biografia
José Dias Mãtyk
Autor(es): Maria dos Reis Pãxre Apinajé , Marcelo Gonzalez Brasil Fagundes
Biografado: José Dias Mãtyk
Povo indígena: Apinajé
Terra indígena: Aldeia Bacaba
Estado: Tocantins
Categorias:Etnias, Apinajé, Biografia, Estado, Tocantins
Tags:Apinajé, Masculino, Tocantins
José Dias Mãtyk e a luta pelo território Apinajé
Os Apinajé são um povo pertencente à família linguística Jê-Timbira que tradicionalmente habita território de confluência dos rios Araguaia e Tocantins.[1] Entre as décadas de 1920 e 1940, viviam com seus territórios ameaçados pela presença de colonos e invasores e pelas epidemias. Nesse contexto, emergiu a liderança de José Dias Mãtyk, pahi (cacique) da aldeia Bacaba, na luta pelo reconhecimento do território Apinajé. A biografia de Mãtyk contêm episódios significativos para a história Apinajé: ele destacou-se na liderança de seu povo em momentos difíceis repelindo o ataque de invasores, colaborou com o estabelecimento da paz entre as aldeias Apinajé, empreendeu viagens para reivindicar o reconhecimento das terras e dedicou-se a organização de sua comunidade.
As informações que tornam possíveis hoje recontar parte da história de Mãtyk vêm dos registros escritos de Oliveira (1930) e Nimuendajú (1956) e da memória Apinajé. Os registros de Oliveira (1930) foram feitos no encontro deste com Mãtyk em Belém, no ano de 1926. Já o relato de Nimuendajú (1956) surgiu de suas diversas passagens pelos Apinajé entre os anos de 1928 e 1937. Nimuendajú teve o próprio Mãtyk como principal interlocutor, o que possibilitou um retrato mais amplo do pahi Apinajé.
Apesar do falecimento recente de alguns anciãos, que tinham uma memória mais viva sobre o tempo de Mãtyk, outros ainda se lembram de um dos principais pahi dos Apinajé. Moxgô (Moisés), filho adotivo de Mãtyk, pôde contar ainda alguns episódios desse tempo antes de seu falecimento. Pãx (Joanita), neta de Mãtyk, contou as histórias que ouvia da irmã; Peti (Itelvina), que era jovem nesse tempo, relembrou alguns fatos. Amnhàk (Teresinha), embora não tenha conhecido Mãtyk, descreveu com riqueza de detalhes os fatos que levaram a sua morte.
No entanto, apesar de alguns anciãos lembrarem-se de fatos desse tempo, poucos sabem efetivamente quem foi Mãtyk. A escola indígena, localizada na aldeia São José, foi batizada com o nome de Mãtyk, mas os jovens Apinajé conhecem pouco os fatos que marcaram sua vida. Nas aulas, aprendem rapidamente sobre a figura de Mãtyk, mas faltam ainda materiais didáticos que retratem sua história.
As pretensões desse texto são modestas. No entanto, procura construir uma biografia de José Dias Mãtyk, pahi da aldeia Bacaba entre as décadas de 1920 e 1940, capaz de situá-lo em seu momento histórico. Os caminhos que nos levaram a retratar sua história de vida não são únicos e possuem muitas lacunas. Mas nos parece importante construir subsídios para que sua memória não seja esquecida.
