biografia

Caboclo Marcelino

Autor(es): Marcelo da Silva Lins
Biografado: Caboclo Marcelino
Nascimento: 1896
Povo indígena: Tupinambá
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia, Etnias, Tupinambá
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Os comunistas vão à aldeia: A trajetória do Caboclo Marcellino e a atuação do PCB no meio Indígena

A expansão da lavoura cacaueira no sul da Bahia foi marcada por intenso processo de disputa e expropriação de terras que também ocorreu com relação aos indígenas da região. Os índios foram vítimas constantes dos chamados “caxixes”, método de expropriação dos ocupantes das terras, de forma violenta, tendo por base o fato dos posseiros, e nesse caso os índios, não possuírem documentação da terra. Daí os fazendeiros usarem o argumento do direito à propriedade “com base na lei” para justificar o uso da violência. Esse processo se acentuou na última década do século XIX e início do século XX na corrida pelas terras férteis do sul da Bahia que visava expandir as plantações de cacau.

Entre os índios de Olivença a principal figura que aparece no processo de resistência é a liderança Marcellino Alves, conhecido como “Caboclo Marcellino”. Nascido em 1896, filho de Arcanjo Alves, e irmão de Eleutério José Alves.  Segundo o próprio Marcellino, ele e seus companheiros de Olivença eram descendentes da tribo Tupà.[2]

Acusado em 1919 de assassinar Jacintho Gomes a facão, foi preso em 1921 sendo o motivo de tal assassinato não esclarecido. Em 1929 assassinou sua companheira Maria Conceição, em Porto da Lancha, localidade de Olivença. Desta vez o crime chamou mais a atenção devido aos requintes de crueldade, pois matou-a “abrindo-lhe o ventre a facão, extraindo uma criança e esquartejando-a depois”. Nessa ocasião também feriu quatro crianças, filhos dela, que era sua amante. A justificativa apresentada, que o teria levado a matar sua companheira foi a descoberta de adultério. Marcellino também foi acusado de ter “deflorado várias moças como é publico e notório em Olivença”, segundo palavras do escrivão da sub-delegacia de polícia de Olivença na época, Olegário de Andrade e Silva.[3]

Muitos desses crimes atribuídos a Marcellino nunca foram investigados ou comprovados. Certamente alguns desses sequer aconteceram, e lhe eram atribuídos com a finalidade de imputar a sua pessoa uma imagem negativa. Mito ou realidade, o fato foi que a imprensa regional o tratava com expressões que serviam para aumentar o temor em torno da figura de Marcellino: “famigerado criminoso”, “Lampião Mirim”, ou ainda “o homem que se fez bugre”. Aqui percebemos que a intenção era em primeiro lugar tratá-lo como alguém que não era índio e por isso o “se fez”; sendo assim, ficava mais fácil descaracterizá-lo enquanto liderança indígena, uma vez que predominava na sociedade a ideia de uma cultura indígena estática, que compreendia que estes, para serem considerados como tais deveriam comportar-se como no momento da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. Era com base nessas ideias que seus opositores argumentavam ainda que ele teria:

Marcellino não é caboclo de Olivença e sim mestiço com forte dose de sangue negro (…) nascido em Messol, município de Una de onde teria vindo para a cidade de Ilhéus onde sempre viveu como jornaleiro (…) sabe ler e é eleitor, mas como sempre foi malandro (…) entendeu de tornar-se bugre para assim melhor explorar a ingenuidade dos pacatos e genuínos descendentes de caboclos que vivem na zona de Olivença. Nessa exploração teve (…) oportunidade de atentar contra vidas e propriedades (…).[4]

Observemos que os argumentos utilizados para fortalecer a ideia que Marcellino era um “malandro” e não um indígena, baseavam-se no fato dele saber ler, ser eleitor, e já haver trabalhado. Esse tipo de opinião ao mesmo tempo em que buscava tirar de Marcellino a legitimidade de liderança, tentava fazer o mesmo com a sua identidade indígena. Nesse caso, o depoimento citado foi prestado por José Lemos Netto, fazendeiro, interessado em expulsar as famílias indígenas, entre elas a de Marcellino, das terras de Barro Branco. Tal depoimento foi reproduzido largamente pela imprensa regional como contribuindo na construção do imaginário em torno do Caboclo.

Marcellino foi levado a júri em outubro de 1931. Seu julgamento chamou a atenção de toda região e, ao final, foi absolvido, o que provocou indignação de fazendeiros e de setores da imprensa que assim noticiaram o fato:

A tarde teve lugar o julgamento mais sensacional até agora verificado nesta sessão do júri, o do réu Marcellino José Alves, conhecido pelo nome de Caboclo Marcellino. Os leitores devem estar lembrados das copiosas reportagens feitas por este jornal em torno das façanhas do ‘homem que se fez bugre’ lá nas matas de Olivença. Publicamos então informes detalhados acerca do crime que arrastou à barra do Tribunal da Comarca o famigerado caboclo, cuja fama espalhava o terror por toda Olivença e cercanias. (…)

Lamentamos agora sinceramente que a decisão do júri fosse mais uma vez favorável ao ‘Caboclo Marcellino’, que foi absolvido pelo voto de Minerva, após a reunião secreta do Conselho de Sentença.

Restituindo a sociedade um elemento que dela merecia ser segregado, a bem da tranqüilidade pública e para a satisfação completa da lei, o júri revelou uma benevolência que se coaduna mais para as doutrinas da misericórdia do que com os postulados eternos do direito e da justiça.[5]

Acompanhando a matéria sobre o julgamento do Caboclo Marcelino o jornal colocou a fotografia abaixo e a legenda: “Fotografia tirada no dia de sua prisão. Ontem, na sessão do júri, o acusado compareceu à barra do tribunal da mesma maneira, demonstrando ser ainda o homem que se fez bugre”.[6]

Nas primeiras décadas do século XX os fazendeiros ricos passaram a fazer pressões junto aos poderes públicos no sentido de transformar o litoral de Olivença em área para veraneio, o que veio a se tornar mais um fator de expulsão dos indígenas daquela região. Foi com vistas a esse objetivo que em 1929 foi iniciada a construção da ponte sobre o Rio Cururupe que ligaria Ilhéus a Olivença. A acusação do assassinato de Maria Nascimento ocorreu em 1929, mesmo ano que, liderados por Marcellino, os caboclos reagiram contra a construção da ponte que daria acesso a Olivença, pois era sabido que a construção da ponte traria dificuldades ainda maiores para os indígenas uma vez que facilitaria o acesso à suas terras. A repressão foi violenta e os índios barbaramente derrotados.

Os Índios na Revolução Brasileira

São raras as formulações ou ainda relatos que demonstrem o envolvimento dos comunistas do Brasil em atividades no meio indígena na década de 1930. O Bureau Sul Americano da IC apontou as debilidades do Partido, em documento já discutido anteriormente, onde apontou a falta de atenção dos comunistas brasileiros com relação aos índios e negros.

Nas regiões onde a maioria da população é negra, estes não participam quase da vida do Partido. Não existe, por outra parte, nenhum índio no Partido. (…)

Não se elaboram métodos especiais de trabalho entre essas camadas oprimidas, nem tão pouco as reivindicações específicas dos trabalhadores negros e índios.

(…)

não compreendem nem reconhecem a existência do problema racial no Brasil. A igualdade formal das raças, eles interpretam como se fosse efetiva, real.

(…)

O Partido não compreende que o planejamento de nossas tarefas entre as massas negras e índias, é dos aspectos do problema da conquista da maioria da população trabalhadora do Brasil. Sem arrastar as massas negras e índias à luta, nenhuma revolução de massas é possível no Brasil, por isso o BSA propõe a formação de comissões especiais de trabalho entre os negros e índios, que elaborem suas reivindicações especiais econômicas e políticas, que os empurrem a participar e integrar as organizações revolucionárias do proletariado (…)[7]

Seguindo essas orientações do BSA, um dos raros momentos em que o PCB se manifestou com relação a tais questões foi durante a realização da sua 1ª Conferência Nacional, em junho de 1934, quando um dos temas colocados em discussão foi o problema dos “negros e índios escravizados!” Nessa ocasião o PCB convocou a todos para a luta, fez referência à dupla exploração, “como classe e como nacionalidades escravizadas” e ainda que tal exploração se fundamentava no conceito de “raças inferiores”:

Todos os direitos políticos, econômicos, culturais e sociais nos são negados e usurpados. Vossas terras são roubadas. Vos pagam menores salários. Vos impõe toda sorte de humilhações. Vos negam o direito de dirigir vós mesmos vossos destinos. Aos nossos irmãos índios, os feudal-burgueses e os imperialistas não dão nem o direito da maioridade. São escravizados pelo serviço de ‘proteção’ aos índios e pelas missões religiosas. Suas companheiras e filhas são roubadas para serem prostituídas, como acontece na Fordlândia e outros lugares.[8]

