nascimento: 1935
Morte: 2011
Povo indígena: Krĩkati
Terra indígena: Terra Indígena Krĩkati (Aldeia São José)
Estado: Maranhão
Categorias:Biografia, Etnias, Krĩkati, Estado, Maranhão
Tags:Krĩkati, Maranhão, Masculino
CRỲC: Liderança Krĩkati/Terra Indígena Krĩkati
Os KRĨKATI
Os Krĩkati autodenominam-se Crẽh cateh catiji que significa “os da Aldeia Grande[1]”. Falam uma língua classificada por Rodrigues (1986) como Timbira, da família linguística Jê, tronco Macro-jê[2]. Eles compartilham com os outros povos Timbira uma forma de habitar que está ligada à sua organização social e cerimonial: a forma circular da aldeia. De acordo com Nimuendaju (1944, p.41) “enquanto os Timbira ainda possuírem a sua consciência não se deixarão persuadir a abandonar esta forma de habitar em conjunto”.
Eles estão localizados à leste do rio Tocantins, na parte sudoeste do
Maranhão, com uma população de 1000 indivíduos, distribuídos em cinco aldeias: São
José (a mais antiga e com maior contingente populacional), Raiz, Campo Alegre, Jerusalém e Arraia[3].
A Terra Indígena Krĩkati foi demarcada em 1997, após um longo processo de
disputa com os brancos e ainda não se encontra totalmente desintrusada. Localiza-se entre
os municípios de Montes Altos (oeste), Sítio Novo (leste), Amarante (norte) e Lajeado
Novo (sul).
CRỲC
CRỲC, é o nome de Francisco Milhomem na língua krĩkati. Ele é considerado uma das lideranças mais importantes para o povo Krĩkati por ter sido capaz de concentrar todos os krĩkati, que habitavam diferentes aldeias, na aldeia São José, quando o território Krĩkati estava todo invadido por gados de fazendeiros e a possibilidade de massacre dos índios era iminente. Ele conseguiu manter os Krĩkati concentrados em uma só aldeia, ainda que a prática de organização territorial krĩkati se caracterizasse pela dispersão de grupos domésticos autônomos ocupando espaços diferentes de seu território tradicional. É nesse contexto que se destaca a força de sua gestão como cacique de seu povo, por vinte um (21) anos. Manteve seu povo concentrado por mais de trinta (30) anos, administrando os conflitos internos entre os grupos domésticos, impedindo-os de dispersarem pelo território, como era o costume, formando novas aldeias.
Essa estratégia de Crỳc/Francisco em manter os Krĩkati juntos, fora da rota de perigo de um massacre pelos fazendeiros, acabou por fortalecê-los enquanto uma unidade étnica e politicamente organizada. Essa concentração também foi o fio condutor, para, enquanto povo, reivindicar a demarcação oficial de seu território junto ao Estado brasileiro, tendo como primeiro intermediador o próprio Crỳc, ainda como cacique da aldeia São José.
A primeira iniciativa de Crỳc /Francisco nessa direção foi intermediada pela antropóloga Dolores Newton[4]. Esta ficou responsável, a pedido de Francisco, em levar uma carta redigida por ela (mas com informações prestadas por ele) ao presidente da Funai, Coronel Ismarth Araújo de Oliveira, com uma proposta de limites do território que o povo gostaria de ver assegurados por uma demarcação. Essa proposta é elaborada como uma contra- proposta à delimitação da terra krĩkati que havia sido apresentada pelo chefe do posto indígena da Funai[5].