* * *
Existem variadas referências históricas sobre a ocupação e mobilidade dos Apinajé em uma escala geográfica mais ampla, na área de confluência dos rios Araguaia e Tocantins, conhecida como Bico do Papagaio. A história do contato com a população não indígena tem início em meados do século XVIII, quando passam a serem mais frequentes as informações sobre os Apinajé. Naquele período, a região da mesopotâmia Araguaia-Tocantins sofreu o avanço da exploração colonial portuguesa através da busca por metais preciosos e das expedições de “apresamento” de índios. A descoberta de jazidas de ouro no Alto Tocantins intensificou a navegação destes rios, mas a resistência dos Apinajé, entre outros grupos indígenas, ameaçou a segurança das embarcações que os utilizavam. Para enfrentar esse desafio, o governo provincial instalou ao longo do Araguaia postos militares que tinham o objetivo de combater os indígenas “hostis”. No princípio do século XIX, com a expansão da frente migratória vinda do Maranhão, surgiram vilas e povoados nas margens do rio Tocantins, como Boa Vista (Tocantinópolis, no Tocantins) e São Pedro de Alcântara (Carolina, no Maranhão). A “pacificação” dos Apinajé, ocorrida por volta da segunda metade do século XIX, se deveu – entre outras coisas – ao estabelecimento de trocas comerciais mais intensas com a sociedade não indígena. Apontados como laboriosos e possuidores de grandes lavouras de mandioca, passaram a prestar apoio às navegações que cruzavam a região.
Em princípios do século XX, devido à pressão cada vez mais intensa de colonos e às doenças trazidas por estes, a população Apinajé – que no século XIX chegou a ser estimada em 4 mil indivíduos – não passava de duas centenas de habitantes. Em fins da década de 1920, os Apinajé estavam distribuídos em quatro aldeias: Bacaba, Gato Preto, Cocal e Mariazinha. A aldeia Mariazinha, mais próxima do rio Tocantins, estava praticamente desabitada e a Aldeia Cocal, situada mais próxima ao rio Araguaia, possuía 25 habitantes. A aldeia Gato Preto, na margem do ribeirão Botica, tinha, em 1928, sete casas, com cerca de sessenta habitantes. A aldeia Bacaba, situada nas confluências do ribeirão de mesmo nome com o ribeirão São José, possuía, na época de Mãtyk, uma população entre cinquenta e setenta pessoas. A aldeia Bacaba, que no século XIX chegou a contar com 850 habitantes, quase desapareceu, nas primeiras décadas do século XX, devido a epidemias e à presença de colonos em suas terras.
Nesse contexto de intenso decréscimo populacional e de pressão sobre suas terras, a liderança de Mãtyk foi fundamental no enfrentamento de um dos momentos mais difíceis da história dos Apinajé. Apesar das incertezas quanto à periodização de sua biografia,[2] alguns episódios de sua vida foram registrados por etnólogos como Snethlage (1931), Oliveira (1930) e Nimuendajú (1956), demonstrando sua luta pela segurança territorial e pelo bem-estar de sua comunidade.
O etnólogo alemão Emil Heinrich Snethlage esteve entre os Apinajé no início de 1926. A partir da margem do rio Tocantins, seguiu até a aldeia Gato Preto, no interior do território Apinajé. Nesta visita à aldeia Gato Preto, Snethlage registrou o encontro de dois “chefes” Apinajé. “Foi durante minha chegada a Gato Preto que estavam em andamento negociações entre dois desses grupos para a reunificação, que pareciam ter chegado a um final feliz” (SNETHLAGE, 1931, p. 117)[3]. Na verdade, as negociações estavam relacionadas ao reestabelecimento das relações entre as aldeias, abalados por eventos ocorridos anos antes.
Dois “chefes” Apinajé. Snethlage (1931). Provavelmente, a imagem registra o encontro
dos caciques Mãtyk e Pebkób, das aldeias Bacaba e Gato Preto, respectivamente
Em 1923, a aldeia Gato Preto foi saqueada pelos Krahô. O episódio teve início quando recaiu sobre índios estrangeiros ao grupo a acusação de feitiçaria, em decorrência de um grande número de mortes. Em função disso, o chefe Pebkób mandou matar dois índios Kayapó, mas os óbitos na aldeia Gato Preto não cessaram. A desconfiança recaiu então sobre um Krahô de nome Chico. Este, no entanto, conseguiu fugir para o território Krahô e os instigou. Armados de espingardas e bordunas, os Krahô atacaram a aldeia Gato Preto. Os habitantes da aldeia refugiaram-se em uma mata pantanosa e tiveram sua aldeia saqueada, as plantações destruídas e os animais domésticos mortos. (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 11)
Depois disso, os Krahô marcharam sobre a aldeia Bacaba. No entanto, Mãtyk, com um número menor de guerreiros, conseguiu repelir o ataque dos Krahô. Em 1930, o chefe Krahô Krapté enviou, pelo intermédio de Nimuendajú, uma mensagem de paz e amizade, convidando os chefes Apinajé para uma visita. Mãtyk, no entanto, ficou reticente com o convite. Anos mais tarde, alguns indígenas Krahô, visitaram a aldeia Bacaba (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 12).