A partir da constatação da exploração sofrida pelos índios e negros, convocou-os para a luta pela igualdade de direitos econômicos, políticos e sociais, pela devolução das terras indígenas e, de novo, assim como no caso do nordeste, acreditava serem estes “nacionalidades escravizadas” e, por isso, deveriam se organizar para lutar pela constituição de governos próprios, separados dos governos federal e estaduais: “caminho pelo qual vós podereis desenvolver como nacionalidades com território, governo, costumes, religião, língua e cultura próprios”.[9]

A resolução da conferência não foi fato isolado; na verdade, demonstra as posições defendidas naquele momento pela maioria da direção partidária, uma vez que no mês seguinte à realização da Conferência, o Comitê Central, em um novo documento, voltou a tratar do assunto, onde novamente defendeu o “direito de separação, constituindo seus próprios governos” e acrescentou a luta pela “(…) punição dos responsáveis pelos massacres dos índios. Fornecimento gratuito pelo governo de sementes, roupas, instrumentos de caça e de trabalho, maquinas agrícolas etc”.[10] Seguindo a mesma linha, um artigo publicado no jornal A Classe Operária em maio de 1935, “A vida martirizada dos índios no Brasil e o caminho de sua libertação”,[11] comparou a situação das “nacionalidades índias” do Brasil com o problema das diversas nacionalidades da Rússia czarista de antes de 1917, pois em ambas situações eram consideradas “raças inferiores” e salientou que no Brasil os índios não tinham direito a cidadania e, por isso, assim como na Rússia, só seriam libertadas através da “Revolução Agrária e Anti Imperialista.”

Na Rússia estava a origem dos argumentos utilizados com relação aos negros e indígenas brasileiros, e não passavam de uma repetição de tais teses, sem vinculação alguma a realidade brasileira ou a algum trabalho específico de organização realizado pelo Partido junto a tais segmentos.

A partir de 1934 o PCB intensificou os chamamentos para a revolução imediata. Acreditavam que havia uma marcha acelerada do Brasil para uma crise revolucionária e nesse sentido os cangaceiros eram vistos como mais um movimento espontâneo que demonstrava o nível de insatisfação das massas camponesas no nordeste.

Quando estava em Moscou, em outubro de 1934, com o núcleo central da direção nacional do PCB, Miranda, Secretário Geral, passou um informe, que ao referir-se ao movimento camponês falou em início da luta armada através movimento guerrilheiro:

Os guerrilheiros cangaceiros fazem chamamentos à luta, unificam os camponeses pobres e lutam pelo pão e pela vida. O governo já não está em condições de vencer esse movimento. Já não são pequenas insurreições camponesas, contra as quais bastava dirigir uma centena de soldados. Numa só província da Bahia os guerrilheiros constituem destacamentos de umas 1500 pessoas armadas de metralhadoras, providas de caminhões, etc. (…) Lampião e seus partidários são guerrilheiros cujo nome e façanha correm de boca em boca, como atos arrojados de defensores da liberdade, defensores da vida do camponês (…) que busca o Partido cuja autoridade cresce também no campo.[12]

Sem duvidas que o informe relacionado aos cangaceiros estava longe da realidade. Mas para os objetivos desse artigo vale identificar que foi nesse período as primeiras formulações do PCB sobre o cangaço, sobre a questão indígena e negra, e o desencadeamento das guerrilhas no campo e acreditamos que tenha sido em função dessa compreensão, que os comunistas de Ilhéus procuraram o Caboclo Marcellino, uma vez que este era visto pelos que lhe defendiam como um sujeito que enfrentava os fazendeiros frente a expropriação das terras indígenas, e pelos seus adversários como um “bandido”, “lampeão mirim”.

 

O PCB em busca do Caboclo Marcellino

O encarregado da tarefa de contatar o Caboclo foi Horácio Pessoa de Albuquerque, que se encontrou com Marcellino, conversou bastante com ele e o convenceu a lhe acompanhar para ser apresentado ao dirigente municipal, o professor Nelson Schaun. Nessa ocasião, conversaram bastante sobre a situação que estava passando o Caboclo e o conjunto dos indígenas de Olivença principalmente “no tocante a terem sido espoliados de suas terras (…) dizendo Nelson Schaun que enquanto ele (…) e seus patrícios confiassem na justiça de Ilhéus nada obteriam, por isso que lhe propunha que entrassem no partido (…), pois só assim (…) teriam advogados e outros auxílios sem despesa alguma(…)”.[13]

O Caboclo afirmou que iria consultar seus companheiros, e assim fez, numa reunião com outros indígenas onde expôs a conversa com Nelson Schaun, “e como era em beneficio de suas terras, todos combinaram entrar nessa sociedade, isto é, no partido comunista”. A questão central para os indígenas era portanto, a necessidade de lutar para reaver suas terras e como o PCB apontava para essa perspectiva e prometeu auxiliar os indígenas nesse sentido, estes aceitaram muito bem a propaganda comunista. Alguns dias depois, apareceu em Olivença um emissário enviado pelo partido, o indivíduo que se identificou como sendo Inocêncio. Na verdade esse era o pseudônimo usado por José Martins da Silva, um dos dirigentes do PCB na região.[14]

Com a chegada de Inocêncio entre os indígenas, a movimentação ganhou nova dinâmica. Realizou junto com Marcellino três grandes reuniões com os indígenas em Olivença. Uma dessas reuniões ocorreu em 18 de setembro na casa de Manoel Castro Gaspar, um senhor de 62 anos de idade e morador na Boíra, em Olivença. Note-se que Manoel Gaspar sabia ler e escrever e era uma liderança no meio indígena. Nessa reunião compareceram mais de vinte pessoas. Falaram sobre comunismo e pregaram a insurreição armada entre os caboclos.[15] Inocêncio defendia o comunismo afirmando “ser esse o único meio dos caboclos reaverem suas terras”.[16] O discurso entre os indígenas chamava a atenção para a necessidade de organização para com a insurreição, dividir as propriedades e “botar pra fora de Olivença os grandes de lá que lhes tinha tomado as suas terras e haveres (…) os quaes, sem ser por intermédio de engenheiro, iam por conta própria invadindo as terras dos caboclos, tomando-as e botando-os para fora, perseguindo-os e escurraçando-os”. Após a insurreição “(…) dividiria com os companheiros, voltando todos a ocuparem as suas terras e haveres (…)”.[17] Também ocorreram mais duas reuniões do mesmo teor, uma em 27 de outubro em Manguinhos na casa do próprio Marcellino e outra em Coqueiros na casa de Marcionilio Brás.

Uma nova reunião deveria ser realizada no início de novembro quando seriam definidos os últimos detalhes do plano, pois a data fixada para o início das ações foi nove de novembro. Para saber com quantos homens contavam foi “organizada uma relação, onde assinavam os que sabiam ler e eles punham os nomes dos analfabetos. Essa relação chegou a ter mais de cem homens”.[18] Marcellino, ao referir-se a essa lista, afirmou que foi a sua única ação relacionada ao PCB: “então passou a trabalhar, no que limitou-se apenas em tomar numas folhas de papel os nomes das pessoas que estavam solidárias com o movimento, conseguindo umas duzentas assinaturas”.[19]

Nesse período, o Caboclo Marcellino foi algumas vezes a casa de Nelson Schaun em Ilhéus, ouvi-lo sobre as articulações comunistas e, seguindo um pouco do entusiasmo e crença na revolução imediata que predominava no PCB, disse-lhe Nelson Schaun que:

precisava arregimentar o pessoal e animava-o bastante, acrescentando que em breve romperia um movimento no Rio, no Norte e na Europa, e quando todos brigassem o respondente e seus companheiros voltariam a ocupar seus terrenos (…) que reunisse o maior número de homens armados possível, que seria para quando arrebentasse a revolução em todo o país”, Marcellino então “ponderou que o seu pessoal só dispunha de espingardas de caça pelo qual precisava de armamento e munição, tendo Nelson replicado que com qualquer arma se brigava.[20]

Nessa mesma conversa, José Martins disse-lhe que antes do movimento “iria para o Rio fazer aquisição de armamentos e munição”.

