biografia

Cleubi Cícero Torres Florentino

Autor(es): Cleobina Torres Florentino , Bianca Luiza Freire de Castro França
Biografado: Cleubi Cícero Torres Florentino
Nascimento: 28/08/1984
Morte: 05/05/2020
Povo indígena: Ticuna
Terra indígena: Comunidade Feijoal
Estado: Amazonas
Categorias:Estado, Amazonas, Biografia, Etnias, Tikuna
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Putchi’icü – Dr. Cleubi Cícero: Um exemplo de superação para os jovens Ticuna

Cleobina Torres Florentino[1]

Bianca Luiza Freire de Castro França[2]

 

Meu irmão, Cleubi Cícero Torres Florentino, nasceu em 28 de agosto de 1984, na comunidade indígena Ticuna Feijoal (Dautchitapeé) que pertence ao município de Benjamin Constant, AM. Nossos pais são Plínio André Florentino e Cleunice Augusto. Cleubi era parte do clã de galinha, seu nome indígena era Putchi’icü. Por ser o primeiro neto, nossos avós maternos que eram Cícero Ramos e Fobita Augusto Liberato, o criaram por um tempo, e por isso, ele os chamava de pai e mãe.

Cleubi foi o segundo filho de oito irmãos. Depois da morte da nossa primeira irmã, ele ocupou o papel de irmão mais velho, e por isso, sempre ajudou a cuidar dos irmãos menores para que nossos pais pudessem trabalhar na roça de onde tiravam seu sustento. Minha irmã Cleide e eu fomos, de todos os irmãos, as que ele mais cuidou como um pai.

Uma das coisas que ele mais gostava de fazer era pescar e, naquele tempo, o rio oferecia uma riqueza enorme de peixes. Foi em tempo de piracema enquanto ele cuidava da gente que, não resistindo ver os meninos da idade dele irem pescar, pegou a pequena canoa que estava na praia e colocou a Cleide e eu em um dos banquinhos do tipo canoa, amarradas, para que não caíssemos na água e ficássemos seguras. Ele armou a malhadeira e esperou os peixes caírem na rede. Nesse dia, voltamos com muitos peixes para casa.

Aos sete anos, ele começou a estudar no primário da Escola Municipal Indígena Marechal Rondon, que fica na comunidade de Feijoal. Em 1993, pensando no futuro escolar e numa vida melhor, também aprendeu a falar português e nossa mãe decidiu levar Cleubi para morar na cidade em casa de uma tia materna. Nossa mãe demonstrava essa preocupação porque a maioria de nós estudávamos somente até o 3° primário, que era a última série de formação da educação indígena na comunidade à época.

Minha mãe conta que nas reuniões feitas pelos caciques, eles sempre falavam que era preciso dar continuidade à vida nos estudos, sendo necessário sair da comunidade para continuar os estudos na cidade. A maioria dos alunos estudava até a 3° série do ensino fundamental e não avançavam, porque a continuação só se dava na cidade e muitos decidiam parar seus estudos por medo do que poderia acontecer se saíssem da aldeia.

O cacique, preocupado com o futuro, dizia aos filhos da comunidade que deveriam esforçar-se para ocupar os cargos de professores e agentes de saúde locais. À época, havia muitos conflitos porque as pessoas que trabalhavam nos cargos de agentes de saúde e professores eram não-indígenas e não sabiam falar a língua Ticuna. Os indígenas, por sua vez, não falavam português. Foi pensando nisso que o cacique queria que os estudantes saíssem da comunidade para aprender a falar português para melhor diálogo entre os Ticuna e os não-indígenas. Foi depois disso, que minha mãe deixou, aos sete anos, Cleubi morar na cidade na casa dessa tia materna. A maioria dos parentes tinha medo dos não-indígenas porque eram muito cruéis conosco em todos os sentidos, então as mães sabendo disso não mandavam seus filhos para sofrer na cidade.

Cleubi, uma vez, contou que esse tempo em que ficou na cidade foram os piores momentos de sua infância, porque precisou trabalhar para sobreviver as mazelas da sociedade preconceituosa e racista. Por dois anos ele ficou hospedado na casa da tia depois disso, resolveu fugir, porque ela o maltratava e não o deixava estudar. Ameaçava dizendo que se ele continuasse a desobedecer a ela, o deixaria com fome e ainda dizia preferir dar comida ao cachorro do que dar comida à “um preguiçoso”. Se ele não acordasse na hora que ela estipulava, jogava água fria no cantinho onde ele dormia e quando ia para a escola, em seu retorno para casa, sempre dizia que estudar era coisa de preguiçoso e que perdia tempo fazendo bobagens (até hoje essa tia pensa dessa maneira).

