biografia

Pa’i Chiquito

Autor(es): Graciela Chamorro
Biografado: Pa’i Chiquito
Morte: 1980
Povo indígena: Guarani Kaiowá
Estado: Mato Grosso
Categorias:Biografia, Etnias, Guarani-Kaiowá, Estado, Mato Grosso
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Símbolo da resistência kaiowá ao indigenismo oficial

 

Resumo

Pa’i Chiquito ou Chiquito Pa’i foi um grande líder kaiowá do século XX, na região denominada Ka’aguyrusu[1] ‘Mato Grosso’, pelos Kaiowá. Ele é considerado pelos habitantes da Terra Indígena Panambizinho, situada a leste da cidade de Dourados MS, como seu fundador e último hechakáry ‘xamã que vê a palavra’, que orientou a comunidade a permanecer nas suas terras tradicionais, quando o indigenismo oficial lhe obrigara a abandoná-las e a integrar-se na Reserva Indígena de Dourados. Sua atuação foi decisiva para a permanência de muitas famílias kaiowá fora das reservas, na área da Colônia Agrícola Nacional – CAND, onde Getúlio Vargas fizera uma reforma agrária, nos primeiros anos da década de 1940.

Introdução

Neste artigo registro por escrito parte da memória que os descendentes desse grande líder cultivam a seu respeito. Parte dos dados eu fui construindo a partir do que ouvi da esposa e dos familiares e afins de Pa’i Chiquito na década de 1980 e 1990, assim como nos anos que já vão deste século. Outra parte li em Documentos do SPI, da CAND e nos trabalhos escritos por Joana Fernandes (1982), Walter Coutinho Junior (1995), Katya Vietta (1998, 2007) e Nely Aparecida Maciel (2012). Em todas essas fontes, Chiquito é a personalidade mítico-histórica mais importante para a comunidade de Panambizinho, na fundamentação de seu direito à terra, seu modo de vida e sua identidade. Ele é a referência religiosa e política mais significativa e influente na comunidade, desde a sua fundação nos anos 1920 até hoje.

Conforme pude perceber durante o trabalho de campo, sua memória é viva não só no Panambizinho, mas também em Panambi [Lagoa Rica], Itay Ka’aguyrusu, Guyra Kambiy, Tajasu Ygua, Laranjeira Ñanderu, Aroeira, Sukuriy, na Reserva Indígena de Dourados, no Passo Piraju e no Guyra Roka, na Reserva Indígena de Caarapó e em Taquara. Segundo as pessoas com quem falamos sobre Chiquito, sua influência nesta vasta área se dava sobretudo através das festas do milho avatikyry e do menino kunumi pepy. Sua influência via parentesco se observa no Panambizinho, Panambi, Laranjeira Ñanderu, Tajassu Yguá e Sukuriy, entre outros.

Chiquito é um humano singular. Sua filha Adelina e sua bisneta Rosely são categóricas: “Chiquito viu Deus!”. O ‘Pássaro da Boa Palavra’ Guyra Ñe’ngatu, emissário do grande ícone kaiowá, o Sol ou Pa’i Kuara, voou com ele para outros planos de existência, onde Chiquito recebeu a clarividência daquelas pessoas chamadas hechakáry, xamãs que veem a Palavra, que têm visões e mantém relação direta com o herói cultural Ñande Ryke’y ‘Nosso Irmão Mais Velho’. Depois disso, ele não cozinhava mais seu urucum; era só levantar o braço e ficava pronta sua pintura. Esta crença é aceita sobretudo pelas pessoas que se orientam por valores e práticas considerados tradicionais. A tradição oral e os rituais se tornaram os suportes dessa memória atualizada em cada geração.

 

Pa’i Chiquito e o Ka’aguyrusu

Na memória de Adelina [Merina] Ramona, uma das duas filhas ainda vivas de Chiquito, assim como da neta Arda Concianza e a bisneta Roseli Concianza Jorge, o xamã nasceu e viveu seus primeiros anos nas proximidades do Rio Dourados, chamado de Yguasu ‘grande água’, pelos Kaiowá. Ele nasceu precisamente em Tujuygusu, localidade que ficaria hoje entre o município de Fátima do Sul e Vila Sapé. Seu nascimento pode ser situado no final do século XIX início do século XX.

Chiquito é conhecido por quatro nomes: Ava Jeguaka Poty Rusu é seu nome próprio em kaiowá ou seu nome divinizador itupã réry; Ynambu Para, seu apelido, Rui (do português Luís), nome recebido dos não indígenas e Pa’i Chiquito ou Chiquito Pa’i, que é o mais popular. Pa’i indica sua qualidade de xamã e Chiquito, provavelmente, seu porte físico. Numa região onde na primeira metade do século XX circulavam mais falantes de espanhol (paraguaios e argentinos) do que de português, não é de estranhar que os Kaiowá tenham incorporado em sua língua termos castelhanos, como Chiquito, em vez de Chiquinho.

Segundo nossos interlocutores e as nossas interlocutoras, os nomes de Pa’i Chiquito mostram o sistema onomástico kaiowá de então: um nome verdadeiro ou divino e eventualmente um nome de guerra ou apelido. Assim, a mãe de Chiquito tinha o apelido de Machu Tika, mas seu nome próprio em kaiowá era Mbo’y Rendyju. Os não indígenas lhe deram o nome de Maria Manoela e ela teria nascido pelo ano 1864, no lugar onde mais tarde se formou a Vila São Pedro, mudando-se depois ao sul, mais ou menos onde surgiu a cidade de Indápolis.

Merina repete uma e outra vez que os termos “papai” e “mamãe” foram introduzidos no vocabulário kaiowá com a chegada dos colonos; antes disso, “papai” era hiu e “mamãe” ha’i.