A reunião onde se definiriam os últimos detalhes e se divulgaria a data da ação aconteceu no dia sete de novembro de 1935, também na casa de Gaspar onde foi avisado que no dia seguinte seria o assalto a Olivença. Justamente nessa última reunião antes do “assalto”, compareceu Manoel Victorio da Silva que após a reunião procurou o comerciante Hortêncio de Castro e o avisou para se retirar de Olivença porque entre os considerados “grandes de Olivença” que seriam assassinados no assalto,[21] estava o seu nome e o do seu irmão Ricardo de Castro Filho que foi imediatamente avisado. A polícia foi comunicada e enviou para Olivença forte contingente policial para reprimir a revolta dos Caboclos. Além dos homens da polícia, parte da população foi armada pela delegacia de polícia de Ilhéus.[22]

Foi então que Dionísio Gonçalves de Oliveira, que havia participado das reuniões em casa de Gaspar, foi com Francisco Mendes na casa do Caboclo Marcellino tentar lhe convencer a desistir dos planos, haja vista, ter sido descoberto e a “polícia já estava em atividade”.[23] Muitos caboclos foram presos nessa ocasião. Marcellino fugiu e, tempos depois, ao tratar do assunto, ele comentou: “chegou a reunir umas vinte e cinco pessoas em armas, mas depois de alguns dias mandou-as embora (…) quando a policia descobriu o plano, prendeu vários caboclos seus companheiros, tendo o respondente permanecido escondido nas proximidades de Olivença”.[24]

Em 11 de novembro foi aberto inquérito pela Polícia Militar do Estado para investigar as atividades subversivas do Caboclo Marcellino, ou seja, antes de eclodir o conjunto de sublevações – Recife, Natal e Rio de Janeiro – que ficaram conhecidas como “Intentona comunista”.

Após algum tempo escondido, Marcellino voltou para casa, no lugar denominado Barro Branco, também chamado de Manguinhos, nas proximidades de Cururupe, local onde já habitava há pelo menos trinta anos “em posse mansa e pacifica” onde “fez uma aberta” onde ele considerava serem terras do Estado, fazendo várias plantações de piaçava. Em março de 1936, seu vizinho José de Lemos Neto resolveu medir as terras ocupadas por cerca de dez famílias de caboclos entre os quais estava a de Marcellino (mãe, irmão, irmã, cunhado, e oito meninos), e acabou tomando-lhes suas terras.

Não foram os primeiros conflitos envolvendo José de Lemos Neto; no final de abril de 1935 houve sério conflito nas terras ocupadas por ele em Cururupe, nas imediações de Olivença. Na tentativa de expulsar alguns homens que estavam nas matas retirando a piaçava – planta nativa da região muito utilizada pelos indígenas para fabricação de artefatos e para cobertura das suas precárias moradias – três homens acabaram feridos, um deles atingido a bala por José Lemos que também sofreu ferimentos leves a golpe de facão desferido por um dos homens que resistiram a sua ação.[25]

Com relação à expulsão dos indígenas e do Caboclo Marcellino, este procurou os juízes Dr. Perillo e Dr. Conrado e o promotor Dr. Sabino Moreira para tentar resolver tal situação, mas não conhecia os mecanismos da lei e não conseguiu levar adiante nenhum processo legal para tentar reaver suas terras, até porque, continuava foragido da polícia. Logo após, José Lemos tentou indenizá-lo com a quantia de trezentos mil réis e, como ele não aceitou, houve o despejo dos indígenas que moravam na localidade, levado a efeito pelo subdelegado de Olivença, Augusto Ramos, à frente da força policial local. O Caboclo, então, no que ele próprio considerou “um ato de desespero”, à frente de um grupo de quatro homens também expulsos da terra – Fulgêncio Almeida, que tinha apenas quinze anos por isso foi apelidado de “Caboclinho”, Marcionillio Brás, Pedro Pinto e Marcos Leite, – no dia três de maio de 1936, ateou fogo na casa de José Lemos e logo depois fugiu e se escondeu na mata.[26]

Apenas um do grupo estava armado, Marcos Leite, que possuía uma pistola. Na fuga, ao passar pela localidade de Maroin, estavam escondidos em uma casa abandonada, quando foram atacados por dois jagunços, Julio Folha e Antônio Mendes,[27] que entraram na casa atirando. Houve troca de tiros e Antônio Mendes caiu morto. Esses acontecimentos foram em abril de 1936. Marcellino, “vendo-se a tôa” e sem alternativas, rumou para o Posto Indígena Paraguaçu, o qual já conhecia “desde o tempo que ali esteve o Capitão Vasconcelos”.[28] Foi à procura de Telésforo Martins Fontes, chefe do Posto, com o principal objetivo de “pedir auxilio perante os poderes públicos, para ele e seus companheiros, caboclos que são, descendentes de indígenas (…) que pelo menos os apresentasse a quem de direito, a quem ele (…) pudesse expor a sua situação (…) reclamar seus direitos”.[29]

Meses antes da descoberta das reuniões envolvendo militantes do PCB e os indígenas de Olivença, as forças da repressão já haviam efetuado algumas prisões, inquéritos já haviam sido abertos ara investigar atividades comunistas entre as cidades de Ilhéus, Itabuna e redondezas. Entre tais ações estava a descoberta de um atentado a bomba na sede da Ação Integralista em Ilhéus em agosto de 1935; comunistas atuando no meio sindical, especialmente entre os trabalhadores rurais; uma célula no Batalhão da Polícia Militar, com apenas dois membros, mas que a imprensa divulgou como sendo parte de um “plano de sublevação” do Batalhão, e que se relacionava com os poucos setores onde os comunistas tinham alguma inserção.

Após as sublevações ocorridas em Recife, Natal e Rio de Janeiro, geralmente denominadas pela imprensa como “Intentona Comunista”, os órgãos de repressão construíram uma narrativa a respeito dos acontecimentos onde a pequena inserção do Partido na sociedade Ilheense foi potencializada para se adequar a versão policial dos acontecimentos, pois segundo estes, o plano era de sublevação de todo o sul do Estado, e seguiam orientação de um “plano geral traçado pelo diretório central” e escolheram Ilhéus para centro das atividades no Estado da Bahia. Os comunistas pretendiam se apoderar do armamento para armar os operários, desarmar a força policial, sublevar a cidade, prender e assassinar autoridades e poderosos. “Simultaneamente os indígenas de Olivença, liderados por José Martins e pelo Caboclo Marcellino invadiriam o arraial de Olivença no intuito de deixar a cidade desguarnecida, para garantir a vitória do movimento”.[30]

O relato policial estabeleceu relações, na verdade inexistentes, entre as poucas ações do partido. A repressão então, se intensificou, vários militantes dos movimentos sociais e sindicais, que aparentemente não tinham ligações com o partido ou com a ANL, foram presos, chamados a depor. A imprensa assim relatou o que chamou de “infiltração comunista” na região.

 (…) Aqui entre nós não perderam tempo os adeptos da desordem. Foram criados núcleos. Ilhéus era um pequeno viveiro de comunistas. Tinha regalias os colaboradores de Lenine. A bomba de dinamite já era o argumento decisivo das suas resoluções.

Os emissários já estavam se internando pelas nossas fazendas e explorando a boa fé e a ignorância dos nossos trabalhadores rurais.

Os fazendeiros já sentiam de perto o bafo das ameaças.

As greves desenhavam-se. Minavam aos poucos os alicerces da nossa prosperidade.

A população criteriosa das nossas cidades, porém, não cria no perigo. Com o fracasso do golpe, a polícia vai desvendando aos poucos os planos tenebrosos dos conspiradores. A cadeia pública da cidade está cheia de implicados no movimento.

O Cap. Salomão Rhen, delegado especial, (…) vai aos poucos esclarecendo responsabilidades (…) depois do inquérito virá a publico ao baixar das mascaras quantos leões escondidos em peles de cordeiro e o perigo que atravessávamos (…).[31]

Alguns comunistas fugiram, vários outros foram presos, e José Martins da Silva que havia participado das reuniões em Olivença junto ao Caboclo Marcellino, se dirigiu ao Posto Indígena Paraguaçu, onde trabalhava, como Encarregado do Posto, Telesphoro Fontes, que tinha relações com a ANL.

O mesmo aconteceu cerca de um mês depois com Gildath Amorim, e em março, chegou ao Posto, um indivíduo, “de origem judaica, alto, branco, cabelos vermelhos, crespos, que se apresentou dando o nome de Clemente, que dizia pertencer a Aliança Libertadora e ao Partido Comunista e ter vindo da Bahia via Ilhéus”. Na verdade tratava-se de Samuel Genez que esteve envolvido no atentado ocorrido contra uma sede da Ação Integralista Brasileira da capital do Estado em novembro de 1935, após o início das sublevações de Natal e Recife.

Portanto eram três os comunistas que foram ao Posto Indígena Paraguaçu para buscar refúgio, e lá desenvolveram trabalho de organização junto aos camponeses, posseiros que moravam na Reserva nos limites com fazendeiros que há muito tempo já manifestavam interesse em pôr fim à reserva e invadir suas terras. A área onde foi criada a reserva indígena já apresentava tensões e conflitos muito antes da chegada dos comunistas.