Ele inicia as informações da carta apontando que não aceita os limites propostos pelo agente de posto da Funai e apresenta o porquê, levando em conta a forma tradicional de habitar o território pelos Krĩkati:
A largura da terra demarcada no mapa o povo não aceita nem eu, o chefe Francisco. Eu sempre teria medo de que o povo daqui passa lá fora. Eles têm costume de andar três a cinco léguas (6 km numa légua) para fora da aldeia, costume que é de muito tempo passado não só agora. Então precisa terra para passar assim para não criar problemas (Relato de Crỳc/Francisco a Newton, 1975, p.2)
Na carta/proposta ele vai apontado os limites da terra (norte/sul/leste/oeste) que gostaria de ver assegurados em uma demarcação, ao mesmo tempo que aponta como as áreas de terra registradas por ele na carta são importantes para a sobrevivência física e cultural de seu povo:
Norte – inclusão de um lugar no rio Pindaré regionalmente conhecido pelo nome de “Poço do caboclo Velho” (…). Essa parte do rio Pindaré sempre usada para tinguijada no tempo do verão. Leste- no riacho Batalha tem um lugar conhecido regionalmente pelo nome de “Baixão” (…) Aqui está um poço com lugar de peixe que no passado era sempre uma rancharia e campo do povo Krĩkati. (…). Sul- divide-se em duas partes: o riacho Tapuio e o riacho do Salto (o qual os Krikati ainda chamam de Arraia). Neste último ribeirão, existe uma área de cocal (babaçu). Esta área, ou pelo menos uma metade do cocal, os Krῖkati utilizam durante os meses de agosto e setembro. Aqui estamos acostumados a andar para buscar coco e faz tinguijada. Este território entre os Rios Arraia e Lageado pertence aos Krῖkati. Temos várias pessoas que nasceram mesmas em aldeias desta região; nomes de três destas aldeias são komchíkuh, piphúhpo e ronkú. Só por causa do cocal precisamos tanto do território intermediário da aldeia até lá. Com garantia de liberdade de passar através da área no sul até o cocal não precisaria tanta área no sul (…). (Relato de Crỳc/Francisco a Newton, 1975, p.2-5).
Entretanto, em sua longa caminhada como cacique da aldeia são José, além de negociar o tamanho da terra com agentes do Estado, dialogou com outros antropólogos na tentativa de garantir o direito de seu povo ao território reconhecido por eles como sendo de tradição do povo Krĩkati. Em alguns desses momentos ele expande a a delimitação para garantir as áreas de movimentação das aldeias antigas, dos arranchamentos para pescar e caçar (como visto acima com Newton) e em outras, como podemos ver abaixo (com Mellati[6]), ele contrai o tamanho da área de ocupação tradicional para acelerar o processo de demarcação pelo Estado frente a ameaça latente de ter a sua terra tomada pelos fazendeiros:
Durante a reunião em que discutiram mais ou menos durante 4 horas (…) surgiu
uma divisão no grupo, uma liderada pelo capitão[ Crỳc/Francisco Milhomem] e as pessoas mais idosas, e outra dirigida pelos dois líderes mais jovens e seus companheiros da mesma idade. Num dado momento, surgiram três propostas de área, pois determinados lugares onde tinha aldeias antigas, os parentes das pessoas que aí moraram, não queriam abrir mão delas. Sozinhos chegaram a um consenso comum quanto aos limites da área, prevalecendo a proposta e autoridade do capitão Francisco apesar de haver uma certa resistência por parte dos líderes jovens. O capitão ponderava que eles não iam sempre até os locais exigidos; necessitavam dos dois povoados Montes Altos e Sítio Novo, para se abastecerem de bens industriais e que não poderiam contar sempre com a assistência precária da FUNAI, quanto maior a área, mais difícil se tornava para retirar os fazendeiros dela (Processo 224/80 Apud Miras, 2015, p.58).
Ainda dentro desse contexto de luta pela demarcação da terra krĩkati, Crỳc/Francisco foi um dos principais interlocutores da antropóloga Maria Elisa Ladeira, quando ela esteve com eles em fins de 1988 para elaborar uma perícia antropológica[7]para efeitos de demarcação. Ele fez parte (não mais como cacique, mas com uma das lideranças mais importantes e respeitadas da aldeia São José), juntamente com outras lideranças Krĩkati, da reconstrução histórica da trajetória de ocupação territorial de seu povo para que ela pudesse elaborar uma proposta de limites da terra a ser demarcada[8].
