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Neca Borari

Cacica Neca Borari: Luta de resistência matriarcal pelo território do povo Borari

Autor(es): Neca Borari
Biografado: Neca Borari
Povo indígena: Borari
Terra indígena: Terra indígena Borari de Alter do Chão
Estado: Pará
Categorias:Biografia, Etnias, Borari, Estado, Pará
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RESUMO

Neste artigo, eu, a cacica Neca Borari, liderança de linhagem matriarcal do povo Borari de Alter do Chão,  localizado na amazônia brasileira, venho trazer um breve relato de alguns momentos da minha história de luta. Faço parte de um cacicado composto somente por mulheres, assim como do coletivo Sapú Borari, vinculado à Associação Indígena Borari de Alter do Chão. Apresento neste relato a nossa luta nesse espaço coletivo, onde nós, lideranças indígenas, buscamos nossos direitos por reconhecimento, por saúde, educação e, principalmente, pela demarcação do território Borari de Alter do Chão. Acreditamos que esse último é um sonho ainda distante, mas ainda possível. É um direito pelo qual o povo Borari lutou historicamente e que possibilitou um importante processo organizativo e o empoderamento feminino das mulheres indígenas. Nesse relato falamos de intercâmbios, de experiências vividas e refletimos sobre a falta de compromisso e o grande descaso por parte do governo para com o povo. Vemos a nossa mãe terra sendo vendida, o que tira a paz e a vida dos Borari. O nosso território está cada vez mais desordenado, principalmente pela crescente especulação imobiliária, a sua maior ameaça. Também sentimos a grande dificuldade para seguir na luta com o risco da pandemia.  Assim, na aldeia Alter do Chão temos um importante processo de resistência pela defesa do nosso território e que conta com a participação efetiva de importantes lideranças indígenas. Atualmente, ao conseguirmos envolver os jovens Borari na nossa luta, tivemos a certeza de que o objetivo de nos organizar para o reconhecimento dos nossos direitos como povo indígena foi alcançado.

PALAVRAS-CHAVE: borari; matriarcal; território; especulação imobiliária.

 

Luta de resistência matriarcal pelo território do povo Borari

 

Ludinéa Lobato Gonçalves Dias e Damilles Ribeiro Sardinha [1]

Neca Borari

Nascida sobre as águas, de linhagem matriarcal

Mãe que sente dor, mas que dá a vida defendendo seu território[2].

 

Nota introdutória

O texto a seguir é um relato de luta e da vida da minha tia, cacica da Aldeia Alter do Chão, Neca Borari[3].  Eu, Damilles Borari, escrevo na posição de quem faz parte da luta, tanto da Associação Indígena Borari, da qual fui presidente entre os anos de 2017 e 2019, quanto do coletivo das mulheres Sapú[4] Borari, nossa organização de mulheres que fortalece a liderança das indígenas. Eu faço parte da luta do povo Borari pelo território desde criança e fui sendo incentivada a ser liderança, a representar o povo em diversos espaços, dentro e fora do nosso território, em assembleias e encontros de outros povos indígenas. Nessa trajetória sempre busquei o consentimento e orientação dos mais velhos. É com esse papel de apoiar a luta do meu povo, que ingressei na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), onde desde 2018 faço graduação em antropologia. O ingresso dos indígenas na UFOPA foi outra luta constante das nossas lideranças para que os jovens Borari pudessem frequentar a universidade. Encontram-se abaixo as palavras da nossa cacica, registros fotográficos, juntamente  com as anotações e gravações que venho realizando ao longo dos anos sobre muitas das atividades relatadas. Este texto foi elaborado, portanto, a partir de uma composição feita por mim desses registros, com o olhar de quem é parte dessa luta desde criança e que atua diretamente no movimento indígena.

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 Histórias de luta

A história que vou contar começa com os meus antepassados, com a minha tataravó Maria, que era de Alter do Chão. A minha tataravó teve a minha bisavó, Maria Puquéria Borari, que juntamente com o seu Manoel, seu marido, tiveram cinco filhos: Belarmina Borari, Olendina Borari, Raimunda Borari, Manoel Borari e Vicente Borari. Mas a nossa família, como muitos povos indígenas, vivia de um lado para o outro. Eles iam muito para pequenas aldeias vizinhas, aproveitavam para plantar, junto com outros povos, na região de várzea[5], que é muito fértil. Aqui, onde se encontra a nossa aldeia, que é o que se chama de terra firme, no período do verão fica tudo muito escasso. Por lá, faziam plantio de verduras, cuidavam da criação de gado, de galinha, e pescavam, o que facilitava muito na região de várzea, inclusive para preparar algumas comidas, como o piracuí[6]. Usavam suas grandes canoas, aquelas montarias como a gente chamava, com a cobertura toda de palha e aquela tolda. Com elas, navegavam muito para o Urucurituba, Canal do Jarí, Aramanaí. Já no inverno, eles se fechavam mais na aldeia Alter do Chão e no centro da mata, onde tinham os seus roçados, suas casas de fazer farinha. Aí eles também faziam suas danças e seus rituais.