Trajetória do Posto Indígena e os conflitos pelas terras

O Posto Indígena Paraguaçu foi criado em Itabuna, no sul do Estado da Bahia, em 1924, quando o chefe da Ajudância era Sildo Meireles.[32] As Ajudâncias eram unidades do SPI estabelecidas em determinada região fora da área de jurisdição de uma Inspetoria regional. Ou seja, elas existiam onde o SPI ainda não tinha uma ação instituída, consolidada. A área para o referido Posto foi reservada pelo governo do Estado da Bahia através de decreto em 09/03/1926 assinado pelo então governador Francisco Marques de Góes Calmon, onde determinava a suspensão das medições das terras devolutas, pois essas seriam destinadas a “postos e povoações indígenas”. Em 09/08/1926 foi aprovada a Lei estadual de nº. 1916 que autorizava a cessão de 50 léguas quadradas das terras do Estado à União com a “dupla finalidade de assegurar a preservação das essências florestais naturais e ao gozo dos índios tupinambás, patachós e outros ali habitantes”. Tais terras foram demarcadas pelo Capitão Vicente de Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcelos entre 1926 e 1930.[33]

Ainda em 1926 um grupo de fazendeiros de Itabuna, liderados pelo deputado Cordeiro de Miranda, enviou um memorial ao governo pedindo a redução das terras do Posto, usando o argumento que “sendo o número de índios mínimo (…) prejudicava a expansão agrícola de Itabuna (…)”. Tentando fortalecer seu argumento de que os índios não precisavam das terras, o referido deputado alardeava que: “os fazendeiros locais tem comprado aos índios algumas posses, mas isso (…) dentro da lei. Eu mesmo comprei algumas dessas posses”.[34]

Em 1929 houve o registro de contínua ocupação desordenada das terras da reserva indígena do sul da Bahia e isso foi relatado pelo encarregado do SPI na Bahia, Vicente de Paulo Teixeira Vasconcellos, que se referiu a “intrusos (…) a partir do alto curso e cabeceiras do Rio Água Preta”.  Na mesma ocasião, em 11 de setembro de 1929, o Juiz de Paz de Ferradas, distrito de Itabuna, Graciliano Ricardo Lírio comunicou, através de carta ao SPI, que “os proprietários situados no Rio Água Preta do Colônia, a pretexto de ‘restabelecer a tranquilidade’, se articulavam com os vereadores e Prefeito, de modo a defender seus direitos de propriedade”. Tal campanha chegou a lançar panfleto na cidade intitulado: “Água Preta do Colônia não pode ser aldeia”.[35] Na mesma ocasião, enquanto o Ten. Cel. Vasconcellos procedia as medições às margens do Rio Água Preta, o mesmo “Juiz de Paz”, Graciliano Lírio organizou um grupo de homens armados para tentar assassiná-lo, iniciativa que não deu certo.[36]

Após a mudança de governo em 1930 o Capitão Vasconcellos foi substituído por Sildo Meireles, irmão do Capitão Silo Meireles, de Recife, este da direção nacional do PCB e muito ligado a Luiz Carlos Prestes. Em 1934 Sildo Meireles foi removido sendo substituído por Telesphoro Martins Fontes, empregado do Posto desde a sua fundação e “que se destacou no serviço pela maneira com que sabia atrair a simpatia e a confiança dos índios”.[37] Na verdade, a existência do Posto e a postura de seus encarregados constituíram-se em empecilho para as ambições dos invasores das terras.

Os fazendeiros e negociantes voltaram a se articular e, em 1936, encaminharam um abaixo-assinado ao governador pedindo a extinção do “serviço de catequese dos indígenas no Estado da Bahia” com o mesmo argumento: “por ser o número de nativos reduzidíssimos, num total de cem flechas, numa área de matas uberrimas de cerca de duzentos mil eqüitares”. [38] Essa nova investida contava ainda com a liderança do Sr. José Krushewisky e os Deputados Estaduais Cordeiro de Miranda e Manoel Novaes.[39]

Em maio de 1936 chegou à sua fazenda, vizinha do Posto Indígena, o Deputado pelo PSD, Antonio Cordeiro de Miranda, acompanhado do Delegado Cap. Salomão Rhen, Nuno Tavares, Abdon Motta, auxiliar da Delegacia de Terras de Ilhéus, Dr Augusto Santos Souza, alto funcionário da Secretária de Agricultura que agia sob ordens do Gabinete do Governador do Estado, Capitão Juracy Magalhães. Augusto Souza procurou Telesphoro Fontes para uma conversa e disse-lhe que o governo pretendia diminuir a área do Posto e que iria separar uma parte das terras para si. Sobre a tentativa de diminuir a área da reserva, os Deputados Manuel Novaes e Antônio Cordeiro de Miranda, e ainda o Secretário de Estado Gileno Amado estavam fazendo várias incursões junto ao governo do Estado e também junto ao Ministério da Guerra. [40]

Esse episódio narrado por Telesphoro Fontes, e o envolvimento dessas pessoas, todas ocupantes de cargos públicos e posições políticas privilegiadas, constituem forte indício de que o desenrolar dos acontecimentos no Posto Indígena, não passou de uma grande trama organizada pelos fazendeiros locais, seus representantes na Assembleia Legislativa e membros do governo estadual, com a participação de ocupantes de cargos estratégicos, como o Delegado de Itabuna e o auxiliar da Delegacia de Terras.

Dias depois, procurando proteger as terras da reserva indígena de novas invasões e impedir as medições que estavam sendo feitas, o encarregado do Posto Indígena Paraguaçu, Telésforo, procurou o Delegado Especial de Ordem Política e Social do sul do Estado, o Capitão Salomão Rhen, que não enviou homens para a reserva, mas forneceu armas, sendo vinte rifles e munição.[41]

Em julho de 1936, nas proximidades do Rio Pardo, foi encontrado um dos engenheiros que estavam medindo as terras. Telésforo Fontes com as armas cedidas pelo Delegado Salomão armou o Caboclo Marcellino e os quatro índios que o acompanhavam para que esses auxiliassem na investida contra os engenheiros invasores,[42] “cercou e prendeu o engenheiro que tinha na sua companhia vinte homens (…) tomando-lhe o instrumento, cinco repetições e um fuzil” armas que pertenciam a Delegacia de Polícia de Vitória da Conquista; É interessante observar que foi a partir desse fato que se desenrolou todo o conflito no Posto Paraguaçu.

Outra demonstração do envolvimento das autoridades estaduais na trama para se apoderar das terras da reserva indígena, foi que, o Secretário interino de Segurança Pública do Estado, Hanequin Dantas, afirmou em entrevista ao jornal Estado da Bahia, que a medição era oficial, no intuito de estabelecer as linhas divisórias dos municípios.[43] Entretanto, o engenheiro detido trazia uma credencial, que revelava tanto os mandantes da operação como seus reais objetivos.

Gabinete do Governador. Bahia 28 de abril de 1936.

Caro Fontes. Saudações.

O Portador do presente é o Dr. Aristóteles, auxiliar da Delegacia de Terras de Conquista, que vai escolher uma área para o meu particular e grande amigo Manuel Novaes, pedindo por este motivo ao prezado amigo o obsequio de auxiliá-lo, como se fosse a minha pessoa, afim que o mesmo execute os seus trabalhos sem nenhum embaraço. Sem outro assunto, disponha do amigo.

Augusto Santos Souza[44]

Preocupado com a invasão das terras, Telesphoro, entrou em contato com o Ministério da Guerra, a que era subordinado o SPI, e informou o fato. Em resposta, recebeu um oficio, mandando que garantisse as terras dos índios.[45]

Por volta do mês de agosto, compareceu ao Posto Indígena o Cabo da Policia Militar João Gomes, acompanhado de cinco praças, em diligência a mando do Delegado Especial Salomão Rhen, em busca do Caboclo Marcellino. Telesphoro o recebeu e informou que Marcellino não estava na área da reserva indígena. Ao que parece sabiam da permanência do Caboclo no Posto Indígena.

A Invasão das Terras indígenas

Segundo Marcellino, Telésforo pediu “que ficassem por ali trabalhando na roça”. Mas o Caboclo lhe explicou, “que não tinha ido para o Posto trabalhar em roça, queria era que ele Fontes, como encarregado pelo governo de proteger os índios, o apresentasse as autoridades competentes, para que pudesse perante estas reclamar os seus direitos”.[46]

Ficaram escondidos numa posse no Ribeirão da Fartura, uma légua mais ou menos do Engenho do Posto Indígena, até o mês de setembro de 1936, quando perceberam que Telésforo não os ajudaria, pois estava muito envolvido com os problemas do próprio Posto, resolveram voltar para Olivença sem comunicar-lhe tal decisão. Deliberou-se entre os membros do grupo que levariam as armas para vender e com o dinheiro comprariam comida e roupas.