A primeira iniciativa oficial do Estado brasileiro no sentido de demarcar uma terra específica para os Krĩkati se deu em 1977 quando o presidente da Funai Ismarth Araújo de Oliveira autorizou a demarcação da terra nos limites de 62.350ha, nos termos do Memorial Descritivo de 09.09.1977. Essa proposta de tamanho de terra é fruto do grupo de trabalho composto pela FUNAI/RADAM. Ela desconsidera as reivindicações feitas por Crỳc/Francisco ao presidente da Funai, na carta conduzida por Newton, e inicia uma série de novas propostas de delimitações (136.600ha; 85.500ha; 13.125ha; 142.326ha) que desagradam tanto aos Krĩkati (ao reduzir o tamanho de sua terra de ocupação tradicional) quanto aos invasores de sua terra (por acharem que era “muita terra para pouco índio”) (Corrêa, 2000)
Desde a proposta feita por Crỳc, passaram-se mais de trinta anos (30) para que a terra krĩkati fosse demarcada. Isso ocorreu em 1997 quando os Krĩkati tomam a iniciativa de derrubar torres de transmissão de energia que passam dentro de seu território. Por essa época, Crỳc já não era mais cacique, mas fazia parte do conselho dos mais velhos (anciãos) que orienta o cacique. A terra foi demarcada com um limite de 146.000 ha (em acordo com o laudo antropológico elaborado por Ladeira de 1989) e homologada em 2004. Entretanto, até os dias atuais ainda não foi desintrusada em sua totalidade.
Ainda, em sua gestão como cacique, Crỳc/Francisco intermediou e negociou a entrada de várias infraestruturas da sociedade brasileira no território Krĩkati. João Grande Krĩkati lembra quando tiveram que derrubar mata para implementar as torres de energia. Diz ele:
(…) nesse tempo eu era rapaz novo; eu era rapaz jovem ainda; não pensava nada; a vida minha era só andar e brincar; quando era tempo do Francisco, acho que combinaram com ele e foi; eles passaram aqui umas máquinas trabalhando; não sabia não; quando cheguei lá da Bateia, fui caçar aqui na mata e aí eu fui e vi o trator arrastando corrente; aí eu procurei o que eles estão fazendo aqui, desmatando aqui; aí o outro falou: ‘é para botar umas torres; eu não sabia nem o que era torre; não conhecia não; aí meu tio Francisco chegou aqui no pátio e conversou com os índios mais velhos e aí eles passaram; deu um caminhão Chevrolet, um caminhão Mercedes, foice, uma Toyota, trator; era mata alta; mata bruta; cada madeirão; ninguém tava sabendo; Francisco negociou mais ele; aí deram esse material para nós; ainda hoje tem trator e Mercedes; Mercedes que está para reformar; o Chevrolet FUNAI enganou a gente e mandou pra Mato Grosso; a Toyota se acabou por aqui mesmo; trabalhamos de Sítio Novo até Montes Altos; índio não sabia o que ia fazer; só trabalhava; quando limpou tudo, eles começaram a botar ferro para levantar torre; aí depois cacique Francisco conversou mais eles e eles ajuda na saúde, educação, no que a gente precisa; deram 200 cabeças de gado, mas índio não tem costume de criar gado e colocaram dois vaqueiros branco; índio é besta não conhece trabalho de vaqueiro; aí vende gado para pagar conta em Montes Altos; festa da visita tem que comprar arroz, farinha, carne (Relato de João Grande Krĩkati a Corrêa, 2016).
As linhas de transmissão as quais João Grande se refere são as primeiras obras da sociedade brasileira a se instalar no território Krikati, as redes de energia elétrica da CEMAR (Companhia Energética do Maranhão) e da CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco). A primeira linha de transmissão atravessou o território em 1977. A segunda linha, através da Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte do Brasil), instalou-se entre os anos de 1994 e 1996. Além das contrapartidas citadas por João Grande, a Cemar instalou energia elétrica na aldeia e comprou uma máquina de beneficiamento de arroz (SANTOS, 1984).
A infraestrutura existente atualmente na aldeia São José, que decorre desse processo iniciado por Crỳc /Francisco e continuado pelos caciques posteriores a ele, faz com que hoje a aldeia São José seja considerada pelos Krĩkati atuais como a “aldeia central”[9].