Nimuendajú informa que Mãtyk recusou-se a socorrer os Apinajé da aldeia Gato Preto devido a desavenças entre as aldeias, resultado de atos de violência entre estas comunidades. Assim, em 1926, na ocasião da visita de Snethlage, os pahis das aldeias Gato Preto e Bacaba reuniam-se para estabelecer a paz. Segundo Snethlage, a situação parecia ter chegado a um “final feliz”. No entanto, Nimuendajú fala que, em 1930, aconselhou Mãtyk a fazer as pazes com o chefe Pebkób, o que, segundo ele, ocorreu naquele ano. “A paz se fez, e Pebkób nos visitou com sua gente em Bacaba, onde a longos anos não punha os pés.” (NIMUNEDAJÚ, 1956, p 13). Desta forma, parece que as animosidades entre os habitantes das aldeias Bacaba e Gato Preto eram recorrentes.
Logo após a visita de Snethlage à aldeia Gato Preto, Mãtyk, com outros três Apinajé, dirigiu-se à cidade de Belém, no Pará, lá chegando em 12 de setembro de 1926. Conforme informa o antropólogo Carlos Estevão de Oliveira (1930), Mãtyk disse à ele que o objetivo de sua viagem era “indagar do governo se as terras nacionais onde eles vivem já tinham sido vendidas aos homens ricos dali, e de lhe solicitar algumas dádivas”. Da relação entre Mãtyk e Oliveira, surgiu o artigo “Os Apinagé do Alto Tocantins”, em que, a partir de encontros diários, o pahi da aldeia Bacaba informou sobre os hábitos, costumes e crenças dos Apinajé. Mãtyk e outros Apinajé que o acompanhavam[4] permaneceram em Belém por 33 dias.
José Dias Mãtyk, segundo Oliveira (1930)
Mãtyk contou a Oliveira e também ao etnólogo alemão Curt Nimuendajú que, diferentemente de outros tempos, esses colonos portavam-se agora como donos das terras, dizendo aos Apinajé que o próprio governo as havia concedido a eles. Por conta disso, Mãtyk realizou uma nova viagem em 1927, desta vez com destino a Goiás e ao Rio de Janeiro, com o objetivo de apresentar suas queixas ao próprio presidente da República. No entanto, em São Paulo, Mãtyk adoeceu repentina e gravemente, e teve que voltar para a aldeia. Ele recebeu auxílio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e também de seu companheiro de viagem Katãm, que após retornar ao território Apinajé ganhou a fama de curandeiro. (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 109).
Em entrevista, Amnhàk contou que ouviu histórias sobre a viagem de Mãtyk, de que o pahi e mais três Apinajé viajaram de canoa pelo rio com o objetivo de exigir o reconhecimento de suas terra ancestrais. Os registros históricos comprovam que os Apinajé eram exímios navegadores e se moviam pelas bacias dos rios Araguaia e Tocantins desde, pelo menos, os séculos XVIII e XIX.[5] Assim, podemos supor que as viagens de Mãtyk foram feitas de canoa através dos rios da região.