Chiquito se casou com Mbo’y Tukambi, também moradora de Tujuygusu, quando ela tinha 15 anos. Dos não indígenas, sua esposa recebeu o nome de Ramonita. Esta era filha de Mbo’y Rete e Karai Papa, vulgo Pichó; um de seus irmãos, Paulito Aquino, se tornou braço direito de Chiquito na manutenção dos rituais tradicionais.

De Tujuygusu, Chiquito e sua família se deslocaram para outros lugares. A lista muda conforme o interlocutor ou a interlocutora. Seguem aqui alguns dos lugares mencionados: Marakanãy, Guaviraty ou Guaviray, Ka’aruruty, Yvyra Jepiroty, Kiritaty, Tapesu’ãty e Aimerĩ’y. Em alguns relatos estes deslocamentos são interpretados, de forma anacrônica, como sendo causados pela pressão exercida pelos “colonos” não indígenas que chegaram na região recém na década de 1940; para outras pessoas, eles são exemplos da mobilidade tradicional kaiowá; para estes, os serviços xamânicos de Chiquito eram requisitados nessas comunidades por onde ele passou com sua família, chegando a ficar de um a três anos em cada uma.

Nesse contexto, não podemos esquecer que em setembro de 1917 foi criada a Reserva Indígena de Dourados – RID, com a missão oficial de reagrupar os indíge­nas espalhados pela exploração da erva-mate. José Augusto dos Santos Moraes, porém, aponta que esse fato “promoveu o mais intensivo deslocamento forçado dos indígenas das áreas que já habitavam […] nas margens do Rio Brilhante e seus afluentes, mas também em áreas mais próximas ao Rio Vacaria”. Os fazendeiros da região pediam a retirada dos indígenas de suas áreas de domínio, mas não queriam deixar de utilizar a mão de obra deles. Vários documentos do SPILTN/SPI, com destaque para os Boletins de Serviço, mostram “que constantemente os chefes de postos indígenas do SPILTN/SPI eram acionados pelos fazendeiros regionais para a liberação de indíge­nas para o trabalho sazonal, principalmente na lida com o gado” (MORAES, 2016, p. 22). De modo que as frequentes mudanças de Chiquito e seu grupo podem muito bem ter sido motivadas pela demanda de seu conhecimento xamânico, mas também pela pressão exercida desde a RID sobre os Kaiowá, já que estes frequentemente respondem com a mobilidade física às pressões.

Nessa mesma linha de raciocínio, as andanças de Chiquito e sua gente também podem ter sido motivadas por alguns dos 80 ervateiros atuantes na região de Dourados na época, com pontos de extração de erva-mate ao longo do Rio Brilhante e com vários portos – Bocajá, Novo e Vilma – às margens desse rio e do córrego Laranja Doce (CORREIA, 1927, p. 2; VIETTA, 2007, p. 81).

Em todo caso, Panambizinho foi fundada na década de 1920. Com esse nome ele aparece só na segunda metade do século XX, constando nos documentos mais antigos somente o nome Panambi, tanto para a atual comunidade situada no município de Douradina como para a comunidade de Panambizinho, pertencente ao município de Dourados. Assim, um dos “pioneiros” de Dourados, o Senhor Albino Torraca, afirmou em 18 de junho de 1949, que ele habitava na região desde o ano de 1900 e que então já existia a aldeia de Panambi e que “isto” [a região] era habitada “por puro índios” (cf. VIETTA, 1998, p. 65).

Muito antes de Torraca (1949), que atesta retrospectivamente a presença kaiowá no Panambi, Rondon, durante sua primeira passagem pela região, em 1905, menciona os Kaiowá na “barra do Dourados”, onde trabalhavam pacificamente na extração da erva-ma­te: “nas barras desse rio [Brilhante] acham-se localizados os índios Caiuá, da nação Guarani, índios pacíficos e empregados nessa zona na extração e fabrico de herva mate” (RONDON, 1949, p. 101). O inspetor do SPI, Nicolau Bueno Horta Bar­bosa, em 1915, também menciona os Kaiowá no Panambi. Em 1922, Rondon volta a citar os Kaiowá. Em 1927, ele escreveu: “Aproveitei a oportunidade para visitar o posto indígena dos índios caiuás e a estação telegráfica deste nome” (VIVEIROS, 1958, p. 532).

Segundo os descendentes de Pa’i Chiquito, Rondon teria montado acam­pamento entre os Kaiowá e estes lhe teriam ajudado no reconhecimento e mapeamento da área, na construção da rodovia entre o Rio Dourados e o Rio Brilhante, bem como na construção da infraes­trutura para a extensão da linha telegráfica nesse trecho. Seus avós teriam derrubado árvores, arrancado tocos e carpido os caminhos para Cândi­do Rondon. São recorrentes nos relatos termos como “telégrafo”, “terra”, “Kaiowá”, “estrada” e “Rondon” (VIETTA, 1998, p. 25).

Em troca, Rondon teria prometido a Pa’i Chiquito a posse do Ka’aguyrusu. Segundo Katya Vietta (2007, p. 92), esta área seria de aproximadamente 50 mil hectares. Rondon deixou assim uma expectativa muito grande entre os Kaiowá, sendo evocado como herói no Panambizinho, no Panambi, em Sukuriy, Laranjeira Nhanderu e nos diver­sos acampamentos que integram o Ka’aguyrusu desde fazem alguns anos. Isso, apesar de sua promessa nunca ter sido concretizada.