Minha avó também foi liderança na comunidade. Buscamos nossa história, para sempre aprender com ela. As mulheres sempre estiveram à frente nas tomadas de decisões e não perdemos isso até hoje. A minha avó se chamava Belarmina (Biló), teve seu marido, mas ele morreu e ela ficou comandando a família. Tiveram sete filhos, Erontildes (Mêru), Luzia Lobato, Antônia, Eriberto, Osvaldo, Marcos e Nadir, todos Borari. Belarmina foi para o Urucurituba, prenha[7], mas retornou depois para a aldeia Alter do Chão. Quando ela foi, pariu encima d’agua, na canoa. A mamãe Luzia nasceu encima das águas do rio Amazonas, no Urucurituba. Desde aí vem se formando essa árvore genealógica das famílias do povo Borari.

A minha mãe, vindo desse comando de mulher, já não quis ter homem com ela, eu fui a quarta filha. Nos anos de 1954 e 1955, aqui na aldeia, ela teve um caso com um homem negro que era de São Benedito de Gurupá, mas ele foi embora para Nova Olinda do Norte, no rio Madeira. De lá, ele veio buscá-la em Alter do Chão, já prenha. Ficaram morando por um tempo em casa de palafitas[8], em Nova Olinda do Norte, mas como estava próximo o meu nascimento, eles começaram a se arrumar pra descer o rio no rumo de Alter do Chão. Contudo, em uma certa noite, já baixando o rio, ela acabou me parindo³ encima d’agua. Quando completaram sete dias de viagem, chegaram na aldeia Alter do Chão.

Assim começa a minha história de vida, sou Ludinéa Lobato Gonçalves Dias, mas todos me conhecem como Cacica Neca Borari. Tenho 67 anos, sou mãe de seis filhos, sou casada, estou aposentada, sou compositora, contadora de história e mulher guerreira, dou a vida pelo meu território, que é a chamada aldeia Alter do Chão.

A mãe Luzia sempre foi de ajudar a comunidade, na linha de frente. Nessas alturas Alter do Chão foi aumentando e passamos a ter que defender nosso território. Algumas pessoas já disseram que os nossos antepassados não conseguiram avançar, mas hoje, eu, como liderança do meu povo, vejo pelo meu pensamento, pelos meus olhos, que eles cuidaram muito bem e seguraram as invasões de terra, pelo menos até 1970. A colonização por aqui já tinha chegado fazia muito tempo, modificando o nome da antiga aldeia Borari para Alter do Chão, que é o nome de uma cidade de Portugal. Perdemos grande parte da nossa língua mãe, mas não totalmente. A catequização do nosso povo foi feroz. Também foi difícil a luta da cabanagem, quando nossos antepassados tiveram que enfrentar a invasão do branco com os olhos no território.

A partir dos anos de 1970, com a politicagem, abriram uma estrada que liga a cidade de Santarém à aldeia Alter do Chão. Lembrando que os mais velhos e as pessoas que vinham ajudando a comunidade na época nos alertaram. Existiam, em Santarém, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e seus membros alertavam: “vocês têm que ter muito cuidado, o governo, o próprio branco, vai querer tomar o território da comunidade”. Minha avó me dizia que queria partir para outra vida, outro plano do mundo indígena, no qual Alter do Chão continuasse sempre como era, sempre fechada à vinda do branco, que só os nativos continuassem a viver na aldeia, semeando a terra e mantendo a nossa cultura.

Antes havia a dificuldade no transporte desde Alter do Chão para chegar na cidade de Santarém, o que nos fazia dependente da cidade de Belterra, onde operava a Companhia do Henry Ford. Por outro lado, quando parte para a abertura da estrada de Alter do Chão para Santarém, começa a ficar mais difícil a proteção do território. Nessa altura, nossos parentes iam alertando e preparando as lideranças, ensinando àqueles indígenas que eles viam que tinham o poder de liderar. Com esse conhecimento da luta, começam a se organizar. Desde que começamos a ir aos encontros comunitários, a gente passou a entender que um grupo tinha que ter a parte jurídica organizada para ter uma força maior na luta, como foi a criação do Conselho Comunitário, fundado em 1969. Com o tempo, esse espaço foi perdendo um pouco da sua força, pois quem foi entrando no comando já não mais ouvia as lideranças da comunidade.

 

Figura 2: Praia do Jacundá, limpa das fossas e barracas que os grandes empresários de Santarém construíram.

Foto: Damilles Borari.

 

Quando eu comecei a lutar pela questão territorial foi em 1975, na luta pelos espaços comuns, para não deixar que eles fossem ocupados por invasores. Essa luta começa quando invadem a praia que é a parte da comunidade. Em frente ao nosso rio Tapajós, foram construídas 35 malocas, todas tinham banheiro com fossas em cima da praia e eram de grandes empresários de Santarém. Vieram sem consultar nosso povo, porque entra prefeito e sai prefeito, todos acham que tem direito a fazer o que bem entendem com a nossa comunidade. Olham para a gente de outa forma, como se nós não tivéssemos voz para falar como queremos.  Eles construíram as malocas e fossas num espaço que nós, nativos, sempre preservamos para o futuro dos nossos filhos e netos.