Após a melhora de saúde, Mãtyk retomou a viagem, descendo o rio Araguaia rumo às terras Apinajé. Com a longa ausência do pahi, os Apinajé da aldeia Bacaba se desarticularam. Os colonos não-índios, interessados na liberação das terras, espalharam o boato de que Mãtyk havia sido assassinado durante a viagem, fazendo com que os habitantes da aldeia se dispersassem pelo território (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 12). É interessante notar que nas histórias que Amnhàk ouviu, Mãtyk, ao chegar próximo de sua aldeia, aportou na propriedade de um kupẽ (não índio) de nome Francisco Garrote, que lhe informou que todos os habitantes da aldeia Bacaba haviam sido mortos. Mãtyk, que trazia muitas coisas da viagem, deixou tudo para trás e correu imediatamente para a aldeia. No entanto, ao chegar percebeu que havia sido ludibriado, mas ficou contente ao ver que estavam todos bem. Depois de constatarem que as histórias de assassinatos eram mentiras espalhadas para desarticular a comunidade Apinajé, Mãtyk reuniu então os habitantes da aldeia Bacaba, que estavam dispersos pelo território, organizou uma grande festa “à moda cristã” e convidou os kupẽ para assisti-la. (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 12).
Após essas andanças pelo Brasil, Mãtyk “tinha-se convencido da inutilidade das suas viagens, dedicando-se com todos os seus companheiros à lavoura, que lhes proporcionava uma alimentação abundante” (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 13). Fato que parece marcante na memória dos anciãos Apinajé é a liderança de Mãtyk na organização dos trabalhos na aldeia. Pãx (Joanita), neta de Mãtyk, que ouviu histórias de sua irmã, afirmou que ele era um pahi muito dedicado ao bem-estar da comunidade. Ela mencionou a organização das roças comunitárias e o respeito que todos na aldeia tinham por ele. Môxgô (Moisés) também destacou que
todos diziam que Mãtyk era um cacique bom e que ajudou bastante a comunidade da aldeia São José (antiga Bacaba), principalmente nos trabalhos da roça para cada família. Foi excelente o trabalho que fez pelo povo Apinajé e era o único cacique bom naquele tempo (APINAJÉ, 2013, p. 7).
Na entrevista feita com Môxgô, ele afirmou que Mãtyk exercia uma forte liderança na comunidade da aldeia e era bastante conhecido pelos Kupẽ (APINAJÉ, 2013, p. 6).
Nimuendajú esteve entre os Apinajé diversas vezes entre 1928 e 1937. Em sua primeira visita, foi adotado na aldeia por uma anciã de nome Pembre (grafia conforme Nimuendajú), mãe de Mãtyk. Esta relação tornou Mãtyk o seu principal informante na elaboração de sua etnografia sobre os Apinajé. Muitas histórias de Mãtyk sobreviveram graças às descrições de Nimuendajú. Este é o caso da história de Môxgô.
Apinayé: Matúk, por Nimuendajú. Arquivo Fotográfico Curt Nimuendajú – Apinajé. CELIN/Museu Nacional
Na entrevista feita em 2011, Môxgô disse que seu pai (Belizagrekrỳ) era irmão de Mãtyk, e quando ele faleceu, Mãtyk adotou Môxgô (APINAJÉ, 2013, p 6). Nimuendajú afirmou que “Matúk tinha adotado o filho de seu irmão Belizário, tratando-o como se fosse seu filho carnal […]. De fato, o tio paterno e o sobrinho se tratavam reciprocamente pelos termos de pai e filho — id-pam e id-kra” (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 85). Nimuendajú conta outra história de Môxgô, quando este ainda era criança:
Mbodngô, com seis anos trepava, a custo, no cavalo para procurar no campo o gado de seu pai de criação, Matúk, e Tamgaága, com doze anos, caçava sozinho com espingarda, longe da aldeia, matando uma enorme ema, pesada demais para ele carregá-la para casa. Com enorme dificuldade arrastou sua presa até um caminho onde casualmente passou um neobrasileiro a cavalo, que avisou a gente da aldeia; acharam o menino sentado ao lado da ema morta, que ele não queria abandonar (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 85).
Môxgô contou que sabia mais histórias de Mãtyk. Mas, lamentavelmente, faleceu em 2016 sem haver podido compartilha-lás.