A família de Pa’i Chiquito

O casal Chiquito e Ramonita teve sete filhos: 1) Martin Kapile, 2) Neiko, 3) Cidinho, 4) Arasi, 5) Dorícia, 6) Isaura, 7) Luzia, 8) Adelina Merina e 9) Elza. Com exceção das duas últimas todos os homens e as outras duas mulheres já são falecidos. Na década de 1980 registrei como filhos de Chiquito e Ramonita também João e Genório, que teriam cometido suicídio na década de 1940. Meus interlocutores atuais, no entanto, afirmam que esses dois eram sobrinhos do casal; não seus filhos. Este tipo de confusão é possível acontecer pois sobrinhos de primeiro grau são considerados filhos. Pesquisando melhor, no entanto, descobrimos que ambos eram filhos de Dorícia e Lauro, que nasceram na década de 1940 e se suicidaram em 1975 e 1964, respectivamente.

Os filhos e as filhas de Chiquito e Ramonita, com seus descendentes são:

  • Arasi Pedro: Casou-se com Manoerito com quem teve 1 filho e 1 filha. Depois da morte de seu esposo em 1975 foi morar na aldeia Lagoa Rica no Panambi, de onde saiu para acampar em Laranjeira Ñanderu, onde faleceu. Seu filho Valmiro se suicidou, Alcides Pedro seu primogênito, é o líder do acampamento.
  • Adelina Merina Ramona: casou-se com Hamilton Aquino e teve com ele 4 filhos e três filhas: Denário, Osvaldo, Teresinha (a primogénita ou principal), Pedro, Vanilton, Guinaldo e Jacira. Destes, Guinaldo já é falecido e Jacira é portadora de deficiência física.
  • Dorícia Elisia Pedro: casou-se com Lauro Concianza e teve com ele 4 filhas e 6 filhos: João, Genório, Gomercino, Cideval, Mário, Nelson, Arda, Anamélia, Dita e Neusa. Gomercino nasceu em 1945 e tem 7 filhos e filhas; João nasceu em 1942 e se enforcou em 1975, deixando 1 filho; Genório nasceu em 1944 e se enforcou em 1964; Cideval, nasceu em 1949, tem 11 filhos; Mário nasceu em 1951 e não se casou, já é falecido; Nelson, o mais velho ou principal, casou-se com Rosalina Aquino e ambos tiveram 4 filhos e 4 filhas: Abrão, Salomão, Fineida, Jonas, Fabiana, Luiz, Fábio e Luciana; sendo que Fabiana, Luiz e Salomão já são falecidos, este último por enforcamento. Dita casou-se com Argimiro Jorge Galeano tiveram 10 filhos e filhas; já é falecida. Arda herdou os cantos e as rezas de Dorícia e Chiquito, se casou com Adão Jorge Galeano e teve com ele 5 filhos e 5 filhas: Misael, Anardo, Roseli, Odótio, Nair, Celina, Zenaide, Minguel, Dilma e Neri. Arda faleceu em 2017.  Destes, Roseli Concianza Jorge herdou as rezas de Arda, Dorícia e Chiquito, se casou com Valdomiro Aquino e deu sete tataranetos e tataranetas a Pa’i Chiquito e Ramonita: Silvinho, Rose, Valdinéia, Vanessa, Josiane, Jeovani e Sandro. Anamélia teve 4 filhos e filhas. Neusa se casou com Ricardo Jorge e com ele teve 13 filhos. Fora Neusa, que mora no acampamento Guyra Kambiy, os filhos e as filhas de Doricia moram no Panambizinho.
  • Elza Pedro: se casou com Valdivino e teve com ele duas filhas: Nilda Pedro e Marta Pedro. Todas são moradoras do Panambizinho.
  • Martin Capilé: mais velho dos filhos. Casou-se com Adelina Solidade, conhecida na velhice como Jari Capilé. Ambos tiveram 1 filha: Gina Capilé, que teve quatro filhos e quatro filhas: Lizete, Marinete, Regina e Sonia; Lázaro, Simão, Lizeu e João, todos moradores do Panambizinho.
  • Neiko: casou-se com Valentina Duarte e tiveram um filho e duas filhas: Severino, mora no Panambizinho, Irena e Zilda moram no Jaguapiru.
  • Cidinho: casou-se com Fia e tiveram três filhas e dois filhos. Sirley mora no Panambizinho, Vanda mora em Campo Grande, Demário mora no Itay Ka’aguyrusu, Luiz mora no Jaguapiru e Nídia já é falecida.
  • Isaura: casou-se com Rubito, irmão de Lauro, e com ele teve dois filhos.
  • Luzia casou-se com Antônio e juntos tiveram dos filhos e uma filha.

Os descendentes de Pa’i Chiquito e Ramonita moram nas aldeias e nos acampamentos do antigo Ka’aguyrusu. São uma exceção os que moram na reserva de Dourados ou em Campo Grande. As filhas de Chiquito e Ramonita mantiveram a rica tradição oral de seu pai e sua mãe. Os descendentes de Dorícia, incluindo as netas Roseli e Adelaide e o neto Misael, seguem nesse mesmo caminho, sendo que as que de fato conhecem os cantos rituais são Neusa, Arda [in memoriam] e Roseli. Os netos Misael, Anardo, Fábio, Luciana e Kiki, egressos ou estudantes na Faculdade Intercultural Indígena FAIND, da UFGD, têm transcrito e registrado em vídeos parte da tradição oral que ouviram de suas avós ou presenciaram em rituais, mas estes não se consideram guardiãs dessa palavra; ou seja, não estão vinculadas ritualmente com essa palavra. Contudo, é essa palavra que lhes rende prestígio no novo ambiente social em que interagem, como a escola, a universidade, os grêmios políticos e as ONGs.