Quando ele fugiu da casa dessa tia, ficou o dia inteiro na rua do mercado da cidade até escurecer e foi nesse momento que uma senhora, que sempre o via acompanhado da tia, o reconheceu e o levou para casa. Essa senhora o ajudou oferendo comida e um lugar na sua cozinha. Em troca da ajuda, ele vendia curite e pastéis na feira até o meio-dia, pois depois da feira ele tinha que estar na escola. Foi nesse mesmo ano que essa senhora adoeceu e morreu.

Depois disso, sua vida piorou, porque o filho da falecida senhora mudou-se para àquela casa. Ele fazia curite e pastéis para que Cleubi vendesse e, caso todos os produtos não fossem vendidos, meu irmão não poderia ir à escola e nem mesmo comer.

Uma vez Cleubi contou que foi vender os pastéis na rua, já estava sem comer há dois dias, sentou-se embaixo de uma árvore na praça e ficou olhando para os pastéis. Com muita fome e com o corpo já sem forças, não resistiu comendo alguns pastéis e vendendo o restante. Perguntado pelo patrão sobre os demais pastéis, disse que comera devido à fome. Nesse dia, ele apanhou muito, fugindo de casa mais uma vez.

Após a fuga, os pais o procuravam sem sucesso. Por isso minha mãe cortou diálogo com essa tia mesmo Cleubi não vivendo mais com ela. Mesmo com toda a ajuda que meus pais deram durante a vida aquela tia mostrou-se muito cruel com uma criança que mal sabia se defender.

Cleubi já estava com dez anos de idade e vivia uma hora na casa de um, noutra hora na casa de outro estranho, vivendo sempre muitos conflitos. Foi com essa idade que ele foi pedir trabalho na casa da família do Baratão, conhecida por ser uma das famílias ricas à época e com fama de serem “os mais miseráveis e egoístas da cidade”. Cleubi contava que foi lá que conseguiu lidar com as pressões da vida e “aguentar muito grito à base de humilhação constantemente”. Por longos seis anos foi nesse lugar que ele ficou.

Contava que a melhor parte da vida dele era quando chegavam as férias e ele ia para a comunidade ter a vida digna de criança, brincar ao invés de trabalhar, e conseguir comer e dormir bem. Para nós irmãos menores era tão bom ver o nosso irmão chegando, porque ele nos contava muitas histórias e novidades sobre coisas que não conhecíamos. Não demorou muito para que nossa mãe também nos mandasse para a cidade junto do meu irmão para estudarmos e aprendermos a língua portuguesa. No lugar em que meu irmão estava, não fomos aceitos porque não havia espaço. Ele dormia na cozinha e guardava suas roupas numa caixa de papelão debaixo do fogão.

Aos dezesseis anos, passando em frente a um supermercado, viu uma placa em que dizia precisarem de uma pessoa para empacotar os alimentos. Resolveu entrar e assim conseguiu o trabalho de empacotador no supermercado. Foi nesse lugar que ele conheceu sua amiga Tania Alves que de colega de trabalho viria a ser amiga para a vida toda.

Cansado de morar na casa dos outros, ele conseguiu juntar dinheiro e comprar um terreno e trazer nossos pais para morar na cidade com a gente e acompanhar de perto o nosso desenvolvimento. Foi um tempo difícil de adaptação à nova cultura. Nosso pai só tinha experiência de trabalho na roça, então, mais uma vez, Cleubi tornou-se responsável pelo sustento familiar, pois somente ele estava empregado e acostumado com a vida na cidade. Todo salário que recebia investia na alimentação da família e nunca sobrava dinheiro, e ainda ficava devendo para o outro mês porque a maioria das coisas ele “pegava na conta”. Era muito magro porque nunca conseguia alimentar-se direito.

Uma vez, por não ter o que comer chegou no trabalho tremendo muito e passando mal, foi aí que o dono do supermercado e todos os colegas do trabalho ficaram sabendo de suas dificuldades. Cleubi não era de reclamar de sua vida para as pessoas, não queria ser visto como vítima de nada.