Depois de várias tentativas frustradas de deter esse processo através de denúncias ao Ministério Público Estadual, não tivemos respostas que realmente resolvessem. O que queríamos era a retirada das malocas, que nosso lugar permanecesse limpo. Assim, sem sucesso indo pela legalidade, tomamos a iniciativa. Se ocorresse alguma coisa diferente do previsto não falaríamos nada. Fizemos, assim, um voto de silêncio entre nós, comunitários.  Mas, no final, tivemos nossa vitória. O que podemos falar é que não sabemos como as malocas amanheceram todas queimadas. Até hoje, ninguém ousou colocar novamente as barracas sem a permissão dos nativos. Outra luta que teve sucesso foi a aquisição de espaços para a construção de escolas para as crianças estudarem e para o cemitério. Pensávamos nas formas de manter a comunidade unida. Essa luta se estendeu até a década de 1980.

Figura 3: Ilha do Amor, somente os Borari podem ter barracas na praia e também existe uma Associação dos Barraqueiros.

Foto: Damilles Borari, em 01 de outubro de 2017.

 

Na década 1990, também entramos em mais uma luta territorial, pois apareceu um senhor se intitulando dono da Ilha do Amor, mais um lugar sagrado para os Borari, lugar de fartura e beleza, onde nossas encantarias[9] vivem até hoje. A informação que chegou ao nosso conhecimento era que em 2001 perderíamos o usufruto exclusivo dessa área. Alguns nativos não se importaram, pensavam que esse ano nunca chegaria, ou que iriam morrer e não iam ver isso acontecer. Esse senhor, que se intitulava o dono da nossa Ilha do Amor, achou que não se levantaria nenhuma liderança, pensou que nós iríamos recuar, dar de bom grado esse direito, mas não damos ou vendemos a nossa mãe. Através de muitas brigas e com o apoio do Ministério Publico ganhamos essa causa.

 

Figura 4: Lago do Jacundá durante o verão. A casa que aparece ao fundo é do invasor Nelson Taveira da Silva.

Foto: Damilles Borari em  7 de novembro de 2017.

 

Na década de 1990 foi se conformando uma luta maior pela terra, que começava a ficar também mais perigosa. Foi quando houve a invasão do Lago do Jacundá (nome dado ao peixe encontrado nesse lago). Algumas lideranças se corromperam e começaram a invadir e vender essa área. Nesse momento, começamos a usar estratégias para a reocupação dos nossos lugares sagrados, para impedir que tomassem o que é nosso. Sabemos que em todo lugar existem aqueles de dentro da própria comunidade que só pensam em dinheiro, só veem o lado do comércio. Nessa época, vários indígenas deixaram de ser resistência e passaram a vender nossa terra, ficaram contra seu próprio povo, isso quase nos desarticulou. Nessa época, o Conselho Comunitário continuava dando esse apoio na organização do povo, mas as lideranças de frente já não estavam mais conduzindo o Conselho como devia ser.

 

Figura 5: Morro do Maracaiçara ou Meracaiçara, onde foi forjada a antiga aldeia Borari para enganar os brancos na época da cabanagem e que foi palco das destruições das roças do povo indígena.

Foto: Damilles Borari, em 03 de agosto de 2017.

 

Outra luta que enfrentamos foi quando Rui Nelson Taveira da Silva e Nelson Taveira da Silva, pai e filho, disseram que eram donos de 70% do território Borari. Entre 1996 e 2003, eles iam tirando os nativos, destruindo casas, destruindo roças, poços artesianos, plantações. Eles não queriam saber quem eram as pessoas, quem não saia por bem, saia por mal. Houve três confrontos muito perigosos. Em um deles, mandaram atirar na gente que estava no local. De um lado eram 17 homens armados até os dentes e, de outro, eram mulheres e homens caindo dentro d’agua, assustados com os tiros que vinham de todos os lados. Atravessamos a nado o Lago do Jacundá, um indígena com bala alojada no corpo, graças a Tupã[10] nenhum de nós saiu morto, mas por muito pouco não aconteceu o pior.

E de lá para cá, só foi ficando cada vez pior, porque a pressão por um palmo de terra em Alter do Chão é muito grande. Aí entra a especulação imobiliária. Quem está na luta às vezes não tem apoio. Os nativos que não se assumem como indígena, que negam as suas origens, não entram na luta porque só conseguem pensar no comércio ilegal de terra, não conseguem entender que aos poucos todos estão sendo expulsos das nossas terras.

De 1996 para cá peguei mais gosto de lutar pelo meu povo. A briga pelo território me motivou a permanecer até hoje lutando, com 68 anos. No ano de 2003, nós, lideranças, chegamos à conclusão de que precisava ser feito algo mais, estávamos cansadas de não alcançar nosso objetivo, com as inúmeras invasões em nossas terras. Nesse momento, conversei com uma parente indígena, Robenita Munduruku, do baixo Tapajós, enquanto trabalhávamos juntas em um puxirum[11]. Ela me contava que tinha um caminho para o reconhecimento do território como terra indígena, como estava sendo feito em Bragança, Taquara e Marituba. Dizia que o povo Borari podia também fazer o mesmo processo, me dizia claramente que tínhamos um direito e que precisávamos buscá-lo lá em Brasília. A Robenita me apresentou uma antropóloga que nos ajudou a esclarecer muitas dúvidas, foi uma conversa de virar a madrugada.