Estes parentes mantém um elo forte entre si e têm consciência de sua ancestralidade comum. Em 2013 organizei com outras colegas um encontro de música indígena no acampamento Guyra Kambiy. Preocupada, uma das líderes, bisneta de Chiquito, me abordou, dias antes do evento, dizendo que não poderia haver primeiro e segundo lugar pois o repertório de todos os grupos remontam a Chiquito Pa’i; ele é que deveria ser premiado.

Pa’i Chiquito funda a comunidade de Yvýa Kandire ou Panambizinho

Panambizinho significa ‘Borboletinha’; é uma expressão híbrida que mistura Panambi ‘borboleta’ com o diminutivo ‘-zinho’, do português. Nos relatos de origem, esse nome foi dado pelos não indígenas à comunidade. Originalmente Chiquito teria chamado o lugar de Yvýa Kandire ‘Terra esplêndida’, ‘Terra Perfeita’. Schaden a chama de Panambi. Em outros documentos, a área que deu “início” a Panambizinho consta como “Aldeia Paí Chiquito”.

Chiquito era ainda muito jovem quando passou pela experiencia espiritual que lhe capacitou para lidar com sabedoria com as dificuldades que lhe sobreviveriam. Segundo seus familiares, na região onde ele se criou era pura mata e nela viviam muitos indígenas. Já casado, com vinte anos, Chiquito teria tido uma visão, para procurar um bom lugar e levantar um novo tekoha. Mais de uma dezena de casais com seus familiares o acompanharam. Saiu das proximidades de Vila Sapé e se dirigiu para a região da atual Panambizinho, disposto a encontrar um novo local de residência. Entre os casais que o acompanharam, estavam certamente Augusto Reinaldo e Mônica Atino, Matério Silva e Pifânia. Joãozinho Kavaju e Clarice Barbosa Conciança (Cirila).

Chiquito entendeu que essa terra seria a baixada sem água que viria se tornar Panambizinho, mas seus acompanhantes não concordaram, pois não havia água no local. Ele teria submetido sua intuição à prova da reza, ao cabo da qual surgiu uma mina bem produtiva no lugar. Ninguém mais duvidou e a mina se tornou mais uma prova da clarividência de Chiquito.

Na interpretação de Valdelice Verón e Natanael Vilharva, casal de docentes indígenas que morava no Panambizinho em 2008, este local não pode ter sido desconhecido para Chiquito, pois os Kaiowá costumavam se mudar para um lugar que já conheciam e onde já estiveram morando ou explorando, remota ou recentemente, de forma mais temporária ou mais duradoura.

Então, para esses colegas, quando Pa’i Chiquito fundou Panambizinho, ele estava fixando uma nova residência dentro do Ka’aguyrusu, que era seu tekoha. Ele conhecia seu tekoha e o local que acabou se tornando Panambizinho era seu lugar de caça, de moradia temporária. Até hoje, os Kaiowá têm o costume de ir caçar e pescar longe de casa. Fazem um tejupa ‘telhadinho de sapé’ ou uma casa maior e passam dias longe de casa.

De modo que quando se diz que Pa’i Chiquito saiu de Tujuygusu – um local mais preciso do Guaviray – para o Panambizinho e aí fundou um tekoha e que os colonos vieram de Minas Gerais, São Paulo ou do Nordeste para esse mesmo lugar, parece ser a mesma coisa, para quem não têm noção da mobilidade tradicional kaiowá. Dá a entender que aqui não era uma terra tradicional indígena. Valdelice pondera:

“O tekoha é um lugar maior do que o espaço ocupado pelas casas ou residências das pessoas da comunidade. Ele é um território que compreende o lugar das moradias, o lugar de caça, pesca e coleta, o lugar da roça, o lugar onde se lava roupa e se toma banho, o lugar que está descansando e os caminhos que garantem a sociabilidade, o vínculo entre as famílias que residem nos vários lugares ocupados pelas casas”.

Assim, não se pode falar do Panambizinho, que era o local das residências apenas, de forma isolada. Quando se fala em Panambizinho, tem que se falar do tekoha Ka’aguyrusu. Pa’i Chiquito era um Ka’aguyrusuygua e ao estabelecer-se no local que se tornou Panambizinho ele estava se movendo dentro de um tekoha muito antigo, ocupado pelos seus ancestros e ancestras, ijypykuéry.

Os limites do tekoha Ka’aguyrusu estão presentes na memória da população kaiowá e são aqueles já mencionados acima. Nessa área havia vários locais de residência, que fazem referência a pessoas destacadas do lugar. De modo que o lugar chamado pelos kaiowá de Jari Tarikue é o lugar onde residiu uma das avós de Chiquito. Outros lugares têm como referência os rios, a flora ou a fauna da região. O relator do SPI, em 1923, fez uma lista das localidades onde residiam os grupos mais populosos, para os quais urgia demarcar terras. Destaco aqui aquelas situadas no Ka’aguyrusu: aldeia na Cabeceira do rio Laranja Doce a 3 km de Dourados; aldeia Cabeceira do rio Sardinha a 9 km de Dourados, com muitos índios dispersos ao longo desse ribeirão; aldeias da Cabeceira do rio Panambi a 10 km; aldeia do Córrego do Enga­no na fazenda Revolta, a margem do Rio Dourados; aldeias do Iguaçu (ou Guaçu), Capão Ralo e outras ao longo do Rio Dourados; aldeia de Aquino no lugar chamado Bocajá, entre outros (ESTIGARRIBA, Relatório S.P.I – Inspetoria de Mato Grosso, 31 de dez. 1923. Museu do Índio, Rio de Janeiro. Microfilme 379, fotograma. 1.472-1.473).