Se Crỳc /Francisco como cacique, intermediou junto às outras aldeias para que se concentrassem na São José, seu filho, Bernardino Milhomem Krĩkati aponta que também houve a forte presença do pai na decisão deles de dispersar para proteger e monitorar a terra, agora já demarcada:
Nós mesmos, só nós, sem a presença da funai, nos juntamos para pensar essa estratégia [de formar novas aldeias]; porque é assim: a ideia que nós tomamos junto, que era meu pai Francisco Milhomem, ele era a pessoa que lutou junto com Durval, Ludgero, meu sogro, João Sabino[10]; eu estava junto com eles lá quando eles estavam falando, que realmente, o que ele falou está acontecendo, é porque se nós não fizermos isso, o branco vai entrar, vai começar a carregar as coisas, principalmente, madeira, e a gente está tentando resolver (…); aqui mesmo eles não entram (…) (Relato de Bernardino Krĩkati a Corrêa, 2016).
O lugar ao qual Bernardino faz referência a não entrada de brancos é a aldeia Campo Alegre, fundada por ele. Fora essa aldeia, mais três aldeias do povo Krĩkati foram construídas nos limites da terra como estratégia, segundo eles, para proteger o território da entrada de brancos.
Crỳc contou como “ganhou” o nome de Francisco Milhomem pelos brancos que já moravam no território de seu povo quando nasceu:
Não nasci na aldeia São José; meus pais moraram no Canto da Aldeia; era um lugar muito seco; se mudaram pra o Estraíra[11]; foi aqui que nasci e os meus pais foram falar com os brancos Milhomem que moravam no território, pedindo proteína para mim; o ‘velho Milhomem’ perguntou para meu pai: “ele nasceu agora?”; meu pai disse “sim”; então o velho Milhomem disse: “traz ele aqui que eu vou registrar com o meu nome”; assim ganhei o nome de Francisco Milhomem (Relato de Crỳc/Francisco Milhomem a Corrêa, 2000).
A narrativa de Crỳc/ Francisco explicita o tipo de relação travada entre brancos e Krĩkati. Estes últimos viram-se forçados a entrar em uma relativa relação de dependência como condição para sua sobrevivência. Como os brancos se espalharam pelo território deles com os seus gados e afugentaram as caças, eles passaram a depender deles para ter acesso à carne em sua alimentação. E, foi quando os descendentes desses primeiros brancos que invadiram seu território se recusaram a continuar retribuindo a permanência no território krĩkati, com a doação de gado, que estes começaram a matar o gado daqueles.
À proporção que o gado aumentava e a caça a rareava os Krĩkati intensificaram o abate do gado dos brancos e, por conseguinte, os conflitos aumentaram. É nesse contexto que o SPI[12] (Serviço de Proteção ao Índio) é acionado, juntamente com uma força policial, para retirar os Krĩkati do seu território (Ladeira, 1989). Crỳc/Francisco relata esse episódio a Ladeira:
Quando o povo estava morando no Canto da Aldeia, de vez em quando matava um gado do cupê. No começo os cupê davam umas cabeça de gado para agradar o povo. Depois os mais velhos morreram e os filhos pararam com o costume, mas o povo já tinha pegado o gosto da carne de gado e vez em quando matava um. Mas, nesse tempo os cupê deram aviso ao Marcelino Miranda que era encarregado do SPI em Barra do Corda. E o Marcelino veio e estava hospedado no cupê. (…). E daí o Marcelino chegou com outros cupê. O povo ficou com medo e correu para o mato. (…). O Marcelino falou que era preciso a gente abandonar a aldeia, já que ele tinha ordens do governo e que o SPI já tinha uma terra pra gente em Barra do Corda. O povo foi obrigado mesmo, depois do cerco de policiais é que foram levando os índios, que nem boiada, até o Rodeador (a gleba de terra adquirida, pelo SPI para alojar os Gaviòes e Krikati); mas o povo aqui e acolá ia pendendo e quando chegaram lá só tinha mesmo quinze índios, e que acabaram botando roça por lá, antes de voltar para a aldeia”(Relato de Francisco Milhomem a Ladeira, 1989, p.33-4).