Aconteceu que na viagem de volta, de passagem pela Serra do Padeiro, na divisa entre os distritos de Macuco e Olivença, foram perseguidos pela polícia, houve troca de tiros e o Tenente Francisco Moitinho Dourado saiu ferido, fato que teve grande repercussão. Na confusão, o grupo acabou se dividindo, indo embora Marcionilio Brás e Fulgêncio Almeida.

Com a divisão do grupo, Fulgêncio Almeida e Marcionillio Brás apresentaram-se a Subdelegacia de Olivença, em meados de outubro, sendo levados presos para Itabuna, onde prestaram depoimento. Informaram, entre outras coisas, que as armas do grupo foram fornecidas por Telésforo, que permaneceram por seis meses no posto e constataram que existiam poucos índios morando nas suas instalações, mas que o “posto tem em suas terras uns trezentos posseiros”. Segundo Marcionilio Brás “(…) a idéia dominante no posto é o comunismo, como assim disse Telésforo Fontes, mandando que eles fossem trabalhar porque a terra era deles (…). Telésforo incute no espírito dos posseiros as idéias do comunismo, cujas vantagens propala dizendo sempre que o comunismo favorece a pobreza, com o que todos os posseiros estão de acordo e convencidos disso (…) “ Fontes diz que quando o comunismo ganhar ele dará muitas terras para se trabalhar”.[47]

Já Fulgêncio, afirmou que “(…) no posto se faz propaganda do comunismo, dizendo que este é muito bom, enquanto o integralismo não presta” e que além de Telésforo estavam à frente do Posto e falavam em comunismo “Antônio, Clemente e Edmundo (…) os três usam fardamentos, mas não sabe os seus postos”. Fulgencio ainda denunciou que entre os três, o Edmundo era na verdade, Inocêncio que no final de 1935 fez reuniões e organizou os caboclos de Olivença para um levante. E apresentou um motivo diferente daquele apresentado por Marcellino para explicar a saída do líder indígena do Posto. Segundo Fulgêncio, Marcellino, ao sair do posto: “trazia no pescoço um lenço vermelho, dizia que era comunista e que preferia morrer a pender para o lado do integralismo, acrescentando que ia ajuntar mais gente para brigar com a polícia”.[48] Essas afirmações de Fulgêncio, aparentemente exageradas, serviram de munição à polícia que chegou a divulgar na imprensa a informação que os três seriam oficiais do exército fugidos do Rio de Janeiro e de Recife por participar da “Intentona Comunista”. Por isso que cogitou-se inclusive, que o Antonio, que ficou conhecido como “Bigode Branco”, seria o major Costa Leite que estava foragido após os acontecimentos de novembro de 1935.

Foi a partir da prisão dos dois primeiros membros do grupo que acompanhava o Caboclo Marcellino, em setembro, e utilizando-se do fato de estarem com algumas armas fornecidas pelo Delegado Capitão Salomão Rhen para a defesa das terras do Posto, que o referido Delegado se comunicou com a Secretaria de Segurança Pública do Estado, e utilizou-se das informações “concedidas” por Marcionillio Brás e principalmente por Fulgêncio Almeida para argumentar a necessidade de ocupação do Posto para recuperar as armas que estariam sendo utilizadas pelos “comunistas para fins subversivos”.

Marcando o início das operações militares na área indígena, foi enviado da capital do Estado o Tenente Ephigênio Mattos e Silva, para auxiliar à Delegacia Especial e a frente de vinte praças, foi ‘in-loco’ verificar o que de fato havia no posto, e com ordem de apreender o armamento, qualquer documento referente ao comunismo, prender Telésforo e os oficiais desertores que segundo se afirma, lá se encontram refugiados após os acontecimentos de novembro”.[49]

Questão um tanto suspeita é que as armas foram fornecidas pela própria polícia militar. Uma hipótese possível é que o fornecimento das armas pelo Capitão Rhen foi, na verdade, uma armadilha para Telésforo, pois o principal argumento para a missão do tenente Ephigênio foi a necessidade de buscar tais armas, que segundo ele, estavam sendo usadas para fins subversivos.  Cabe registrar que o Capitão Rhen era genro do Sr. José Krushewisky, um dos líderes do movimento dos fazendeiros que solicitavam do governador nova delimitação nas áreas da reserva.

O Tenente Ephigenio chegou ao Posto em 16 de outubro de 1936 com o Cabo João Gomes e mais dezoito Praças. Mas como Telesphoro foi avisado da chegada da tropa, preparou-se previamente, convocou os posseiros a se armarem para resistir a ação da força policial e esta acabou cercada e rendida, sendo obrigada a entregar as armas. Segundo Telesphoro, o que determinou a sua atitude foi a forma como Ephigenio chegou ao Posto, com uma formação de combate:

com um fuzil- metralhadora ao centro das duas alas de oito homens cada uma, todos em posição de tiro; o modo como entraram (…) ao penetrarem a ala aberta, entraram a galopear, desapeando rapidamente e tomando a posição indicada, em atitude de ataque , pondo os índios em confusão. Podíamos advinhar a intenção dessa gente? (…) em vez de os receber a bala procurei entendimento (…) recebi intimação de entregar o Posto, me deixar conduzir até a capital, bem como entregar as armas que me fornecera a Delegacia Especial de Itabuna. Exigindo um documento que comprovasse a autorização para isso, provinda do Estado maior do Exército, a quem está subordinado atualmente o Serviço de Proteção aos Índios.[50]

Telésphoro afirmara isso porque o único documento apresentado pelo Tenente Ephigênio foi assinado pelo Capitão Salomão Rhen, Delegado Especial do Sul do Estado, o que considerou uma “quebra de harmonia” entre o governo Federal e do Estado, que poderia levar a uma crise política e suspeitou que a ação estivesse sendo executada sem o conhecimento do governador do Estado e que o Delegado poderia estar “participando do jogo que fazem no momento os srs. interessados na partilha entre si das terras dos índios, e dos posseiros pobres existentes na mesma(…)”.[51] Tal suspeita se motivaria inclusive, porque, o referido Delegado, em nenhum momento anterior, havia solicitado a devolução das armas.

O tenente, ao regressar, informou a seus superiores ter visto um número incalculável de pessoas armadas e cavando trincheiras, e que “a Colônia fora transformada em um núcleo comunista (…) entre os quais três oficiais do exército fugidos do Rio depois do fracasso da revolução extremista (…)”.[52] Tais informações repetiam o depoimento de Fulgêncio Almeida, e o Tenente as divulgava mesmo sem ter nenhum tipo de confirmação de tais dados. Faziam assim, parte da propaganda anticomunista necessária para referendar a ação policial que já estava sendo planejada. Nas palavras do próprio Liberato de Carvalho:

O desagravo ao principio de autoridade desrespeitado e a repressão ao insólito gesto não poderia tardar.

E o governo, consciente da responsabilidade de seus atos, ordena a intervenção militar, entregando-me o comando das F.O.[53]

Após todos os preparativos, o escolhido para comandar as chamadas Forças de Operação (FO) foi o próprio Comandante da polícia militar do Estado o Coronel Liberato de Carvalho que:

seguiu com uma companhia de guerra de 200 homens que se juntou às forças existentes em Ilhéus, Itabuna, (…) Conquista sob o comando do Capitão João Antônio, de Belmonte e Canavieiras que subiram o Rio Pardo e de Guarany, num efetivo de 600 homens ao todo. (…) Como representante do Comandante da Região Militar do Exército, seguiu o Tenente Plácido, que vem acompanhando todas as atividades.[54]

Partiu de Salvador um contingente de 183 homens, no dia 19 de outubro, a bordo do Vapor da Companhia Baiana “Ilhéus,”[55] para, ao chegar em Itabuna, se juntar ao contingente da Policia Militar da região que segundo a citação anterior, do próprio Secretário de Segurança Pública, formariam um total de seiscentos homens. Como tal empreendimento dizia respeito a uma manifestação antiga dos fazendeiros que queriam as terras da Reserva, eles adicionaram ao contingente da força pública um batalhão de jagunços, advindos dos vários municípios vizinhos – Ilhéus, Itabuna, Una, Canavieiras, Conquista – que no primeiro momento totalizou 600 homens.[56] Ou seja, a invasão do Posto contaria com um total de 1200 homens armados, entre jagunços e policiais.