 

Figura 6: Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação Terra Indígena Borari de Alter do Chão.

Mapa 1: Terra Indígena Borari de Alter do Chão.

Fonte: Associação Indígena Borari de Alter do Chão.

 

Com um pouco mais de conhecimento, nos organizamos em 20 famílias que concordaram em buscar uma saída dentro da legalidade. Foi quando partimos para Brasília e conseguimos que o governo, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), nos reconhecesse como povo indígena. Apesar de ser um absurdo que o governo venha dizer quem é indígena e quem não é, por fim fomos reconhecidos. Em 2004, recebemos a visita da Coordenação Regional de Itaituba da FUNAI, que já tinha um estudo preliminar e um estudo antropológico oficial. Foram dados mais alguns passos no processo de demarcação da terra, mas infelizmente ele está parado atualmente, porque claramente o governo não quer demarcar nenhuma terra indígena no Brasil.

Somente em 29 de janeiro de 2008 conseguimos criar nossa própria associação para conseguir andar pela legalidade. Eu, Neca Borari, fui a primeira presidente da Associação Indígena Borari de Alter do Chão e depois veio a Damilles Borari. Podemos ver que até nas coordenações os comandos estão com as mulheres. Nos dias de hoje é nelas em que nós nos apoiamos.

 

Figura 7: Assembleia para trocar a diretoria da Associação Indígena Borari de Alter do Chão.

Foto: Damilles Borari.

 

Eu vejo quatro pontos principais de luta da Associação: primeiro, lutamos por uma terra demarcada; segundo, saúde diferenciada; terceiro, educação diferenciada e, o quarto, direito à seguridade social. Percebe-se que hoje as lutas mais estruturadas de todos os povos indígenas são a saúde, a educação e a seguridade. Contudo, a demarcação de nossas terras é ainda a nossa maior bandeira de luta entre todos os povos indígenas. Nós, mais velhos, que começamos a luta sem estudo e sem conhecimento nas causas, claro que entendíamos que era errado sermos expulsos das nossas terras. Na época em que era mais nova, quando íamos fazer documentos, que é coisa do branco, ninguém sabia escrever bem esses direitos, mas demos a cara e a coragem, alguém tinha que dar o primeiro passo.

Posso dizer que, hoje, o grupo que se levanta dentro do nosso movimento indígena Borari está buscando querer aprender mais sobre o seu povo, estão entrando nas universidades e de toda certeza teremos esse retorno. Eles serão nossos futuros antropólogos, que farão o estudo antropológico da nossa terra, porque quem mais para saber da gente se não o nosso próprio povo? Serão os próprios Borari que nos defenderão como advogados. Já temos professores indígenas formados, enfermeiros indígenas formados, até médicos formados. Vejo isso tudo como um avanço nas conquistas do povo, uma continuidade do que se iniciou no trabalho de luta pelos nossos direitos.

Eu acompanho de perto o andamento dos estudos de cada universitário que a nossa associação indígena ampara. Eles vem com todo o respeito nos pedir permissão em cada ação que pretendem fazer em nome dos Borari.

 

Figura 8: Dia do Cacicado Indígena Borari Resistente (CAIMBORÉ).

Foto: Tomás Bassi, em 23 de março de 2018.

 

Eu, como mulher, Neca Borari, Cacica do Cacicado Indígena Borari Resistente, formado somente por mulheres, estou agradecida por serem elas o esteio das suas famílias. Continuo me preocupando com a nossa mãe terra e peço encarecidamente ajuda do Ministério Público, antropólogos parceiros, arqueólogos e advogados, para sentar e conversar. O pedido é que nos ajudem nessa luta, porque Alter do Chão está sendo engolida de uma forma desordenada. As pessoas que vieram morar na comunidade entendem que hoje precisa ter muitas associações. Aqui em Alter, anoitece com uma associação e quando amanhece já têm três associações formadas, porque querem ter um grupo para comandar aqui. Ninguém vai comandar isso aqui, quem vai comandar essa terra somos nós, os Borari. Enquanto eu viver nesse lugar, eu vou lutar. Quero que o povo entenda que nós não nascemos para morar encima d’agua, eu nasci em cima d’agua, eu sou filha das águas, a minha mãe nasceu em cima d’agua, é filha das águas, mas a terra é nossa. Quero dizer para todos que a terra mãe não vendemos, ninguém a troca, ninguém a negocia.