Crỳc /Francisco relata que estavam finalizando a cerimônia do Wy’ty, na Canto da Aldeia[13], quando Marcelino chegou com seus policiais. Lembra da resistência deles em sair do lugar:
Povo estava cantando, estava no arremate da festa do Wy’ty do Neutro, meu irmão mais velho. O povo tinha feito um acampamento no lugar que se chama Akrãré, perto da aldeia. Daí o Marcelino chegou. Até o Mariano, que era o meu pai e era o ‘dono’ da festa, enfrentou o Marcelino” (Relato de Francisco Milhomem a Ladeira, 1989, p.33).
A resistência de alguns Krĩkati em sair de seu território e daqueles que saíram, mas retornarem para seu lugar de origem só acirrou o conflito já existente, entre eles e os brancos, na disputa pelo território, sendo o gado o agente que vai moldando o tipo de relação que se estabelece entre Krĩkati e fazendeiros:
Antes tinha muito gado, muito gado nessa chapada e a gente matava , dois ou
três, quando andava caçando e não encontrava nada; aí se mata; aí fazendeiro,
fazendeiro não, posseiro, diz, vocês tão acabando com meu gado; não quero que
vocês matem e daí aqui era cheio, cheio de morador ; agora que não tem; gado
vinha dormir no pátio; tem gado que caía para roça, os índios mata, nós come;
quando você chega tem umas pessoas que mora [brancos] e vai dizer assim, não,
esse lugar aqui você não tem direito de fazer aldeia não, porque é meu; aqui esses
moradores, finado Mundicao ele não quis que a gente fundasse aldeia aqui
(Relato de Zé Torino Krĩkati a Corrêa, 2016).
Foi nesse contexto de intenso conflito entre Krĩkati e fazendeiros e da iminência de um massacre dos Krĩkati que Crỳc /Francisco foi colocado na condição de cacique do povo Krĩkati. Por conta dos intensos conflitos o prefeito de Montes Altos, na década de 1962, reuniu fazendeiros e caciques das aldeias existentes para estabelecerem um acordo. Existiam por essa época, segundo Urbano, quatro aldeias, São José, Bateia, Baixa Funda e Cabeceira das Cabras cada qual com seu respectivo “chefe”:
O prefeito Josino Gomes, chamou aldeia toda; aí fazendeiro se ajuntaram lá todos também; aí nós fomos pra lá; aí depois ele conversou com a gente com os outros caciques. De primeiro, tinha o cacique da São José, da Bateia; da Cabeceira das Cabras; da Baixa Funda; aí nós fomos para lá; aí Josino falou: vocês não podem acabar com a aldeia. Para que? Eles tão com fome! Caçam, caçam e vocês não escutam, não tiram o gado do lugar das caças. Então, se eles estão com fome, matam e comem e vocês querem atacar a aldeia? Não pode não! Ele falou com todos os fazendeiros (Relato de Urbano Apinayê a Corrêa, 2016).
O então prefeito sugeriu um acordo a ser feito entre Krĩkati e fazendeiros. O acordo consistia em os Krĩkati se concentrarem em uma só aldeia e, em contrapartida, os fazendeiros entregariam uma cabeça de gado por ano para eles comerem. Ainda nessa reunião, o prefeito sugeriu que os Krĩkati das aldeias existentes se reunissem e escolhessem um cacique para todo o povo, um vice cacique que iria governar junto com ele e um “juiz” para vigiar o acordo. Crỳc/Francisco foi o cacique indicado pelos Krĩkati presentes na reunião e permaneceu nessa função, como já afirmei anteriormente, por vinte e um anos (21):
Agora os caciques velhos vão sair tudinho; agora vai ficar só dois cacique agora; aí o povo ficou conversando, conversando muito; rapaz a gente vai já abri boca para falar para vocês quem nós vamos querer é o Francisco e o Urbano; Urbano vai ser vice dele; Francisco vai ser primeiro; é o que vocês querem, então podem conversar, eu é que sou prefeito é que não posso dizer aquele que vai ser; mas vocês que moram lá perto ao redor da aldeia, vocês que vão escolher quem é que vocês vão querer; aí escolheram nós para ser cacique; aí falou para o povo [os índios], olha, a partir de hoje vocês não vão mais governar aldeia não; só esses dois e o Augustinho que vai ser juiz; eles que vão mandar, governar agora (Relato de Urbano Apinaye[14] a Corrêa, 2016)).