Pode parecer absurdo toda essa mobilização, mas para justificar tal esforço, a força pública divulgava aos quatro cantos que no Posto existia um perigo eminente de uma sublevação que pretendia atingir todo o sul do Estado, e que além da: “existência aproximada de 400 homens em armas, se achavam homiziados vários criminosos, dentre os quais o célebre ‘Caboclo Marcellino’, ainda constando ali estarem ocultos alguns oficiais desertores do Exército (…)”.[57]

Ao saber da chegada das tropas da Polícia Militar a Ilhéus, Telesphoro tratou de reunir os posseiros que ocupavam terras da área do Posto e convocou-os a luta, pois “era chegado o momento deles posseiros ajudarem o Posto na defesa das terras, porque tudo isso era arranjado pelos políticos que eram gente grande, para medirem e retalharem a área de terras reservada aos Índios, também como, apropriarem das benfeitorias dos posseiros”. Com esse apelo conseguiu arregimentar cerca de “cento e poucos” homens e armou setenta e três, os demais se armaram com suas armas de caça.[58]

Edison Carneiro, que anos depois ficaria conhecido como etnólogo, foi enviado pelo jornal Estado da Bahia para cobrir os acontecimentos, chegou à região no dia 25 de outubro, quando afirmou categoricamente:

A opinião dominante aqui, mesmo nos círculos integralistas, é a de que o levante de Itabuna não tem absolutamente nenhum caráter comunista. Trata-se apenas de reivindicação pelas armas das terras doadas pelos índios no Posto Paraguaçu pelo governo federal, e que despertara a cobiça de certos elementos em virtude das excelências das terras para a cultura do cacau e que tiveram grande valorização em consequência do desenvolvimento desta lavoura em todo o município.[59]

 As declarações prestadas por Edison Carneiro chamaram atenção justamente porque se opunham à versão dada pela Secretaria de Segurança para justificar a ocupação do Posto, contrariando os militares envolvidos na operação assim como os fazendeiros da região. No mesmo dia o Estado da Bahia publicou na sua terceira edição entrevista concedida pelo Secretário de Segurança Pública interino, o Capitão Hanequin Dantas, que desmente as afirmações de Edison Carneiro e tenta manter a versão oficial que se tratava de um levante comunista, que não pode haver levante indígena “isto porque o Posto Paraguaçu abriga somente cerca de umas três dezenas de nativos”.[60] Ainda segundo o secretário, Telésforo usou de tática bolchevista ao “propalar entre os indígenas e posseiros que os burgueses, fazendeiros e o governo queriam se apoderar de suas terras e que ele, como funcionário federal, tinha ordem do Ministério da Guerra para se levantar em armas a fim de defender os seus direitos”. Depois de muito argumentar, o secretário concluiu: “(…) como vemos não se trata de um levante de índios, nem de tomada de suas terras por elementos estranhos. Trata-se sim de um surto comunista. Agimos na defesa da sociedade contra essa célula comunista organizada há muito pelo irmão de Sylo Meireles[61] e continuada pelo atual chefe do Posto”.[62]

As prisões dos índios Fulgêncio e Marcionillio foram anteriores à invasão da reserva e nos depoimentos constam afirmações, que independente da forma que foram obtidos, ou mesmo que tenham sido forjados, serviram muito bem como pretexto para justificar a ocupação do Posto, tanto que foram reforçados pelo Tenente Ephigenio Mattos e Silva e divulgadas exaustivamente pela imprensa. O Estado resolveria várias questões de uma só vez. Buscaria prender os comunistas que estavam na área indígena e, ao mesmo tempo, ocupava o posto federal como queriam os fazendeiros locais, para propiciar uma nova definição dos limites da reserva, expulsando os posseiros que moravam na área, que constituíam os “comunistas armados” a que a polícia se referia, abrindo caminho para os fazendeiros se apropriarem das terras.

Como medida diplomática, o Tenente do Exército, Plácido Barreto, foi ao Posto para uma conversa com Telésforo e, ao retornar, afirmou que o mesmo não se entregaria. Contrariando os dados transmitidos pelo Tenente Ephigenio Mattos e Silva, informou que “o Posto não dispõe de muito armamento, possuindo alguns rifles”.[63] E que “a maior parte são posseiros, indivíduos que tem posse de pedaços de terra e índios. São homens de boa índole, gente que não deseja lutar (…)”.[64]

Após a saída do Tenente Plácido Barreto, no dia 27 de outubro pela manhã, Telésforo convocou os posseiros, expôs os últimos acontecimentos e deixou a cargo destes decidirem que postura adotar; se queriam ou não entregar os armamentos, e salientando que caso não se entregassem deveriam todos se prevenir para a luta, pois havia o perigo concreto de perderem tudo que tinham no posto e ainda serem presos. Com isso, grande parte dos posseiros depuseram as armas alegando que não lutariam contra o governo.

Mesmo com a desistência de muitos, um grupo de cerca de trinta posseiros liderados por José Rufino, conhecido como Duca Cearense, resolveu continuar lutando e combinaram com Telesphoro a retirada do Posto, indo Fontes com uma turma para a Serra dos Índios e Duca com outra para a Serra das Alegrias, passando pela fazenda do Doutor Cordeiro de Miranda onde estava a sua família. “(…) depois Duca iria encontrar Fontes na Serra dos Índios, conhecida também como Serra das Bananeiras, onde tomariam resolução definitiva sobre a luta, que seria de guerrilhas ou emboscadas”.[65]

Com o retorno do Tenente Plácido, e seu encontro com o Cel. Liberato no dia 27 de outubro, neste mesmo dia iniciou-se o processo de ocupação do Posto, quando o grupo de posseiros, chefiado por José Rufino da Costa, que havia combinado com Telesphoro, enfrentar a invasão, entregou-se temendo a violência policial.[66] Tal fato se repetiu durante a ocupação, e até o dia 30 de outubro já haviam se entregado cerca de setenta posseiros.[67]

A ocupação completou-se no mesmo dia 27 de outubro. Ao chegar ao Posto as Forças de Operação constataram que não havia ninguém além de um velho cozinheiro.[68] Ou seja, as terras foram invadidas, e a sede do Posto ocupado sem haver uma única troca de tiros entre a força policial e os posseiros. As trincheiras cavadas ao redor da sede e dentro de algumas casas e galpões e, ainda, as seteiras abertas nas casas para apontar as armas foram inúteis, pois não foram utilizadas. Os índios que moravam no Posto foram colocados por Telesphoro em algumas casas afastadas da sede com o intuito de protegê-los. Enquanto ele e um grupo de quinze homens entre eles Gildath Amorim e Samuel Genez, esconderam-se na mata, e alguns posseiros estavam em pequenos grupos espalhados tentando defender suas terras.

Mesmo após a ocupação do Posto se tem notícias do envio de mais jagunços por parte dos fazendeiros. No dia 30 de outubro chegou a área do conflito, chefiado pelos fazendeiros João Antonio e Deraldo Mendes, um grupo de mais oitocentos homens procedentes de Vitória da Conquista.[69]

Após a tomada do Posto, a polícia anunciou a descoberta do “arquivo comunista de Telésforo” constando de um mimeógrafo, grande quantidade de livros sobre a Rússia, boletins, distintivos e outros documentos. Edison Carneiro, ao ter contato com tais documentos, assim descreveu:

(…) além de vários manifestos subversivos (…) havia também um trabalho sobre a situação do Brasil (…) neste estudo o nosso indígena é apresentado como uma vitima dos senhores da terra, vivendo abandonados, espoliados, sujeitos a mais brutal exploração. Afirma o autor do trabalho que existe no nosso país uma questão racial, exemplificando-a com a situação de inferioridade na sociedade do índio e do negro. Preconiza como conclusão, a formação de uma confederação de índios, independentes, dentro de um Brasil Soviético. Ao par disso indica uma série de reivindicações imediatas para os indígenas, começando pela tomada violenta das terras.[70]

Pela listagem e análise do material apreendido constante nos autos de apreensão anexo ao inquérito policial, constatamos que tratava-se de material editado pelo movimento sindical, pelo Partido, pela ANL e pelo movimento anti-integralista na região e, alguns panfletos publicados na Capital do Estado, que certamente foram levados ao Posto pelos três comunistas que lá se encontravam escondidos. Apenas alguns poucos, destinados aos camponeses, ou contra o integralismo poderiam ter sido distribuídos na área.

Ao encontrar tal material, a polícia o exibia como a prova necessária para referendar seus argumentos, que a invasão ao Posto era para reprimir uma “Revolta Comunista”. Encaminhou-o ao Governador e ao Secretário de Segurança para que tal feito fosse divulgado na Capital do Estado.