Por estar muito cansado, um dia, decidiu pedir demissão. Até esse momento ainda não havia terminado o Ensino Médio embora sempre gostasse de estudar. Ele contava que, um dia, no trabalho falou para sua amiga Tania que pediria demissão porque não fazia sentido trabalhar muito e ganhar pouco. Ele dizia que não nascera para ser qualquer coisa, queria ser médico. Foi aí que a moça deu risada incrédula e disse para ele parar de sonhar muito e cair na real: “onde já se viu um pobre que não tinha o que comer querer ser médico?”, disse ela.  Ela continuou: “Quem vai te ajudar se você não consegue nem se manter?”. Cleubi não desistiu até terminar os estudos e alcançar seus objetivos. Sempre nos dizia ter raiva da situação em que se encontrava, pois vivia com a família em uma situação de extrema pobreza. Todos diziam que esse sonho de ser médico era impossível.

Aos 18 anos alistou-se para o serviço militar onde ficou por um ano até o tempo de dar baixa do Exército. Ele queria muito ficar no Exército porque ganhava um salário melhor do que no trabalho anterior, mesmo assim, foi dispensado do serviço militar. Ele chegou muito triste em casa chorando porque sabia da vida difícil que o esperava.

No ano seguinte, passou voltou a estudar dedicando-se o ano inteiro, parando apenas um pouco para ajudar nossa mãe em casa e jogar bola à tarde. Ele viveu essa rotina dia e noite de intenso estudo para poder fazer a prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e ser aprovado no curso de Enfermagem. Meses depois, quando saiu a lista de aprovados estava entre os classificados.

Lembro que no dia anterior, ele estava muito triste no quintal, pensava sobre o que fazer caso não passasse na prova, pois a nossa situação econômica ia de mal a pior e ele sentia-se responsável por nós, não aguentava mais viver assim. O resultado foi uma surpresa! Na metade do ano de 2004, minha mãe já estava trabalhando com sete filhos para criar e o salário que ela recebia dava, muito mal, para cobrir os gastos com a alimentação da família. Quando soube da classificação de Cleubi, ficou feliz e, ao mesmo tempo, triste e preocupada, porque por mais que conseguisse o dinheiro da matrícula, não teria dinheiro para pagar a passagem e alimentação para a capital, onde deveria fazer o curso de Enfermagem na Universidade Nilton Lins.

Nessa fase de ida a Manaus, ele pode contar com sua amiga Tania que o ajudou a organizar toda documentação necessária para fazer a matrícula na universidade, ela foi de grande importância, pois nossa mãe não sabia falar português.

Cleubi e nossa mãe foram atrás de ajuda para comprar a passagem e tentar conseguir ajuda na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) com o intuito de conseguir uma bolsa para mantê-lo durante todo curso. Não conseguiram nenhuma ajuda, porque o Coordenador Geral à época disse que não era de sua competência conseguir a tal bolsa e que não era problema dele se Cleubi iria sobreviver ou não na capital, porque, afinal de contas, não fora mandado por ele a fazer tal prova do vestibular e passar sem ter condições de manter-se.

Sem ajuda de nenhum órgão oficial, mas mantendo sua fé em Deus, foi a Manaus sem nunca ter saído da comunidade e da cidade. Nesse tempo, já estava muito longe da sua zona de conforto. No barco, em sua ida para Manaus, foi roubado perdendo o pouco dinheiro que nossa mãe havia conseguido e dado para ele. Antes de chegar a Manaus, sua amiga Tania entrou em contato com uma irmã que morava na capital e essa irmã deu suporte nos primeiros anos em que Cleubi esteve lá. Esses anos não foram fáceis, porque havia um lugar para morar, mas não havia condições financeiras para o transporte. Sua casa ficava distante de onde estudava e foram muitas as dificuldades ainda assim, meu irmão prometia a si mesmo que conseguiria, com ajuda de Deus, concluir o curso.