Todas estas localidades são reivindicadas até hoje pelos Kaiowá auto referidos como Ka’aguyrusugua, ou originários da mata, destacando-se entre eles os que têm no Pa’i Chiquito o seu elo mais forte com o passado. Nas proximidades desses locais estão os acampamentos kaiowá de Itay Ka’aguyrusu, Guyra Kambiy, Tajassu Ygua e Laranjeira Ñanderu. Por ordem, a liderança dessas frentes de retomada é integrada por familiares de Chiquito: uma neta, Teresinha; uma filha, Adelina, uma neta, Neusa, e uma bisneta, Adelaide; um descendente cujo nome não consegui precisar; um neto: Alcides Pedro.

Pa’i Chiquito à frente de indígenas “indisciplinados e rebeldes”

O espírito nacionalista do Estado Novo motivou a Marcha para o Oeste. Nessa política, enquadram-se as Colônias Agrícolas Nacionais (CAN), cria­das por meio do Decreto-Lei nº 3059, em fevereiro de 1941, sendo uma delas a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), implanta­da pelo Decreto-lei Nº 5.941, de 28 de outubro de 1943, sem nenhuma menção aos moradores indígenas dos trezentas mil hecta­res destinados para a CAND (SILVA, 1982, p. 18-9).

A atuação de Pa’i Chiquito como símbolo de resistência se consolidou precisamente no corpo a corpo com os agentes da CAND. Como indígenas fora das reservas, ele e sua gente eram tratados muitas vezes com violência pelos “distinguidos senhores” da nascente sociedade douradense, embora inicialmente os primeiros contatos entre indígenas e colonos pareçam ter sido pacíficos. As interlocutoras de Katya Vietta (1998, p. 40) contam que os recém-chegados colonos teriam pedido licença a Pa’i Chiquito para pegar água, cana, banana, batata e mamão; o que Chiquito lhes teria fornecido. Então os colonos só ocupavam os lugares não ocupados – habitados – por indígenas, mas logo eles avançaram sobre as áreas efetivamente habitadas pelos Kaiowá e a administração da Colônia começou a solicitar a retirada das famílias indígenas. O SPI acatou essa solicitação e respondeu com a transferência das famílias para o Posto Indígena Francisco Horta de Dourados.

Diante disso, parte da comunidade se dispersou pela região, rumando para o Paraguai e para o Paraná. Algumas famílias também acabaram indo para a Reserva de Dourados. Outras permaneceram no local (Silva, 1982, p. 20). Lauro Concianza, genro de Pa’i Chiquito, mencionou numa entrevista prestada a Katya Vietta (1995), que um se­nhor de sobrenome Aguirre fez muita pressão para que a população do Panambizinho fosse levada para a reserva de Dourados. Inclusive que seu líder, Pa’i Chiquito, devia abandonar o lugar. Ele lembrava que muitas famílias do Panambi fo­ram, de fato, transferidas para o Posto Indígena Francisco Horta de Doura­dos, mas que outras permaneceram com Pa’i Chiquito na área ou para ela voltaram, frustrando, assim, o plano oficial. O mesmo pode se conferir em docu­mento dirigido por Darcy Ribeiro ao Diretor do SPI, em 1949. O próprio diretor da Colônia reconhece o impasse no ofício N° 4724/51:

Embora possuindo o Posto Indígena Francisco Horta uma área ampla e esplêndida, destinada ao aldeamento dos índios Caiuás de Dourados, esses dificilmente se sujeitam ao aldeamento e em mea­dos de 1950 tive notícias que estavam muitos deles retornando às matas do Panambi, abandonando a vida disciplinada do Posto (Ofi­cio N° 4724/51 de 06.08.1951).

Em 9 de julho de 1952, Iridiano Amarinho de Oliveira, chefe da I. R. 5, após sua visita ao Panambi, escreveu ao diretor do SPI, ter encontrado no local indígenas “na mais lastimável [situação] de seres humanos”. Na sua avaliação, seus sofrimentos são “agravados com o clima de insegurança que paira sobre eles com a ameaça constante por parte [de] terceiros, de abandonarem o que lhes resta da sua aldeia”. O chefe da I. R. 5 menciona que os homens civilizados à frente dos negócios públicos pretendiam banir os índios do Panambi “para as margens do Rio Brilhante”, zona alagadiça, onde só havia abundância de mosquitos, febre e aridez, ou levá-los ao Posto Francisco Horta.

O chefe da I. R. 5 julga insensata ambas as possibilidades e lembra a seu interlocutor o Decreto 8.072, de 20 de junho de 1910, que fundara o SPI. Do capítulo III desse decreto, ele destaca o art. 10: “Se os índios – que estiverem atualmente aldeados quiserem fixar-se nas terras que ocupam, o governo providenciará de modo a lhes ser mantida a efetividade da posse adquirida”. Com base neste artigo, Oliveira pede ao presidente do SPI que “seja reencaminhado ao Sr. Diretor de Terras e Colonização” a fim de determinar “a demarcação das terras que sempre pertenceram aos indios Caiuás de Dourados, e onde está feito o loteamento da Colônia Federal, embora ali residindo, ainda, os seus verdadeiros donos”.

Para Oliveira, “uma gleba de 1.500ha de terra, respeitando a locali­zação onde se encontram os índios de Panambi, é medida-justa e repara­doura”. A sensatez desse chefe se observa também na sua recomendação: “No caso de tal medição alcançar glebas já entreguem a Colonos, e por eles cultivadas no todo em parte, a C.A.N.D. a estes, faça concessões maiores como recompensa, evitando-se deste modo, a fermentação do ódio contra o índio e aquela Repartição”.

Em carta dirigida ao SPI, no dia 11 de Dezembro de 1952, o Sr. Iridia­no Amarinho de Oliveira, chefe da I.R.5, volta a escre­ver estarrecido sobre a arbitrariedade praticada pela CAND, que “violando todas as regras de ética administrativa, invadiu a propriedade territorial indígena naquela região (SPI 2995/51) sem o menor respeito ao direito de terceiros, deixando os índios ‘CAIUÁS’ de Panambi entregues a sua sorte” (Planilha 331, Microfilme M-027, Planilha-337, Ofício n-157).