O filho de Crỳc/Francisco, Bernardino, conta que foram seu pai e Zezinho Krĩkati que juntaram todos os Krĩkati na aldeia São José. Afirma que já havia a intenção de escolherem o pai dele com cacique, antes mesmo de o prefeito chamar todos os Krĩkati para reunião com os fazendeiros:
Foi meu pai e o Zezinho, o mais velho, que conseguiu juntar todo mundo; Zezinho era uma pessoa que reúne; todo dia à tarde ele ia para o pátio e chamava todo mundo; ele que falava para meu pai que quando foi para escolher ele como cacique, eles estavam programando, nossa cultura tem que fazer uma cerimônia, uma pessoa para botar como cacique; mas antes de fazer isso, o prefeito chamou e falou olha você que ajuntar seu povo em um lugar só; aí com isso eles botaram ele; logo em seguida os indígenas já complementou, já para segurar ele, meu pai, para trabalhar como cacique (Relato de Bernardino Krĩkati a Corrêa, 2016)).
Bernardino explica que a maior preocupação de seu pai era o fato de o povo estar “espalhado” pelo território. Por isso seu pai, segundo ele, “começou a andar por vários lugares e juntou o povo”. Aponta que seu pai já ambicionava realizar a junção de todos os Krĩkati em uma aldeia só, sob a sua chefia, para que em reunião de pátio todos pudessem ouvir e participar da discussão e fazer planos em conjunto para o povo.
Crỳc/Francisco demonstrava a preocupação, enquanto cacique, de organizar o povo como unidade para reivindicar propostas coletivas para garantir a existência deles. Isso só poderia acontecer se todos estivessem juntos. A fala de Bernardino, demonstra a preocupação do pai com essa construção de um coletivo krĩkati:
Quando eu comecei a conhecer, alcancei, era, tinha uns 85 e 86 índios só na aldeia São José; porque João Grande tinha uma aldeia aí perto, chamada Bateia; tinha outra aldeia para o rumo do Baixa Funda; tinha outra aldeia mais para cá assim; aí meu pai, ele é um dos líderes que se preocupou, porque não poder fazer, porque quando estão espalhados, eles não tem organização, não tem como eles ouvirem o plano que a aldeia faz, eles não participam; (…); aí [ele] foi atrás né; naquele tempo eu nem sabia falar né; nem sabia o que ia falar; aí eu acompanhei, fui lá junto com ele, porque naquele tempo era meu pai o primeiro cacique e o segundo cacique era Urbano; aí dali ele começou a chamar, eu era pequeno, mas já estava vendo alguma coisa, mas eu não falava nada; aí começou, nós estava aqui também mais minha mãe; aí começou; meu pai ficava com nós aqui, passava uns tempo e depois voltava de novo (…) (Relato de Bernardino Krĩkati a Corrêa, 2016)
Crỳc /Francisco passou pela aldeia do avô de João Grande, na região do Arraia. Esse último lembra que a justificativa de Francisco para convidá-los a morar na aldeia São José estava relacionada ao fato de estarem morando longe dos outros parentes:
Quando Francisco assumiu como cacique começou a andar pelas aldeias conversando com o povo, conversando com o cacique, porque cada um tem o comandante da aldeia. Eles sentaram combinaram com o povo e com o cacique e escolheram esse lugar bem aqui [aldeia São José da Barriguda ]. Fizeram essa aldeia aqui; aí começaram a brigar por escola, poço e saúde; aí nós começamos a morar por aqui (…) (Relato de João Grande Krĩkati a Corrêa, 2016).