Apesar das dificuldades impostas pelas condições sociais e culturais, ele nunca quis desistir e nem quis ser “vítima” de situação alguma. Ele estava disposto a superar-se mesmo não sabendo se realmente conseguiria concluir o curso. Cleubi contava que foi nesse tempo, na universidade, que o vigilante de uma empresa que trabalhava em frente à mesma faculdade, via-o vagar pelas ruas próximas e chamou-o oferecendo a garagem e um pouco de comida que levava para o trabalho. Compartilhava o pouco que tinha com Cleubi durante os anos em que trabalhou na empresa.

No 5° período de Enfermagem Cleubi resolveu tentar o vestibular para Medicina, na Escola Superior de Ciências da Saúde na Universidade do Estado do Amazonas (ESA/UEA) e, a partir de seus esforços, foi aprovado. Nossa família ficou muito feliz e, ao mesmo tempo, ele continuava muito triste, porque era um curso em que a maioria dos alunos era de filhos de pessoas ricas, sendo ele o mais pobre da turma. Durante o curso de Medicina, encontrou um jeito de ganhar dinheiro para manter-se: dava aulas de reforço para os colegas do curso que não conseguiam entender os conteúdos das disciplinas e, também, fazia os trabalhos dos colegas. Com o dinheiro que ganhava conseguia pagar o transporte e alguns materiais didáticos. Até esse momento, a amiga Tania já havia se mudado para capital e de alguma forma ajudava-o no pouco que podia. Ele contava que passou muita fome e ela, a amiga, sempre o socorria oferecendo um prato de comida. Por morar longe, era difícil se encontrarem e, mesmo que ela o chamasse para morar com ela, Cleubi não iria, porque a casa ficava muito longe da faculdade.

Devido a ele estar cursando dois cursos superiores (Enfermagem e Medicina) ele quase não dormia. Trabalhava e mal se alimentava usando o dinheiro que conseguia para manter-se na universidade e comprar duas cartelas de ovos, que era o que ele tinha para comer apenas uma vez no dia, e beber muita água para esquecer a fome. Um dia adoeceu, indo parar no hospital quase morrendo. Ele nunca contou sobre esse episódio quando nossa mãe o telefonava. Nossa família soube muito tempo depois. Quando o vigilante que o ajudava saiu da empresa, sua amiga Tania se mudou para Manaus e o chamou para morar com a família dela.

Quando completou cinco anos que estava em Manaus, nosso tio paterno Esaú André Augustinho Florentino, candidatou-se a vereador e conseguiu ser eleito. Cleubi, então, pediu ajuda para o tio Esaú de modo a concluir, pelo menos, o curso de Enfermagem, prometendo que ao terminar pagaria tudo o que gastaria com ele.

Em 2010 formou-se em Enfermagem na Universidade Nilton Lins, mas continuou em Manaus para terminar o curso de Medicina e assim voltar para a comunidade Feijoal. Até esse momento ninguém acreditava que ele iria voltar formado. Ele tinha uma fé incrível e acabou realizando o sonho de ser médico. Um detalhe importante está em que as pessoas, sempre diziam, que ele nunca seria médico, pelas condições em que ele se encontrava, mas essas palavras ao invés de desencorajá-lo, serviam de impulso para não desistir.

Faltavam três anos para ele concluir a faculdade de medicina quando nossa mãe, que trabalhava como gari nas ruas da cidade onde morava, enviando a metade do salário para ele, resolveu se separar do nosso pai, que havia voltado para a comunidade Feijoal para trabalhar na escola como Auxiliar de Serviços Gerais. Cleubi, sabendo da separação, ligou chorando muito e disse que iria largar o curso de Medicina e voltar para casa, mas depois de muita conversa desistiu da ideia e assim continuou ficando muito tempo sem visitar a família por falta de dinheiro.

Nesse período, conheceu Christiane que, mais tarde, viria a ser sua esposa. Ao conhecê-la, a vida dele em Manaus, começava a melhorar em relação à moradia e alimentação. Passou por muitas dificuldades para ser aceito na família da moça por ser indígena, pois a família não o aceitava e a mãe de Christiane dizia que ele “não tinha nada a oferecer à sua filha”. Cleubi tentou se afastar, mas sua futura esposa o seguia e não o deixava. No intuito de afastá-lo, a mãe da moça mandou prender Cleubi. Christiane insistiu muito e, um ano depois, engravidou do primeiro filho, Leonardo. Daí em diante, não havia mais como negarem o relacionamento dos dois e eles, finalmente, ficaram juntos.