Das histórias de Mãtyk narradas por Nimuendajú, chama a atenção a descrição do encontro que o pahi teve com Mỳỳti, a entidade solar. Neste episódio Nimuendajú insere, entre as aspas, a narração de Mãtyk:
Eu estava numa das cabeceiras do Ribeirão da Botica. Já durante o caminho me sentia perturbado e constantemente me assustava sem saber porque.
De repente apareceu debaixo dos galhos pendentes de uma grande árvore do campo. Lá estava Ele em pé, com uma das mãos sobre o cacete que tinha encostado no chão. Ele era grande e de cor clara, e os cabelos desciam-lhe pelas costas quase até o chão. Seu corpo todo estava pintado e as pernas listradas de vermelho. Os seus olhos eram como duas estrelas. Ele era muito bonito.
Eu conheci logo que era Ele e perdi a coragem. Os seus cabelos se arrepiavam e os joelhos tremiam. Deitei a espingarda para um lado porque sabia que devia falar com Ele, mas não pude dizer uma palavra e Ele estava me olhando. Abaixei a cabeça para criar coragem e assim estive durante muito tempo. Quando fiquei mais calmo levantei a cabeça: Ele ainda estava lá, olhando para mim. Então fiz um esforço e dei uns passos para Ele, mas logo meus joelhos se dobraram e não pude mais andar. Assim fiquei por muito tempo, depois abaixei a cabeça e procurei outra vez tomar ânimo. Quando levantei outra vez os olhos, Ele já me tinha virado as costas e foi se sumindo de vagar pelo campo.
Então fiquei muito triste. Após ter desaparecido, ainda fiquei muito tempo no mesmo lugar; depois fui ver onde Ele tinha estado em pé: vi os rastos dos seus pés, cujas bordas estavam vermelhas de urucu e ao lado a impressão da cabeça do cacete dele. Apanhei a minha espingarda e voltei para a aldeia. Em caminho matei ainda dois veados que se chegaram a mim sem susto. Em casa contei tudo a meu pai, que me respondeu porque eu não tinha tido coragem de falar com Ele. […]
Hoje sei que naquele tempo fui muito tolo. Com certeza Ele me teria dado uma grande “segurança” se tivesse sabido conversar com Ele, mas eu era ainda novo demais; hoje faria outra coisa (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 104-105).
Nimuendajú destacou que esta fala revelava um profundo sentimento religioso de Mãtyk, e que “a consciência de estar em presença de seu deus e criador foi tão esmagadora que aquele homem corajoso e circunspecto, ficou como que petrificado, apesar de todas as ponderações racionais” (NIMUENDAJÚ, 1956, p. 105).
Apesar das lacunas presentes na história de Mãtyk, a sua morte é um dos eventos narrados com maior riqueza de detalhes. Segundo Amnhàk, Mãtyk fez uma viagem com homens e mulheres da aldeia Bacaba para buscar um forno de torrar farinha na aldeia Botica. No caminho de volta à aldeia Bacaba, encontraram um morador chamado Abílio, que presenteou o grupo com muitas melancias. Uma das mulheres deixou cair uma melancia. Mãtyk não querendo deixar para traz comeu-a ali mesmo. “Estava no sol quente, com o corpo quente e comeu a melancia quente, tudo quente, por isso passou mal.” Logo que chegou à aldeia começou a sentir-se muito mal. Teve febre, dor de barriga durante o dia e, no início da noite, faleceu. Conforme Amnhàk, o cacique Mãtyk deixou muita saudade e tristeza na comunidade. Sua morte repentina deixou todos espantados, pois faleceu muito jovem.
Esta narrativa sobre a vida de José Dias Mãtyk é preliminar e pode ser ampliada com a incorporação de outras informações, como o estudo de suas relações de parentesco.