Nas entrelinhas desses documentos, pode ser percebida a ideia do governo de recluir as comunidades desterradas nas reservas oficiais. Os grupos que resistiram a esse processo, retornando às matas, consegui­ram que a Colônia não lhes tomasse toda terra. Tal foi o caso da comuni­dade indígena do Panambi e do Panambizinho com os administradores da CAND e com os agricultores assentados na região. A terra dessas comuni­dades ficou reduzida a dois núcleos populacionais: um de 60 hectares, no Panambizinho, e outro de 240 hectares, no Panambi ou Lagoa Rica.

O antropólogo Egon Schaden, que pesquisou na região entre os anos de 1949 a 1951, quando a comunidade de Panambi, hoje Panambizinho, vivia a dramática situação de presenciar o loteamento de suas terras pelo governo, registrou:

Na expectativa de perderem, assim, a sua área de caça e plantio, es­tavam alvoroçados. Receberam-me de maneira hostil, de machete em punho, dispostos a liquidar-me e ao funcionário que me acom­panhava, caso a nossa visita se prendesse à execução daquele plano dos poderes públicos, que para eles representava o “fim do mundo (SCHADEN, 1963, p. 80).

Schaden pediu que os moradores dessa comunidade fizessem desenhos. Para o pesqui­sador, os desenhos expressavam uma obsessão apocalíptica, que em pouco tempo tomara conta da comunidade, devido às condições periclitantes de vida a que era forçada e devido aos conflitos com os funcionários do Go­verno e com os colonos; ou seja, a situação de crise ativou o sonho mítico da comunidade:

A iminência de se verem afinal expulsos de seu último rincão de terras tornava os índios obsessos […] representavam o loteamento de sua tradicional área de caça e de lavoura […]. Lotes distribuídos a colonos nordestinos ou estrangeiros ficavam em branco ou, quando muito, ostentavam algum bichinho, como “carrapato dágua”. Já nos das famílias kayová apareciam movimentadas cenas de cunho reli­gioso: índios dançando em torno do yvyrá, “altar”, e, sobressaindo como figura máxima – tal como no quadro social da comunidade – o paí, ou médico-feiticeiro, em uma das mãos o maracá e na outra a cruz de madeira […]. Quando se lotearam as terras da aldeia, Paí Chi­quinho organizara uma cerimônia com danças mágico-religiosas, no intuito de precipitar a destruição do mundo. Os Kayová então se prepararam para a sua jornada com destino ao Além (SCHADEN, 1963, p. 81-2).

A luta da comunidade kaiowá por permanecer em suas terras es­tendeu-se pelas décadas seguintes, como pode ser visto na carta do Inspetor do Posto Indígena “Francisco Horta” ao Coronel Moacir Ribeiro Coelho, em 23 de março de 1962. Havia brancos que se diziam proprietários dos lotes habitados por famílias kaiowá. Eles insistiam que se “limpassem” as glebas ocupadas pelos índios. O Inspetor então expressa:

Nós mandamos entenderem-se com o chefe da 5ª Inspetoria – Cam­po Grande, mas parece que a Regional tem tendêndia a deslocar os índios e com isso nós ficamos além de tudo sobrecarregados com o serviço de ainda estarmos convencendo os índios que não estão de acordo a vir para este Posto, deixando suas moradias, arvoredos, etc: destes casos, ainda são indisciplinados e rebeldes os que residem na referida área de Panambi” (Cf. SILVA, 1982, p. 23)

Do mesmo ano do documento anterior, 1962, data um relatório lo­calizado no Microfilme 16, Planilha 248, do SPI. Em resposta ao telegrama n. 990, de 11 de junho, que lhe fora enviado, o relator contatou o Diretor da CAND, a fim de assegurar à comunidade kaiowá da Aldeia Panambi a pos­se de sua terra. Ele lembra ao administrador da CAND que a posse de suas terras está garantida por lei aos indígenas e que a comunidade de Panambi ocupa há mais de 40 anos o lugar que reivindica, conforme declarações tomadas, em 18 de junho de 1949, a cinco pessoas idôneas residentes em Dourados, entre eles a de Albino Torraca, já mencionado acima.

Para pôr fim à instabilidade e aos permanentes sobressaltos em que vivia a comunidade pelo temor da espoliação, o relator insta a Colônia, de­tentora de uma gleba de 300 mil hectares, a ceder não apenas 500 hectares, mas 2 mil hectares à Comunidade do Panambi.

As recomendações, porém, não surtem efeito e os conflitos continu­am. Em 30 de julho de 1964, o chefe da I. R. 5 do SPI, Alan Cardec Martins Barbosa, comunica ao major Salustino de Farias Vinagre, inspetor do SPI, da invasão da terra dos indígenas do Panambi.

A chefia desta I.R., acaba de tomar conhecimento por intermédio da Sra. Loide Andrade Bonfim, Diretora do Hospital “Missão Caiuás”, hospital esse localizado no município de Dourados, de estarem “os nossos índios (Caiuás) ameaçados de expulsão de suas aldeias no local denominado Panambí por indivíduos que se dizem legítimos donos das citadas terras. Esclareço-vos que esta inspetoria é possui­dora de documentação, concernente à aldeia de PANAMBÍ, inclu­sive Processos S.P.I. -3433/49 e 2995/51, provando que o direito dos índios é indiscutível e assegurado pela Constituição” (Museu do Ín­dio, Microfilme M-017, filme 019, Of-188/64, disponível no NEPPI/UCDB, Campo Grande, MS).