 

O papel das Sapú na luta pelo seu povo Borari

Eu me sinto feliz, tenho força de lutar, como uma guerreira, de frente, com toda força e coragem, eu tenho amor a essa terra, tenho amor ao meu povo, amor à vida que vai além daquilo que podemos ver a olho nu. Eu me sinto vitoriosa diante de tudo o que a gente tem passado pela defesa das nossas terras. Eu comparo essa luta a uma grande barca, uma canoa grande coberta de palha, e todos nós vamos ali passando, e quem quiser do povo que está buscando se conscientizar pode entrar. O povo Borari é forte, pode até ser reduzido, mas não é sumido, ele é continuação, ele não é ressurgido, ele vem continuando a barca da tradição que nunca parou. Ela já foi calafetada, remendada, passada breu, trocado tábua, mas ela nunca se acabou. Dentro dela vem trazendo a luta, com tristezas, sofrimentos, muitas das vezes ela vem com certas mágoas, mas junto dela vem também a alegria e a força de lutar.

Figura 9: Coletivo de Mulheres Sapú Borari na Murasi, que significa festa na língua nhengatu.

Foto: Tomás Bassi.

 

A luta das mulheres é muito importante dentro da nossa aldeia, porque é uma aldeia comandada por mulheres, ela é matriarcal. Se você for pesquisar por Alter do Chão vai encontrar mulheres lideranças, não deixando os homens de lado, porque eles também são nossos companheiros de luta. Eles respeitam muito, como as mulheres dizem, eles assinam embaixo, sabemos que eles vão defender as mulheres se houver um enfrentamento. Na minha história luta, quando iniciei, eu era só uma liderança, mas hoje eu sou a liderança maior delas, me nomearam cacica do povo. Com a proteção de Tupã, sem elas eu não seria nada, porque elas me motivam muito a lutar. Devido a uma discussão interna na aldeia, criamos juntas um grupo de mulheres chamado Sapú Borari. Sapú, em nheengatu, significa raiz. Colocamos esse esse nome pois sem raiz a estrutura de uma árvore não se sustenta. Assim surgiu o nosso cacicado composto somente por mulheres. Mas isso não significa que não temos homens que nos apoiam, muito pelo contrário, eles nos dão força nas nossas tomadas de decisão.

Nossas mulheres estão divididas em vários núcleos: tem o territorial, para cuidar da questão de defesa e estratégias de luta; as artesãs, que trazem a forma de sustento de suas famílias tecendo cestarias para venda; as de saúde, que buscam através da medicina tradicional uma forma de vida mais saudável; e a educação, que sem ela nossos filhos não conseguiriam hoje ter um estudo melhor que o nosso e que é importante para a sobrevivência da nossa cultura. Então, quando todas se juntam, nos transformamos em guerreiras, pois incentivamos que tomem essa linha de frente, para não perdermos a linha de comando, que é matriarcal, sempre ir às lutas, de acordo com a vontade de cada uma. Se de dentro de uma delas nasce o espírito de ser uma parteira, puxadeira, benzedeira, uma mulher que faz remédio caseiro, aproveita as plantas da natureza, não adianta eu levá-la para uma ação da educação que ela não vai ajudar direito, é bom a gente respeitar esse lado. Se você pedir uma água para um curumim[12] e ele não quiser trazer, você não pode forçar, pois vai trazer aquela água contra a vontade dele, e essa água pode te fazer mal. Nossos curumim e cuiantã[13] vão perpetuar a história do nosso povo, por isso eles têm que aprender desde de pequenos.

 

Figura 10: Formação dos Borari no curso de Direitos Indígenas, à esquerda os professores formadores Giuliana e Felipe.

Foto: Cleber Borari.

 

As mulheres enfrentam várias dificuldades, às vezes por conta do lado financeiro, pois elas têm a força de lutar, mas falta o dinheiro, que foi inventado pelo branco, o que dificulta a locomoção dentro do território, e fica fácil para o branco se apossar das nossas terras. Tem vezes que precisamos ir para a luta, mas sempre chegam algumas delas dizendo que não poderão ir, pois estão sem recurso para acompanhar e essa falta acaba enfraquecendo as nossas estratégias de luta. Outra dificuldade maior é o governo, que mente, mata o povo e expropria comunidades para construir seus grandes projetos. Dizem que esses projetos seriam para acelerar o crescimento dos brasileiros, mas na realidade não é assim, pois só deixam um rastro de sangue indígena, principalmente esse presidente que está aí contra todos os povos.

Além das dificuldades que vivemos, temos alguns apoios, como o que ocorreu no ano de 2018 em que doaram um espaço para a nossa Associação Borari e nos auxiliaram na formação sobre direitos indígenas, uma das formas que temos de nos defender. Essa formação serviu e está servindo até hoje.

 

Um sonho para o povo Borari

Meu sonho é ver o território indígena Borari demarcado. Eu creio que é o sonho de qualquer povo indígena ter as suas terras demarcadas. Aqueles que hoje tem as suas terras demarcadas já sofrem com o governo querendo diminuir seu territórios, suas terras sendo garimpadas, tendo que ver o seu povo adoecer e morrer, e mais ainda no atual governo, que apoia abertamente a garimpagem. Imagina como é, então, pra quem não tem as suas terras demarcadas, como nós do povo Borari. Sei que pode ser que eu não chegue a ver essa terra demarcada, mas quem continuar vai ver, ainda tenho esperança.