Após alguns embates com troca de tiros entre o grupo e a polícia, Telésforo fugiu com um grupo para Minas Gerais onde ficou alguns meses nas dependências do Posto Indígena Maxacali e “depois dirigiu-se a Ilhéus sob proteção do Tiro de Guerra –  o que demonstra a continuidade do apoio do SPI e do Exército a seu representante na região – e terminou por embarcar para o Rio de Janeiro”.[71]

Não foi possível encontrar dados concretos a respeito dos mortos nos combates. O relatório das Forças de Operação da Polícia Militar não toca nesse assunto, referindo-se apenas a algumas “escaramuças” para usar o mesmo termo do relatório policial. A primeira teria acontecido ainda no dia 27 de outubro nas imediações da casa de farinha e engenho do Posto, próximo da área denominada “Cordemira,” que ficava na área indígena e era de posse do então Deputado estadual Cordeiro de Miranda, onde foi constatada a existência de um grupo de cerca de trinta homens. “A Força foi recebida à bala, travando-se então ligeira escaramuça, que resultou na debandada dos sediciosos, os quais se internaram na mata, sofrendo algumas baixas”. A segunda “escaramuça” ocorreu no dia 03 de novembro na localidade “Serra da Onça”, quando um membro do grupo foi incumbido de comprar alimentos e, ao invés disso, procurou as forças policiais, indicando o lugar onde estavam escondidos Telésforo e mais quinze homens.

Com a aproximação da força, as sentinelas vermelhas rompem fogo. Trava-se o ataque. O Pel. assalta as tocaias. E os sediciosos, acusando perdas, correm vertiginosamente na mais absoluta debandada pela vastidão das florestas quase virgens. É feito um prisioneiro(…) Outras escaramuças menos importantes foram travadas com elementos amotinados(…) muitos dos quais acossados pela tenaz perseguição das forças, transpuseram o Rio Pardo, na direção do Estado de Minas gerais(…). [72]

As notícias de jornal informam a morte de um “sentinela de Fontes,” o posseiro Nazário, ainda nas matas dos arredores do Posto – certamente no combate descrito no relatório da polícia – e Rutrillo Barbosa morto pela polícia na fronteira com Minas Gerais.[73] Segundo Maria Hilda Baqueiro Paraíso:

O boletim interno do SPI de 15 de março de 1937 dá como desaparecidos Rutile Barbosa[74] (capataz de Fontes), Vicente Pinto, Joaquim Spinola e José Reginaldo. Para alguns moradores do local não morreu pessoa alguma durante a permanência da tropa na reserva. Para outros, teria descido grande quantidade de botas pelo Rio Colônia, o que seria indicativo de morticínio. Em depoimento reservado o Cel. Antônio Medeiros Azevedo, sub-comandante da tropa, afirmou-nos que os mais visados eram os pequenos arrendatários, que teriam se recusado a abandonar suas terras para os fazendeiros (…).[75]

Tendo saído do Posto Paraguaçu desde setembro, e dois homens do grupo tendo sido presos, o Caboclo Marcellino e seus dois companheiros restantes ainda ficaram quase um mês escondidos na mata, aguardando uma oportunidade para se entregarem “pois não tinham intenção alguma de brigar, nem resistir a prisão, apenas queriam a garantia de vida”.[76] Cyrillo Pereira de Almeida, subdelegado de polícia do distrito de Cajazeira, ao saber que eles estavam há quase dois meses na região de Macuco, refugiados em um lugar conhecido como Santaninha, enviou para lá João Pinto e Alicio Pinto, filhos de Pedro Pinto para negociar uma rendição, a qual aceitaram sem nenhum tipo de resistência, pois segundo eles ainda “não haviam se entregue por falta de uma pessoa que lhes merecesse confiança, a fim de não serem maltratados”. Em 01 de novembro de 1936, Caboclo Marcellino, Pedro Pinto e Marcos Leite foram apresentados à Delegacia de Itabuna.

No primeiro depoimento prestado ao ser questionado se trabalhava pelo comunismo, respondeu que “absolutamente não é comunista, nem do mesmo quer saber; apenas tem procurado defender as suas terras e benfeitorias, em Barro Branco de Olivença; se os políticos de Olivença o chamam de comunista, é justamente por perseguição, até porque ele respondente não sabe o que é comunismo”.[77]

Gildath Amorim foi preso no último encontro do grupo de Telésforo com a polícia na divisa da Bahia com Minas Gerais. Foi enviado a Itabuna para prestar os primeiros depoimentos e posteriormente seguiu  para Salvador e Rio de Janeiro para ser julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional acompanhado de Marcellino Alves.

As cadeias estavam superlotadas, e por isso, em julho de 1937 foi publicado um decreto que instituiu que os presos políticos que não tinham culpa formalizada por ainda não terem sido julgados seriam postos em liberdade.  Em agosto de 1937, beneficiado por essa medida, Marcellino Alves, o caboclo Marcellino, retornou a Ilhéus e se apresentou as autoridades policiais dizendo-se disposto a mudar de conduta. O Sub-delegado do Pontal, Rubens Patury, aconselhou-o a não permanecer na região, argumentou que a sua vida corria perigo pelos fatos ocorridos no passado.[78] Essa foi a última notícia encontrada a respeito do Caboclo Marcellino que atualmente é tido como um herói do povo Tupinambá de Olivença, os quais estão passando por um novo processo de reorganização visando a retomada das terras. Desde 2001 vêm realizando a “Peregrinação em memória dos mártires do Cururupe” relembrando o que os mais velhos chamam de “A última revolta do Caboclo Marcellino”.

Epílogo

Quanto a José Martins, passou um tempo escondido, em Salvador, Mato Grosso e por fim em São Paulo, onde desempenhou importante papel no processo de reconstrução da direção nacional do PCB no fim do Estado Novo quando praticamente toda a direção partidária havia sido presa. Segundo Luís Carlos Prestes, “em São Paulo o partido não tinha praticamente nada. Lá estavam o Câmara Ferreira, completamente desarticulado, e o camponês Martinzão, que tinha um pequeno grupo de comunistas”.[79] Tal processo levou a realização da Conferência da Mantiqueira em agosto de 1943. Em 1946 quando da realização da III Conferência Nacional, já na legalidade, o PCB anunciou a nova composição do Comitê Central, no qual constava o nome de José Martins.[80]

Jorge Amado, narrou parte da trajetória de José Martins em “Subterrâneos da Liberdade”. Uma trilogia baseada nos acontecimentos que envolveram o PCB nos anos do Estado Novo. José Martins foi transformado no personagem “Gonçalão”, que vivia na região sul da Bahia, entre os índios. “(…) Não foi apenas entre os índios da Colônia que a atividade do partido cresceu com a chegada de Gonçalão. Ele encontrara tempo para ajudar as organizações partidárias de Ilhéus e Itabuna, de Pirangy e Água Preta, para conversar com os trabalhadores das fazendas de cacau”.[81] Jorge Amado, também se referiu a atuação de Edison Carneiro: “apenas um dos correspondentes de jornais, um jovem escritor mulato, mostrou em seus despachos a justiça da causa defendida pelos índios. Foi logo chamado pela direção de seu jornal e, ao chegar à Bahia, investigadores de polícia o assaltaram à noite e o deixaram sem consciência de tanto que lhe deram”.[82]

Em final de abril de 1937 foi anunciada a chegada do Capitão do Exército Moysés Castello Branco Filho, oficial do serviço geográfico, com o intuito de, junto ao governo do Estado, discutir a demarcação das terras indígenas. Em meados de setembro foi publicado um Edital de Demarcação, onde os fazendeiros confrontantes foram “convidados a apresentar seus títulos de posse, requerimentos, documentos e quaisquer memorial (…) e para assistirem ou se fazer representar, no início das operações  a serem realizadas”.[83]

Com a nova demarcação coordenada pelo Cap. Moysés Castelo Branco Filho, representando o Exército, e pelo Eng. Civil Alfredo de Amorim Coelho, como representante do governo do Estado, instituíram-se os novos limites reduzindo a área de 50 léguas quadradas para 15 léguas quadradas,[84] o equivalente a 54.000 hectares, tendo “vários fazendeiros locais, influentes políticos da época e determinadas autoridades policiais envolvidas nos acontecimentos, se apossado da maior parte das terras que haviam até então pertencido aos índios ali instalados”.[85]

Além disso, a partir dessa data, a nova direção do Posto instituiu a prática de arrendamentos das terras da reserva, utilizando contratos através de formulários do SPI. Foram esses contratos de arrendamento que em 1974 o então governador do Estado, Antônio Carlos Magalhães transformou ilegalmente em Títulos de Propriedade, transformando o caso em disputa judicial de décadas, e somente em 2012, após inúmeros episódios de violência e assassinatos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela nulidade de tais títulos.

Notas

[1] Professor Assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e doutorando em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: marceloslins@hotmail.com

[2] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. Posteriormente esse processo foi apenso ao processo 171. AN.