Pese às várias tentativas feitas para solucionar o impasse criado entre colonos e comunidade indígena sobre as terras do Panambizinho, os con­flitos continuaram. Assim, em 1970, Mário Bargodache e Tereza de Araújo Bargodache entraram com uma ação [0368/87] contra Pedro Chiquito e sua esposa Ramonita Chiquito requerendo os lotes 8 e 10 da quadra 21, os 60 ha que restaram à comunidade. O casal Bargodache alegava ter adqui­rido esses lotes de Gentil José Lopes e Agenor Ferreira dos Santos.

A pesar dos esforços de Hélio Jorge Bucker, chefe do I. R. 5, em prol da demarcação da terra indígena, o único resultado concreto a que se chegou foi a declaração expedida, em 1973, assegurando a posse da comu­nidade kaiowá sobre os lotes em litígio. Esta declaração garantia às comu­nidades de Panambizinho e Panambi sua permanência no local:

Declaro para os devidos fins que, de acordo com o Oficio nº 2/68 de 30 de janeiro do mesmo ano […], confirmo a todos os interessados que a Gleba de Panambi e Douradina, constituiu-se por Lei – Posse dos índios, em virtude que os índios que nela habitam são da tribo kaiua bem primitivos e vivem nessa área desde que nasceram. Os mesmos nunca abandonaram a sua área e que a referida Gleba per­tence a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como posse legítima (Declaração de 1973, Cf. VIETTA, 1998, p. 101; 2007, p. 127).

Esses indígenas que, embora cada vez mais exprimidos, resistiram em permanecer nas terras são qualificados nos documentos como “ainda indisciplinados e rebeldes”. Consequentemente, diante da valorização cada vez maior das terras da região, começaram a ser cada vez mais criticados pelo uso “irracional” do solo.

Em 2001, quando a comunidade de Panambizinho ocupa uma das propriedades que há mais de cinquenta anos lhe fora expropriada, o fez fincando a cruz, Chiru, deixada por Pa’i Chiquito. Através dela, o xamã estava presente na comunidade, com a sua palavra gravada nesse símbolo. Associada à maraca e fincada na terra retomada, a cruz fala e encoraja os Kaiowá à luta (Roseli Concianza Jorge).

Os rituais e outra práticas culturais liderados por Chiquito

Valdivino Agimiro Jorge, Jeguaka’i, é filho de Edita Concianza, filha de Lauro e Dorícia, portanto Valdivino é neto de Pa’i Chiquito. Seu pai é Agimiro Jorge, filho de Rubito Galiano Jorge e Maria Raku. Agimiro mora no Panambizinho. Ele falou comigo sobre Chiquito Pa’i, em Juti, durante a Feira de Sementes Crioulas em julho de 2016.

Valdivino lembra que Chiquito foi quem lhe colocou o enfeite labial, Chiquito chemohembekua va’ekue, quando tinha oito anos. Outros meninos de sua turma de iniciantes eram Durvalino Rubito e Francisco Augusto, ambos de Lagoa Rica; Ideval Concianza, José Garcia e Mário Concianza de Panambizinho.

Chiquito foi ajudado pelo seu genro, hañyve, Lauro Concianza e por Paulito Aquino, se cunhado, hovaja, líder espiritual então em ascensão. Quando Chiquito já estava muito velho, deixou seus bens espirituais para Paulito. Poderia ter deixado para Lauro, mas como este tinha ficado cego, deixou para seu cunhado.

A memória de Pa’i Chiquito se associa sobretudo à festa do Kunumi Pepy, que pode ser traduzido por ‘convite dos meninos’. Kunumi significa ‘menino’ e pepy quer dizer ‘convite’ ou ‘comemoração’, em várias línguas da família tupi-guarani. É a festa de iniciação dos meninos. Os interlocutores lembram que este era o mais importante evento de uma comunidade kaiowa. Pa’i Chiquito é seu mais eloquente cultivador.

A associação é tão forte que alguns de seus descendentes justificam a saída de Chiquito das proximidades do rio Dourados para o Panambizinho, por ser este lugar supostamente mais central para as comunidades kaiowa que procuravam o serviço do xamã para a iniciação dos meninos. As justificativas sobre o deslocamento de Chiquito e a fundação de Panambizinho mudam conforme o foco da conversa. Chiquito é celebrado como o grande líder que era capaz de mobilizar as famílias de várias comunidades a se reunirem numa longa e complexa cerimônia.

Embora a cerimônia não se celebre em Mato Grosso do Sul desde 1993, ela continua gerando e alimentando um forte discurso que coloca o Kunumi Pepy no centro do modo de ser dos homens Kaiowá. Evocado nos momentos chaves da trajetória do grupo, ele ocupa um lugar especial na cosmologia do povo. É o que nos mostra o trabalho de Ana Mello (2009), que registrou o testemunho de jovens Kaiowá de Panambizinho sobre o ritual e sobre o uso e o desuso do tembetá. Nesses relatos, fortalece-se a memória de Pa’i Chiquito e de seus sucessores. A memória da realização do Kunumi Pepy é no Panambizinho uma espécie de legitimação do direito que a comunidade tem de ocupar a terra. Vivendo já por várias gerações só do discurso desse ritual, uma kaiowá já idosa entende que o Kunumi Pepy era a escola do Kaiowá e que hoje, no lugar dele está a escola.