Nessa época, Cleubi teve problemas na universidade, pois precisava trabalhar dobrado para sustentar a mulher e o filho, havia, ainda, dois anos para concluir o curso de medicina. Esses dois anos pareciam eternos e nesse período várias complicações surgiram na família: o nosso tio materno Anjo Augusto Torres foi baleado e quase morreu; nesse mesmo ano o nosso avô, que o criou, infartou e nossa tia Lídia Gabriel Fernandes, esposa do tio Anjo que era a tia que Cleubi mais amava, acabou morrendo.

Os dois anos restantes do curso passaram e depois de muito tempo nossa família pode rever Cleubi no período em que cursou o estágio rural, última disciplina que o curso de medicina exigia. Ao chegar, foi muito bem recebido pela nossa família e pelas pessoas que conheciam a sua história de vida e luta. Na verdade, quase ninguém acreditava que ele conseguiria chegar nesse último estágio. Todos na cidade parabenizavam nossa mãe, cheia de orgulho por ter um médico na família. Nesse momento, nossa mãe já havia voltado para Tabatinga (AM) e levado todos os filhos para morar com ela, recomeçando a vida em um novo relacionamento com uma pessoa com quem está até os dias de hoje. Ela sabia que depois que Cleubi se formasse a vida da família mudaria para sempre.

A notícia da chegada de Cleubi na cidade espalhou-se rapidamente. Até o cacique ficou sabendo e chamou-o para ir à comunidade Feijoal, para que no mesmo dia de sua chegada discursasse para toda a população presente. Também levaram alguns doentes para consulta com o Dr. Cleubi. Os que iam ainda pareciam incrédulos que o médico era um Ticuna.

As reuniões da comunidade, agora, eram mais frequentes e sempre colocavam Cleubi como exemplo de superação em todos os sentidos. Desde então houve um aumento da motivação para os jovens saírem da comunidade e cursarem as licenciaturas indígenas e outros cursos.

Houve um tempo em que a FUNAI convocava reuniões falando aos jovens para sair das comunidades e seguirem o exemplo de Cleubi, que se eles saíssem teriam ajuda assim como foi com ele. Falavam que foi graças a ajuda da instituição que ele havia conseguido. Cleubi ficou muito furioso com isso porque nosso tio materno, na verdade, primo de nossa mãe, Davi Cecílio Félix que na época era o Coordenador Geral do Amazonas na cidade de Tabatinga (AM), nunca lhe deu ajuda todas às vezes que foi pedir. Ele sempre dizia que não tinha e não podia ajudar porque não foi mandado por ele que Cleubi fosse estudar, “se não tinha condições, por que foi?”.

Passando alguns meses Cleubi retornou para a capital para concluir o curso, dessa vez faltando apenas alguns meses para ser o primeiro médico indígena Ticuna formado numa universidade pública do Amazonas.

Em 10 de janeiro de 2014, formou-se em medicina pela ESA/UEA. No dia da colação do grau, nossa mãe não pode participar devido às condições financeiras que não permitiram chegar até a capital. Antes de começar a cerimônia Cleubi ligou para ela que ficou muito feliz pela conquista do filho.

No ano seguinte, regressou à cidade natal e trouxe consigo a esposa e o filho para morarem ali. Por ser obrigatório passar, pelo menos um ano, no serviço militar como médico, entrou nas forças armadas como Aspirante. Logo depois subiu de cargo ficando como Segundo Tenente do Hospital Militar do Amazonas (HGUT).

No primeiro ano que ele começou a trabalhar no Hospital Militar Cleubi foi motivo de muita alegria e estranhamento porque as pessoas ficavam assustadas quando descobriam que o médico que lhes atendia era indígena. O estranhamento era ainda maior quando eram os próprios Ticuna, ficavam muito surpresos e desacreditados porque até aquele momento nunca tinham visto um médico indígena. Nesse hospital também trabalhava uma tia nossa, de nome Ofélia, prima do nosso pai que era técnica de enfermagem, nos atendimentos servia como intérprete para aqueles que não entendiam e não sabiam falar português.