A junção de todos os Krĩkati na aldeia São José não resultou de um processo rápido. Lave (1967, p.16-17), quando esteve junto aos Krikati em 1963/64[15], observou duas aldeias: São José, com sessenta casas e cento e cinquenta pessoas e São Gregório com cinco casas e cinquenta e sete pessoas. Melatti (1980, p.20-21), que lá esteve em 1979, cita a existência de quatro aldeias, sendo três do povo Krikati e uma do povo Tentehar-Guajajara: São José, Batéia, Dalgado e Areia[16]. Na São José tinha onze casas e duzentas e cinquenta e seis pessoas; Batéia com duas casas e onze pessoas; Dalgado com duas casas e oito pessoas e Areia tinha seis casas e vinte e uma pessoas.
A escola também foi um instrumento para concentrar os Krĩkati na aldeia São José. Em 1964, CrỳC/Francisco, conta Herculano[17], pediu a Frei Aristides que fundasse uma escola na aldeia:
Em 1964 meu tio Francisco mais Urbano ganharam posse de fiscalização de criador de gado do branco; aí eles botaram ele de cacique; aí meu tio Francisco pediu que o frei Aristides fundar o colégio para ensinar nossos jovens; para a gente aprender; então por causa de colégio ele foi no Baixa Funda e conversou com o cacique que é meu avô e se chama Augustinho e trouxe eles; foi falar com o cacique de lá do Estraíra que era meu tio Newton, meu tio Rafael e combinaram e ajuntaram; chamou meu tio Tataíra com a família lá das Cabeceira das Cabras e ajuntaram por conta de colégio; então povoou a aldeia (Relato de Herculano Krĩkati a Corrêa, 2016).
O frei Aristides se juntou com Crỳc/Francisco e iniciou um processo de visitas pelas aldeias Krĩkati convencendo aqueles que ainda não tinham se deslocado de suas aldeias para irem morar na São José onde estava sendo construída uma escola para seus filhos estudarem e ficarem juntos. Joana Krĩkati conta que o frei Aristides “andou” pela aldeia de seu pai, convidando-o para se “juntar” com o restante do povo na aldeia São José:
Eu sair da Baixa Funda para a São José porque Frei Aristides foi atrás de nós: porque meu tio, minha avó saíram tudo para cá [São José]; pai estava morando sozinho com nós e quando Frei Aristides foi atrás de nós e disse, ‘não Loureano, é bom você levar seu filho para morar no meio do povo; ficar morando sozinho aqui não’; aí que trouxeram nós para cá; aí que nós chegamos aqui só tem um casa na beirada da estrada; quando fez trabalhou; era menina quando cheguei aqui; aí meu pai fez casa pequena ( Relato de Joana Krĩkati a Corrêa, 2016).
A ação de frei Aristides que a narrativa de Joana aponta não estava limitada somente à junção de todos os Krĩkati na aldeia São José para que seus filhos pudessem estudar. Ele alertava para o perigo de um grupo morar isolado dos outros em virtude de terem como “vizinhos” os brancos. Tal perspectiva do frei se coaduna com a de Crỳc/ Francisco, apesar de a prática de ocupação territorial dos Krĩkati consistir em estarem sempre se movimentando em seu território, em uma dinâmica de junção e dispersão. A primeira acontece mais em momentos de festas rituais.
Crỳc/Francisco nasceu em 1935, na aldeia Estraíra (desativada), e morreu na aldeia São José, em 2011.
Referências
CORRÊA, Kátia Núbia F. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krĩkati. São Luis: Edições UFMA; PROIN (CS), 2000.
_____________________. AJCRỲ/COHPRÕ: dinâmicas de espalhar e ajuntar no território Krĩkati. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. UFMA. São Luís. 2016.
LADEIRA, Maria Elisa. Perícia antropológica referente a ação de demarcação que Leon DélixMilhomen e outros movem contra a FUNAI. Brasília. 1989.
LAVE, Jean Carter.Social Taxonomy among the Krikati (Jê) of central Brazil. Harvard University, December, 1967.
MELATTI, Delvair Montagner. Relatório sobre a eleição da área Krikati. Brasília: FUNAI, 1980.