O futuro do povo Borari é a terra demarcada, isso se os jovens continuarem nossa luta, se fortalecerem uns nos outros. Porque até lá vários estarão formados, conduzindo nosso povo. Eu sempre falo que estou do meio-dia para tarde. Essa turma jovem que está se levantando agora tem tudo para dar certo e ser umas das continuações da resistência, pois conhecem o mundo do branco e precisamos estar atentas a muitas das coisas que vem desse outro mundo. Nós até inventamos dificuldades, porque colocar nós mulheres que pouco tiveram acesso ao estudo, me colocar na frente de um computador, é difícil. É como diz a Sandra, guerreira anciã, “o que vamos fazer com esse negócio?”, ela dizia, “me dá um terçado que eu me garanto”. Aí vem a Marlene, outra anciã, dizendo “me dá uma tala de arumã que eu garanto tecer, mas não me bota na frente desse negócio que pra mim ele é um bicho, não sei o que ele está fazendo na minha frente”. A gente antes escrevia cartas e enviava. Às vezes, para ter respostas, demorava meses, dependendo da distância. Mas hoje, com essa tal de tecnologia, a gente não pode falar nada aqui, que lá no outro lado do mundo já estão sabendo.

Também posso falar que terra demarcada não é garantia de uma vida feliz para nenhum povo indígena. Se a terra está demarcada não podemos deitar e dormir, pois quando a gente acordar, o governo já engoliu nossas terras. O governo sempre vai querer entrar e diminuir o nosso território, para enricar mais o bolso de quem o apoia a se manter no poder. Hoje, o que estamos presenciando é uma vergonha de mandato de presidente assassino. Dizer que ele vai desistir, não vai. Eles trabalham na surdina e sempre querem o melhor, o que nós, guardiões da floresta, protegemos.

 

Encontros e intercâmbios entre lutas

Como coletivo Sapú Borari vamos tecendo também diversos intercâmbios e alianças com mulheres de outros povos indígenas. Um encontro que nos marcou bastante foi com as mulheres Munduruku. Com elas senti uma coincidência nas nossas linhas de pensamento, por elas estarem à frente na defesa do seu território. Elas nos ensinaram muito. A gente demorou para se conhecer pessoalmente, mas sempre ouvimos as histórias de luta delas e elas as nossas. Foi um amor pela rádio cipó, porque eu não tenho internet. Quando nos conhecemos, a nossa história já estava feita, tanto é que foi feito um casamento no nosso espaço Oca do Saber Borari, entre os dois grupos, o coletivo de mulheres Sapú Borari do Baixo Tapajós e a Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn do Alto Tapajós. Sempre recebíamos cartas convite para encontros que elas organizavam, oficinas, assembleias, recebíamos presente de artesanato, camisas dos seus encontros. Até pouco tempo atrás, eu como cacica nunca tinha encontrado com elas pessoalmente, só outras lideranças mais jovens iam aos encontros das Munduruku, era só um namoro de longe. Por fim, no ano de 2020, nos encontramos e traçamos estratégias de luta, compartilhamos a dor e o sofrimento dos nossos povos, nós como mães. Isso me marcou muito, temos muito respeito por essas guerreiras, sempre que nós precisamos, elas nos ajudam e quando elas precisaram de nós estávamos aqui pra ajudar, porque nós somos todas parentes.

Nós temos várias lutas em comum, como por exemplo a luta das mulheres guerreiras Munduruku e a nossa Borari pelo direito territorial. Outra luta em comum é contra a construção de usinas hidrelétricas no rio Tapajós. Enquanto são elas que recebem o primeiro ataque do governo no Alto Tapajós, nós sentimos também fortemente no Baixo Tapajós. Outra semelhança que notamos entre nossas lutas é a forma pela qual as mulheres conduzem o povo como liderança, elas estão na linha de frente da luta, mas a seu lado estão seus guerreiros, que as apoiam.

Eu aprendi com elas a ir lutar com mais conhecimento, porque elas são um ensinamento para nós mulheres, elas conseguem se articular muito bem, a distância não as impede de fazer a militância em suas diversas bases que são as muitas aldeias Munduruku, cujo o acesso se faz principalmente por água. São os nossos intercâmbios que nos fortalecem e nos mantêm unidos a ponto de nós nos comprometermos não só com a luta do nosso povo, mas com a luta de todos os outros povos indígenas.

 

A luta contra a COVID-19

Estamos em crise, o mundo inteiro está em crise. Como muitos de nós vivemos do turismo aqui na comunidade, nós não estávamos preparados para a pandemia. Estamos vendo a vergonha que vem sendo o sujo jogo político-partidário durante a pandemia. O governo criou um auxílio emergencial para ajudar aos mais vulneráveis, mas foi tanta burocracia que muita gente ficou de fora. Além disso, de emergencial, o auxílio não teve nada, foi uma espera sem fim para muitas famílias, que não tinham de onde tirar seu sustento. O governo enganou o povo. Do dinheiro que ele deu, no momento da retirada, quando o povo ia fazer sua compra no mercado, já estava tudo mais caro. Na verdade, se for analisar, só os ricos que se beneficiaram, ficaram mais ricos. Muitas famílias daqui tiveram que voltar para a sua roça para sobreviver, até hoje continua esse movimento.

Figura 11: Sonia Sapú Borari fazendo roçado durante a pandemia.