Logo o primeiro médico Ticuna do HGUT ficou muito conhecido pela cidade e nos dias de consultas era muito disputado pelas pessoas da região e, com o tempo, ganhou um Honoris Causa da diretoria do hospital. No primeiro salário do ano, lembro que ele foi bem cedinho à casa da minha mãe e a casinha onde eu morava. Disse que nesse dia não era para fazer nada para o almoço e sim esperarmos ele na casa em que ele morava. Quando chegou o horário marcado por ele, já estávamos todos em sua casa aguardando a saída do trabalho. Ele chegou com dois carrinhos de mercado cheio de alimentos de todo tipo que podíamos imaginar (nós nunca tivemos muito para comer). Nesse dia, minha mãe chorou muito emocionada, porque ele um dia havia dito que minha mãe iria ter uma vida melhor depois que ele se formasse como médico. E foi mesmo. Esse foi um dia maravilhoso, o mais feliz de nossos dias.

Sua vontade era de voltar para a sua pequena comunidade e atuar na área da saúde cuidando dos parentes. Não houve um acordo em relação ao salário que queriam pagar, pois o salário era inferior aos demais profissionais que atuavam na comunidade.

No mesmo ano, o prefeito da cidade o contratou para trabalhar num posto de saúde. Desde o dia em que começou atuar na área, as pessoas admiravam-se e gostavam muito de seu trabalho e do modo que ele atendia aos pacientes. A consulta com ele era muito disputada pela população de Tabatinga (AM). Logo a notícia do médico Ticuna causou estranhamento e inveja por parte de alguns colegas de trabalho, alguns não acreditavam na qualidade de seu trabalho, mas a população sempre o procurava.

Dois anos depois, ele pediu demissão do Hospital Militar e foi trabalhar na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde ocorreu o primeiro falecimento de paciente em um plantão de Cleubi. Nesse dia, ele chegou em casa aos prantos e desesperado, pois antes do óbito acontecer a filha do paciente havia pedido que não deixassem seu pai morrer. Essa morte o impactou tanto que nesse dia Cleubi precisou tomar remédios para dormir.

Meu irmão gostava muito de festejar e estar ao lado de todos os irmãos. Pergunto-me sempre se ele sentia que sua vida não seria longa. Nas festas, ele parecia uma criança, batia palmas como se fosse o aniversariante da festa, dava cambalhotas, dançava muito e a criançada se divertia muito com essas estrepolias. Ele encomendava um monte de guloseimas de criança. Tudo era motivo de festa. Quem sabe se era porque nós nunca tivemos condições de ter esses luxos e que por isso ele alimentava esse sonho de criança?

Todos os finais de semana quando não íamos à sua casa, ele inventava que meu pai, que na época já morava com ele, estava doente e precisava de nossa ajuda para cuidá-lo. Então íamos na sua casa e nos reuníamos em família e, muitas vezes, essas reuniões terminavam com alguns dos irmãos chateados com algumas brincadeiras sem graça, afinal não somos perfeitos.

Os anos foram passando e as pessoas da comunidade Feijoal como, por exemplo, o cacique e as lideranças, passaram a frequentar a casa de Cleubi e discutir alguns assuntos relacionados às questões da comunidade e inclusive a uma possível candidatura de Cleubi a prefeito. Ele não aceitava a proposta porque sempre dizia que já estava feliz com a profissão que exercia.

Como a maioria das lideranças da comunidade eram nossos parentes, quase todas as semanas eles estavam na casa dele, debatendo questões pertinentes à comunidade Feijoal como, por exemplo, a forma como os estudantes poderiam sair da comunidade, já que a maioria das famílias não teria condições para manter um filho na cidade.

Cleubi dizia que se eles fossem para Manaus teriam apoio em uma casa de estudantes que havia sido reivindicada pelos alunos quando ele ainda estava na capital. A reivindicação foi feita através de alguns parlamentares à época pedindo para incluir no projeto dos vereadores do município a ajuda aos alunos indígenas.

As maiores felicidades de Cleubi eram sua profissão, a família e jogar futebol. Todo ano, quando havia competição entre os bairros, ele patrocinava os jogadores do bairro em que morava nossa mãe. Competiam com os melhores jogadores dos bairros de Tabatinga (AM) e seu time nunca vencia, fazia isso só por diversão. Quando não estava trabalhando, estava jogando bola e passando o tempo em família. Quando se cansava de estar na cidade arrastava a família para visitar os parentes na comunidade e aproveitava para pescar.