MIRAS, Júlia T. De terra (s) indígena (s) à Terra Indígena: o caso da demarcação Krĩkati. Dissertação de mestrado. UnB. 2015.
NEWTON, Dolores. Carta do chefe Krĩkati Francisco e Relatório sobre a situação atual dos índios Krĩkati em relação à demarcação das terras desta tribo. 1975. In: Processo nº 1.875/81. São Luís. Justiça Federal do Maranhão. 1981.
Notas
[1] O mito da Aldeia Grande busca explicar a origem do povo Krĩkati no contexto de um conjunto maior classificado como os Jê-Timbira. A dispersão é relatada no mito da Aldeia Grande como decorrente de conflitos.
[2] Somam-se aos Krĩkati outros povos que foram classificados na família linguística Jê-Timbira: Canela Apãniekra,Canela Ramkokamekra, Gavião/ Pykobyê, Kreniê, Krepumkateyê, Krahô e Apinayê
[3] Há ainda a aldeia Recanto dos Cocais, dentro da Terra Indígena Krikati, com 68 pessoas onde mora uma parte do povo Tentehar/Guajajara[3], alguns casados com Krĩkati. Os Tentehar/Guajajara falam língua classificada no Tronco Línguístico Tupi Guarani.
[4] Dolores Newton esteve fazendo pesquisa junto ao povo Krĩkati sobre a cultura material desse povo.
[5] Miras (2015) aponta que essa proposta de delimitação da terra do o chefe do posto krĩkati, é de 1974 e propõe um limite de e 25 mil hectares.
[6] Delvair Montagner Mellati, antropóloga que esteve com os Krĩkati em 1979 compondo o grupo de trabalho responsável pela elaboração da identificação (delimitação) da área a ser demarcada.
[7] Essa perícia antropológica foi solicitada pela Funai ao juiz encarregado pela ação de demarcação somente após os fazendeiros já terem entrado na justiça, em 1980, com uma ação de demarcação para separar a terra que julgavam ser deles (a partir de “seus títulos de propriedade da terra”) daquela que pertencia aos Krĩkati e dessa ação judicial movida por aqueles ter como efeito um limite de terra para os Krĩkati de 13.125ha.
[8] Cf. Ladeira (1989). Perícia antropólogica referente a ação de demarcação que Leon Délix Milhomem e outros movem contra a FUNAI. Brasília. Mimeo.
[9] Benjamin Krĩkati é uma liderança das mais antigas entre os Krĩkati que usa essa categoria êmica “aldeia central” para diferenciar as aldeias novas daquela mais antiga. Assim ele diz: (…) São José é central, porque tem maioria; nós como velho tem que explicar para os mais novos; essas aldeias que estão ali que são chamadas aldeias pequenas, eles são subordinados por essa aldeia aqui, a São José; qualquer coisa em um assunto eles tem que estar aqui, sentar tudo e combinar (Relato de Benjamin a Corrêa,2016)
[10] Lideranças mais velhas da aldeia São José. Alguns citados por ele já morreram, como seu pai, Ludgero e Durval.
[11] Antiga aldeia dos Krikati, hoje desativada.
[12] A terra comprada pelo Governo do Estado do Maranhão para assentar os Krĩkati ao transferi-los de seu território é a atual Terra Indígena Rodeador, localizada próximo ao rio Ourives na região de Barra do Corda. Como os Krĩkati não ficaram na terra, ela foi utilizada para fins de colocar roça pelos povos Canela e Tentehar. Hoje é uma terra disputada pelos Tentehar e Krenyê.
[13] Os pais de Francisco Mihomen moraram na aldeia Canto da Aldeia, hoje desativada.
[14] Foi o vice –cacique desse acordo.
[15] Datas próximas ao acordo entre Krĩkati e fazendeiros, intermediado pelo prefeito de Montes Altos
[16] A aldeia Areia era formada somente pelo povo Tentehar-Guajajara. Atualmente esse povo habita na aldeia Recanto dos Cocais.
[17] Crỳc/Francisco foi pai de criação de Herculano, mas era seu tio biológico.
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