Mbo’y Rendy Ru’i, Teresinha Aquino, moradora do acampamento Itay Ka’aguyrusu, foi batizada por Pa’i Chiquito, seu avô, no Panambizinho. Ela lembra que Chiquito, além de Kunumi rechaha ‘celebrante da festa dos meninos’, era um Jakaira rechaha ‘celebrante da festa do milho’ e um mitã réry rechaha ‘celebrante do ritual de nominação das crianças’. Ela recorda que Chiquito contava histórias para as crianças, mas histórias sérias; ele era sempre sério, não era brincalhão. Ele contava histórias para ensinar. Foi do seu avô que Teresinha ouviu que quem ama crianças não bate nelas imborayhúva’e noinnupãi mitãme; quem bate em crianças o faz porque está cheio de ira, de raiva, ipochývante oinupã mitãme; o corpo desta pessoa é o corpo de uma onça, jaguaretê, nas suas mãos tem sangue, ipóre oî tuguy. Quem bate nas crianças as torna tristes e com medo, a alma de algumas se sentem expulsas e a criança morre de uma espécie de banzo oinupãva mitã omboporiahu ichupe ha nombovy’ái a omondo, omanõma katu. Nestes casos, as pessoas que maltratam as crianças são comparadas ao jaguaretê, jaguaretengo ava nga’unga’u voi. Chiquito contava estas histórias às crianças.

Mas Chiquito não foi só uma pessoa ilustrada nos saberes filosóficos-religiosos kaiowá; ele também era um conservador das práticas culturais do âmbito da economia e da cultura material. Schaden (1974, p. 73), por exemplo, observou que Chiquito organizava os puxirões por ocasião das festas de chícha, onde se firmava uma espécie de compromisso de cooperação entre o dono da festa e as pessoas que compareceram à festa. Sua casa era construída nos padrões mais tradicionais da época. Ele saiu fortalecido da longa luta com os não indígenas e manteve certa unidade entre os Kaiowá por cultivar a ideia de eles serem os “verdadeiros”. Até hoje se ouve entre e sobre os moradores do lugar que eles são os mais ciosos e conservadores em manter seus padrões culturais. Para Schaden, a comunidade “conservava em larga escala os velhos padrões culturais da tribo”; conservadorismo que já estava em decadência.

Pa’i Chiquito morreu no entardecer de um dia que ninguém pode precisar na comunidade. Foi no início dos anos 1980. Ele estava na sua rede, cansado, quando recebeu a mensagem do “Nosso Irmão”. Já era hora de partir definitivamente pelos caminhos de luz. Então reuniu seus familiares que começaram a cantar. Chiquito falou mais duas vezes, entregou seus apetrechos rituais a seu genro Lauro Concianza e recomendou a todos que continuem vivendo como verdadeiros Kaiowá. Despediu-se ao som das maracas e dos cantos dos presentes.

A grande queixa das filhas de Chiquito é a falta de interesse dos descentes mais novos, de aprender a tradição oral e manter os rituais de seus avós. Os jovens, por sua vez, muitas vezes têm suas visões ofuscadas pela luz do grande líder e pelas novas luzes que lhes atingem. E assim enfrentam o desafio de conjugar essa rica tradição da palavra com novas linguagens e visões.

Obras consultadas

CHAMORRO, Graciela. Kurusu ñe’ẽngatu: palabras que la historia no po­dría olvidar. Asunción, CEADUC; São Leopoldo, IEPG/COMIN, 1995. 250p. (Biblioteca Paraguaya de Antropología, 25).

_______. História Kaiowá: Das origens aos desafios contem­porâneos. São Bernanrdo do Campo, Nhanduti. 2015.

_______. Etnografia do espaço: o “sertão” no relato de dois sertanistas do século XIX. In: GOETTERT, Jones Dari; MARSCHNER, Walter Roberto (Org.). Transfazer o espaço: ensaios de como a literatura vira espaço e vice-versa. Dourados: UFGD, 2011. p. 107-128. Disponível em: www.ufgd.edu.br/editora/…/transfazer-o-espaco-ensaio . Acesso em: 28 dez. 2013.

_______. Panambizinho: Lugar de cantos, danças, rezas e rituais kaiowá. São Leopoldo, Kariwa, 2017.

COUTINHO Jr. Valter Alves. Relatório sobre a Identificação e delimitação da TI Panambizinho. 177 p. – Portaria 1.154/93. Funai/DAF, Brasília março 1995.

MACIEL, Nely Aparecida. História da Comunidade Kaiowá da Terra Indí­gena Panambizinho (1920-2005). Dourados : Ed. UFGD, 2012. 210p.

MELLO, Ana (2009). Ritual, Identidade e Metamorfose: Representações do Kunumi Pepy entre os índios kaiowá da aldeia Panambizinho. Dissertação de Mestrado em História. Dourados, UFGD.

SCHADEN, Egon. Desenhos de índios Kayová-Guarani. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 11, n. 1 e 2, p. 79-82, jun./dez. 1963.

______. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974.

SILVA, Joana A. Fernandes. Os Kaiowá e a ideologia dos projetos econômicos. 1982. 141 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – IFCH, UNICAMP, Campinas, 1982.

VIETTA, Katya. Relatório final da Perícia realizada na Área Indígena de Panambizinho, Distrito de Panambi, Município de Dourados. 134 p. Processo 96158-8. Perícia realizada a pedido do Sr. Juiz Federal da I Vara de Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul, 1998.

______. Histórias sobre terras e xamãs kaiowa: territorialidade e organização social na perspectiva dos Kaiowa de Panambizinho (Dourados, MS). 2007. 513 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS-FFLCH, USP, São Paulo, 2007.

Notas

[1] Ka’aguyrusu significa ‘Mato Grosso’. Na geografia dos Kaiowá procedentes dessa região, o termo refere-se à área compreendida entre o Rio Brilhante, córrego Panambi, córrego e córrego Laranja Doce (VIETTA, 2007, p. 95). Nos documentos oficiais não consta o nome Ka’aguyrusu.

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