Foto: Damilles Borari, em  12 de julho de 2020.

 

Por esse lado, vejo como é bom que ainda tenhamos terra para plantar, temos roça para tirar a mandioca, para fazer farinha, para render no café, no almoço e na janta. Porque sabemos que muitos não têm essa sorte, ainda temos um rio para pescar um peixe, nossas árvores frutíferas. Todas essas farturas que temos hoje é por defender nosso território das mãos do governo, do branco que vem destruir nossa terra, construindo em cima de nossos rios e matas, não deixando nossa mãe respirar, matando-a numa velocidade sem fim.

Nós, povos indígenas, já vivemos o tempo inteiro as crises trazidas pelo homem branco, na defesa do território, na saúde e na educação. Imaginem agora, tendo que conviver com uma pandemia extremamente agressiva, mortal, que está levando rapidamente nossos sábios. O conhecimento do povo vai se perdendo e não sabemos quem pode pegar o vírus, que é invisível.

Figura 12: Enfermeiro Cleber Borari fazendo a capacitação dos agentes de saúde indígena Borari.

Foto: Damilles Borari, em 28 de junho de 2020.

 

No início da pandemia a nossa Associação Indígena Borari de Alter do Chão aprovou um projeto na organização Fundo Socioambiental Casa, que possibilitou a formação de agentes de saúde indígena Borari e o acompanhamento da situação das famílias no contexto da pandemia.

Figura 13: A agente de saúde indígena Francenilda Sapú Borari fazendo as visitas quinzenais de monitoramento. Ao seu lado, a indígena Ronaide Borari.

Foto: Damilles Borari.

 

Eles puderam monitorar as mulheres em suas famílias, com visitas quinzenais, com toda a preparação necessária para não haver contato com outros indígenas e nem a propagação do vírus. Eles fizeram também um levantamento socioeconômico de cada família Borari que participa da associação.

Figura 14: Mulher Sapú Borari recebendo uma cesta básica e um kit de higiene da Associação Indígena Borari de Alter do Chão.

Foto: Damilles Borari, em  30 de junho de 2020.

 

Figura 15: Franciane Sapú Borari recebendo uma cesta básica e um kit de higiene da Associação Indígena Borari de Alter do Chão.

Foto: Damilles Borari, em 30 de junho 2020.

 

Quando constatávamos casos de famílias em situação de vulnerabilidade, entregávamos às mulheres pequenas cestas básicas e continuávamos com o monitoramento. Ao detectar suspeita de contágio, passávamos a informação ao enfermeiro indígena que, por sua vez, encaminhava o caso à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Alcançamos 70 famílias com o monitoramento e 80 famílias com a doação das cestas. Aos poucos fomos enfrentando essa crise. Foi longo o trabalho em equipe, mas fomos os primeiros a implementar essa estratégia de monitoramento do seu próprio povo indígena. Nos orgulhamos de ter nossos jovens na linha de frente do combate à disseminação do coronavírus.

Figura 16: Medicina tradicional usada para beber e defumar.

Foto: Tomás Bassi, em  13 de agosto de 2019.

 

Durante a pandemia, o povo Borari também recorreu às nossas plantas medicinais, como o capim santo, erva cidreira, boldo, preciosa, folha de pião, folha de abacate, andiroba, copaíba, mel de abelha, limão, xarope de jucá e cumaru com alho e mel de abelha. A medicina tradicional foi muito procurada pela comunidade e pelo próprio branco, foi valorizada.

 

Figura 17: Cacica Neca Borari, a primeira indígena da aldeia a ser vacinada, tomando a primeira dose da vacina Coronavac. Ao seu lado, o enfermeiro da Secretaria de Saúde Especial Indígena (SESAI).

Foto: Damilles Borari, em 25 de janeiro de 2021.

 

No início deste ano, no dia 25 de janeiro, chegou um dos resultados mais esperados das lutas que realizamos em 2020, a prioridade para a vacinação contra o COVID-19 do povo Borari, como povo indígena. Foram vacinados 450 indígenas Borari em Alter do Chão. Por sermos uma aldeia polo, eu, Neca Borari, fui a primeira a dar o exemplo e a tomar a primeira dose da vacina.  No dia 15 de fevereiro tomamos a segunda dose. Nosso povo está vacinado, mas continuamos nos resguardando em casa, para que possamos seguir com saúde.

 

Ameaças que seguimos enfrentando

As ameaças ao nosso território continuam, como o crescimento da especulação imobiliária em Alter do Chão, a venda ilegal de terras, a construção de grandes prédios perto dos nossos lagos sagrados onde no seu fundo vivem nossas encantarias, desmatamento nas cabeceiras dos nossos igarapés.

Figura 18: Residencial Alter do Chão, construído às margens do rio Tapajós, em Alter do Chão.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

 

Figura 19: Foto panorâmica do Residencial Alter do Chão, às margens do rio Tapajós.

Foto: Damilles Borari, em  27 de fevereiro de 2021.