[3] Auto de perguntas feitas a José de Lemos Netto e auto de perguntas feitas a Olegário de Andrade e Silva. 1936. Processo 356 do TSN. AN.

[4] Idem.

[5] Diário da Tarde.  Ilhéus. 22/08/1931.

[6] Idem.

[7] “Tesis del Bureau Sudamericano sobre la situacion del Brasil y las tareas del Partido Comunista.” 1934. CEDEM/UNESP, Fundo IC.

[8] 1ª Conferência Nacional do PCB (Seção da IC). Publicado na A Classe Operária, 01 /08 /1934. In: CARONE, Edgard. O P.C.B. 1922-1934. Vol. 1, São Paulo: Difel, 1982. p. 167

[9] Idem. Ibdem.

[10] “A posição do PCB frente às eleições.” A Classe Operária, 23/08/1934. In: CARONE, Edgard. O PCB, 1922 a 1943. Op. cit. p. 156

[11] A Classe Operária nº 180, 01/05/1935.

[12] QUEIRÓS, “Em véspera da Revolução no Brasil”, Informe apresentado à III Conferência dos PCs da América Latina, conforme tradução do PCB (publicada em separata) de La Internacional Comunista, n 5, abril de 1935, pp. 426-44. Apud: VIANA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 114.

[13] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[14] Idem

[15] Auto de perguntas feitas a Manoel Castro Gaspar. Processo 356 do TSN. AN.

[16] Auto de perguntas feitas a Mauricio Penedo. Processo 356 do TSN. AN

[17] Auto de perguntas feitas a Manoel Castro Gaspar e auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[18] Auto de perguntas feitas a Mauricio Penedo. Processo 356 do TSN. AN.

[19] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 223 do TSN. AN.

[20] Idem.

[21] No auto de perguntas feitas a Marcellino Alves ele nega que pretendesse assassinar os “grandes”.

[22] Auto de perguntas feitas a Olegário de Andrade e Silva. Processo 356 do TSN. AN.

[23] Auto de perguntas feitas a Dionísio Gonçalves de Oliveira. Processo 356 do TSN. AN.

[24] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 223 do TSN. AN.

[25] Diário da Tarde. Ilhéus. 24 de abril de 1935.

[26] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[27] Nas versões apresentadas pelo Fazendeiro José Lemos e pelo escrivão Olegário Andrade, Antonio Mendes era comerciante e foi assaltado e depois assassinado. Processo 356 do TSN. AN.

[28] Auto de perguntas feitas a Marcionillio Brás. Processo 356 do TSN. AN.

[29] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[30] Processo 171 do TSN. AN.

[31] O Intransigente. Itabuna. 14 de dezembro de 1935.

[32] LAND, Ney. Relatório. SPI ,19/05/1965.

[33] PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Levantamento demográfico, sócio econômico e da situação das terras dos Postos Indígenas Caramuru e Paraguaçu. 1976. p. 26.

[34] Estado da Bahia. Salvador. 04 de novembro de 1936.

[35] Relatório ano 1929 de Vicente de Paulo Teixeira da Fonseca Vasconcelos. SPI do Estado da Bahia 1930. In: COQUEIRO, Sonia O., MONTEIRO, Maria Elizabeth. e SÁ, Sheila M. B. de. Povos Indígenas do Sul da Bahia: Posto Indígena Caramuru – Paraguaçu (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2002. p.45.

[36] SPI: Ofício de Telesphoro Martins Fontes à Chefia do SPI. s.d. (provavelmente maio de 1937). Processo 171 do TSN. AN.

[37] Relatório do Cap. Salomão Rhen sobre os acontecimentos no Posto Paraguaçu. Processo 171 do TSN. AN.

[38] Argumento anacrônico, pois o SPI não desenvolvia serviço de catequese.

[39] PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Op. cit. p. 30

[40] SPI: Ofício de Telesphoro Martins Fontes à Chefia do SPI. s.d. (provavelmente maio de 1937). E  bilhetes de Augusto Santos Souza à Telesphoro Fontes. Processo 171 do TSN. AN.

[41] Estado da Bahia. Salvador. 08 de dezembro de 1936. Também relatado no Relatório do Capitão Salomão Rhen anexo ao processo 223 do TSN. AN.

[42] Auto de perguntas feitas a Fulgêncio Almeida. Processo 356 do TSN. AN.

[43] Estado da Bahia. Salvador.26 de outubro de 1936. 3ª Edição.

[44] Bilhete a Caro Fontes. Gabinete do Governador. 28 de abril de 1936. Assinado por Augusto Santos Souza. Documento apresentado pela defesa de Telesphoro. Processo 223 do TSN. AN.

[45] Estado da Bahia. Salvador. 08 de dezembro de 1936.

[46] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[47] Auto de perguntas feitas a Marcionillio Brás. Processo 356 do TSN. AN.

[48] Auto de perguntas feitas a Fulgêncio Almeida. Processo 356 do TSN. AN.

[49] Estado da Bahia. Salvador. 26 de outubro de 1936. 3ª Edição.

[50] Carta de Telésphoro Fontes a Liberato de Carvalho em resposta ao ultimatum recebido. 22 outubro de 1936. Processo 223 do TSN. AN.

[51] Idem.

[52] Estado da Bahia 24 de outubro de 1936.

[53] CARVALHO, Liberato de. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Cap. Secretário de Segurança Pública do Estado da Bahia pelo Cel. Cmt. das Forças de Operação contra a célula comunista do PI Catarina Paraguassu. 16/11/1936. Processo 223 do TSN. AN.

[54] Estado da Bahia. Salvador. 24 out. de 1936. 3ª Edição. Entrevista de Hanequin Dantas.

[55] CARVALHO, Liberato de. Op. cit.

[56] Estado da Bahia. Salvador. 27 outubro de 1936. 1ª Edição.

[57] CARVALHO, Liberato de. Op.cit.

[58] Depoimento de Gildath Amorim, logo após sua prisão na Delegacia de Itambé em 30 de novembro de 1936. Processo 223 do TSN. AN.

[59] Estado da Bahia. Salvador. 26 de outubro de 1936, 1ª Edição.

[60] Estado da Bahia. Salvador. 26 de outubro de 1936. 3ª Edição.

[61] Referindo-se a Syldo Meireles que atuou no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), e foi o responsável pela implantação do Posto Paraguaçu.

[62] Estado da Bahia. Salvador. 26 de outubro de 1936. 3ª Edição.

[63] Estado da Bahia. 27 outubro 1936. 2ª Edição.

[64] Entrevista do Tenente Plácido Barreto ao jornal A Época de 29 de outubro de 1936 e novamente publicada no Estado da Bahia de 29 out 1936 2ª Edição.

[65] A conversa de Telesphoro com os posseiros consta no depoimento de Gildath Amorim. Processo 223 do TSN. AN.

[66] Estado da Bahia. Salvador. 28 outubro de 1936. 1ª Edição.

[67] Estado da Bahia. Salvador. 03 de novembro de 1936. 3ª Edição.

[68] Estado da Bahia. Salvador. 29 de outubro de 1936. 2a edição.

[69] Estado da Bahia. Salvador. 31 outubro de 1936. 2ª Edição.

[70] Estado da Bahia. Salvador. 04 de novembro de 1936.

[71] PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro.Op. cit. p. 32,33.

[72] CARVALHO, Liberato de. Relatório … Op. cit.

[73] Estado da Bahia. Salvador. 27 de novembro de 1936 e 11 de dezembro de 1936 respectivamente.

[74] A imprensa noticiou como sendo Rutrillo Barbosa enquanto no boletim do SPI seu nome consta como sendo Rutile Barbosa.

[75] PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Op. cit. p. 32

[76] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[77] Auto de perguntas feitas a Marcellino Alves. Processo 356 do TSN. AN.

[78] Diário da Tarde. Ilhéus. 12/08/1937.

[79] MORAES Denis de. e VIANA, Francisco.Op. cit. pp. 95,96.

[80] PACHECO,Eliezer. O Partido Comunista Brasileiro (1922-1964). São Paulo: Alfa-Omega, 1984. pp.194,195.

[81] AMADO, Jorge. Os Subterrâneos da Liberdade , Ásperos Tempos, 19a Edição, São Paulo: Martins Editora, 1970. p.167.

[82] Idem. p.170

[83] Diário da Tarde. Ilhéus. 21 de setembro de 1937.

[84] Parecer do Dr. Benjamim Campos, Consultor Jurídico do Ministério da Agricultura, s.d. Acervo pessoal Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraíso.

[85] OLIVEIRA, Waldir Freitas e LIMA Vivaldo da Costa. (orgs). Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Currupio, 1987. p.128

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