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O nome de Mãtyk foi imortalizado na escola indígena da aldeia São José. Entretanto, sua história ainda é pouco conhecida pelas novas gerações. Muito das histórias de sua vida foram perdidas pelo falecimento de anciãos que mantinham vivas a memória daquele tempo. Mas seus descendentes ainda trazem lembranças de Mãtyk. Além disso, as etnografias feitas sobre os Apinajé nas décadas de 1920 e 1930 ajudaram a construir uma narrativa de sua vida. A perseverança na luta pelo reconhecimento do território tradicional dos Apinajé e a forte liderança exercida na organização da comunidade deixaram marcas na memória do povo, que ressalta sua importância como pahi em um dos períodos mais conturbados da história Apinajé.
Referências bibliográficas
APINAJÉ, Maria dos Reis Pãxre. Histórias Apinajé: formas de contar, registrar e conhecer o mundo. Trabalho de conclusão de curso. Núcleo Takinahaky de Educação Superior. Universidade Federal de Goiás, UFG, Goiânia, 2013.
NIMUENDAJÚ, Curt. Os Apinayé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Tomo XII, Belém/PA, 1956. 150 p.
OLIVEIRA, Carlos Estevão de. Os Apinagé do Alto Tocantins: costumes, crenças, artes, lendas, contos e vocabulário. Boletim do Museu Nacional, v. VI, n. 2, 1930. pp. 61-110.
SNETHLAGE, Emil Heinrich. Unter nordostbrasilianischen Indianern in: Zeitschrift für Ethnologie, LXII, 1931. pp. 111-205.
Notas
[1] Os Apinajé vivem atualmente em uma Terra Indígena, homologada em 1985, de cerca de 142 mil hectares, no norte do estado do Tocantins. Sua população atual é de aproximadamente três mil indivíduos. A região onde habitam caracteriza-se por ser uma zona de transição entres os biomas cerrado e amazônico, apresentando diferentes tipos de cerrado nas regiões de “chapada” e de florestas de galeria nas margens dos cursos d’água. Além destas formações, a região do norte de Tocantins é coberta por florestas de palmeiras de babaçu.
[2] Não sabemos ao certo a data de nascimento de Mãtyk, nem mesmo o período exato em que este exerceu a função de pahi. Porém, segundo informações de Nimuendajú (1956), estima-se que tenha nascido em fins do século XIX. Sabe-se que, em 1923, Mãtyk já era o pahi da aldeia Bacaba, por conta dos eventos do ataque Krahô. Ainda segundo Nimuendajú, Mãtyk ainda era o pahi da aldeia Bacaba em 1937 – função que exerceu até a morte. Não se sabe ao certo o ano de sua morte, contudo, segundo as informações e a memória Apinajé, estima-se que tenha ocorrido em algum momento na década de 1940.
[3] Tradução do autor.
[4] Segundo Oliveira (1930), estes Apinajé eram “Pedro Chavita (Pepicôpô-Díutí), Salvador Luiz (Peemborê-Pempicurutí) e José Joaquim (Teetoni-Cupurêkini)” (p. 63).
[5] Viajantes destacaram a habilidade dos Apinajé com a navegação. Em 1793, Thomas de Souza Villa Real narrou que, na descida do rio Araguaia, os Karajá, que acompanhavam a missão, roubaram nova canoas de “ubá” dos Apinajé que se encontravam na beira do rio, além de uma mulher e uma criança. Tal como nota Nimuendajú, no final do século XVIII, os Apinajé possuíam embarcações próprias e estavam familiarizados com a navegação fluvial. Em 1844, Castelneau também mencionou embarcações em porto Apinajé do rio Araguaia. As canoas do tipo “ubá” dos Apinajé, como a dos Karajá, eram obtidas escavando o tronco de árvores, sem abrir as paredes à força. Conforme atestam os relatos, eram fabricadas pelos próprios Apinajé, que provavelmente aprenderam a arte da navegação com os Karajá-Xambioá. Nenhum outro grupo Timbira possuía a técnica de fabricação de embarcações (NIMUENDAJÚ, 1983, p. 3).
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