 

Figura 20: Visão desde a rua de cima da construção de prédios próximos ao Rio Tapajós.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

 

Figura 21: Visão desde a rua de baixo da construção de prédios próximos ao Rio Tapajós.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

 

Figura 22: Prédio em construção às margens do Lago Verde, área de antigo seringal do povo Borari, em Alter do Chão.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

Dou como exemplo dessas ameaças, a construção de novos espaços aqui no centro de Alter do Chão, em lugares que antes eram os nossos seringais. Aqui, ninguém precisava de papel para comprovar que era dona da terra. O branco veio e comprou terras por mixaria dos nativos que não entendiam que vender a sua mãe é ter um futuro de incertezas, de desgraças, de viver para sempre condenado a um mundo ruim. Com a venda das terras fomos perdendo muitos espaços. Hoje podemos ver de longe vários terrenos sem nenhuma árvore, em lugares onde antes eram nossos antigos seringais tem prédios em construção. A gente tem que parar e pensar: quem vai morar dentro desses prédios? Serão os ricos, porque eu mesma não vou, meus filhos também não. Eu durmo na rede, não preciso destruir grandes áreas para viver bem. Muitos indígenas até podem trabalhar na construção de um prédio desse, porque necessitam colocar comida na mesa, mas no futuro nem poderão entrar aí, nem passar na frente, porque vão ser suspeitos de roubo, porque é exatamente assim que acontece.

 

Figura 23: Área do território Borari vendida nos anos de 1980 e onde hoje está instalado o Hotel Mirante da Ilha.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

 

Figura 24: Foto panorâmica de área do território Borari vendida nos anos de 1980 e onde hoje está instalado o Hotel Mirante da Ilha, às margens do Lago Verde.

Foto: Damilles Borari, em 27 de fevereiro de 2021.

 

Eu conheço uma nativa que não se assume como indígena e que antes teve o grande privilégio de morar bem na beira do Lago Verde. Sua família morava onde hoje é o hotel Mirante da Ilha. O seu pai vendeu essa terra por tão pouco dinheiro, que nos dias de hoje ela, apesar de já ser uma senhora, teve que ir trabalhar limpando o prédio que foi construído em cima das antigas terras de seu pai. É muito triste ver um parente passando por isso. Eu sempre faço a conscientização com todos aqueles com quem possa conversar: “não vendam suas terras, defendam esse território”. Eles não veem que a construção civil é uma das maiores ameaças a essa terra.

 

Figura 25: Cacica Neca Borari na formação dos Borari no curso de direitos indígenas.

Foto: Damilles Borari, em  13 de agosto de 2019.

 

Bom, é isso. Quis deixar aqui um pouco da minha experiência de vida, do sofrimento que passamos anos após anos e da confiança que tenho que essa luta vai ter que continuar. Para vocês que são jovens, eu deixo o meu recado: vão para cima, dentro do direito, lutando e se defendendo, levantando a nossa maior bandeira de luta, que é pelo território indígena, porque o branco tá aí só pra ceifar as nossas terras. As nossas árvores quando são cortadas, derrubadas, os nossos rios contaminados, eles sagram. Todo território indígena, seja ele qual for, pede socorro. Eu estou velha, com a cara amassada de tanto explicar que nossa mãe a gente não vende.

Notas

[1]    Damilles Ribeiro Sardinha (Damilles Borari), liderança indígena, estudante do curso de graduação em antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), ex-presidente e atual segunda tesoureira da Associação Indígena Borari de Alter do Chão. Ludinéa Lobato Gonçalves Dias (Cacica Neca Borari), liderança indígena, ex-presidente e atual conselheira fiscal da Associação Indígena Borari de Alter do Chão.

[2]    Figura 1: Cacica Neca Borari na murasi, que significa festa na língua nheengatu. Foto: Tomás Bassi, em 23 de abril de 2018.

[3]    Borari significa flecha envenenada. Quando os Borari iam guerrear extraíam o curare (veneno) das costas de uma rã e o colocavam na ponta de suas flechas para matar o seu inimigo.

[4]    Sapú significa raiz na língua nheengatu.

[5]     Várzea é uma grande área de terreno fértil, baixo, que fica inundada na época de chuva e é muito utilizada pelas comunidades indígenas e ribeirinhas.

[6]     A palavra piracuí está em nheengatu. Ela é formada pela palavra “pira”, que significa peixe e a palavra “cuí”, que significa farinha. Piracuí quer dizer, portanto, farinha de peixe.

[7]     Mulher que está grávida.

[8]     São tipos de casas construídas sobre troncos de madeira. Esse tipo de casa geralmente é encontrado em áreas alagadiças, deixando a casa numa altura que a água do rio não alcança.

[9]     Seres sagrados que ganham forma humana e que têm uma beleza inexplicável, que também se manifesta muitas das vezes espiritualmente.

[10]   Tupã é uma entidade presente na cosmovisão de alguns dos povos do tronco linguístico Tupi. Na comunidade está muito presente em agradecimentos e rituais.

[11]   Trabalho tradicional coletivo tanto na agricultura como no espaço comunitário, sempre realizado com momentos de interações festivas.

[12]   Curumin: palavra em nheengatu que significa menino.

[13]   Cuiantã: palavra em nheengatu que significa menina.

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