Um dia, ele nos disse precisar fazer uma viagem com urgência a Manaus e ficaria fora da cidade por um mês (ele estava de férias) e quando retornou, chegou sozinho e muito triste sem a sua esposa e seus filhos. A sua esposa o havia deixado porque ela não queria ficar morando no interior de Manaus e não havia se acostumado e, por isso, não iria retornar. A separação durou algum tempo ela, então, retornou com os filhos e tudo ficou bem. Nesse mesmo ano eles oficializaram a união depois de onze anos de vida a dois. Anos após a celebração de seu casamento, nasceu o terceiro filho, Ícaro Gabriel, para completar a felicidade do casal.

Um ano depois da turbulência no casamento, ele precisou ir para Manaus resolver alguns problemas pessoais, aproveitando para fazer alguns exames de rotina, pois havia algum tempo que se queixava de dores no abdômen. Como resultado descobriu sérios problemas renais. Daí em diante começava a luta para reestabelecer sua saúde.

De volta a Tabatinga (AM), precisou pedir afastamento do trabalho por alguns meses e precisou voltar para a capital para cuidar de sua saúde, pois depois que soube da doença seu quadro parecia piorar. Cansado do tratamento, pediu ao seu nefrologista para continuar com os cuidados em casa, já que, como médico poderia manipular as doses diárias de cada remédio. O médico, então, concedeu a permissão e, assim, ele voltou à cidade de Tabatinga (AM) e pode ser acompanhado por outros médicos locais.

Estando em casa, houve uma melhora considerável em sua saúde, ele voltou a trabalhar, normalmente, no posto e no hospital. Ele parecia muito feliz e bem fisicamente. Se enquanto estava bem de saúde nos queria por perto, quando a saúde estava debilitada nos queria mais perto ainda. Ele era alegre e, de repente, a sua alegria estava se ofuscando. Ficava irritado e sem paciência. Ele, como médico, era um excelente médico, mas como paciente, não.

Por não retornar a Manaus para a sua consulta e se automedicar com frequência, ele acabou ficando com diabetes e hipertensão. Cada ano que passava ficava mais difícil vê-lo naquela situação tão doente. Logo ele que lutou tanto por seus sonhos, a dificuldade da batalha contra suas doenças era a mais terrível de acompanhar, porque a cada dia, ele definhava e nós não podíamos fazer nada por mais que quiséssemos ajudar ou aliviar a dor que ele sentia todas as tardes e de madrugada. Mesmo assim, ele não queria parar de trabalhar e ajudar quem precisasse dele, tanto que a maioria de seus pacientes pensavam que ele não estava doente.

Cleubi foi uma pessoa que nunca quis parecer fraca e ser visto como “coitado”, odiava se vitimizar. Um dia, cheguei a seu lado e disse: “gostaria que você fosse meu padrinho de formatura”, ele olhou para mim e não falou nada. No dia da formatura lá estava ele e sua esposa prestigiando o mais importante momento da minha vida escolar (ele estava com o rosto e os pés muito inchados). Ele foi quem sempre me apoiou. Toda vez que parecia que não ia conseguir, pensava em Deus e no meu irmão e como ele vencera obstáculos maiores e não se limitou a nada. Nós, da família, tínhamos muita esperança de vê-lo vivendo por muitos anos, por um transplante de rim que seria doado por sua esposa.

Veio a pandemia de COVID-19 em 2020. Não havia, ainda, informação correta sobre a doença, tratamentos ou vacina. Era algo, até então, desconhecido pela maioria das pessoas e havia medo generalizado. Foi nesse período que nossa família pensou em voltar para a comunidade Feijoal, na tentativa de salvá-lo da ameaça da Covid-19. Para tal, ele teria que parar de trabalhar e, mesmo com todo o risco, ele se recusava a deixar de atender seus pacientes. Somente com o aumento do número de mortes pela doença Cleubi pediu para se afastar e ficar em casa, porém, o pedido foi tardio e ele já havia contraído a COVID-19.

Após esse episódio, começava uma correria em sua casa para ajudarmos a esposa a cuidar dele e de seus filhos que ainda eram pequenos. Chegávamos de manhã e voltávamos à noite para descansar e no outro dia começávamos tudo outra vez. Ele sempre nos dizia que iria morrer. Não demonstrávamos no momento, mas em casa era uma tristeza total, não queríamos aceitar isso. Foi o que aconteceu.

Na manhã de quarta-feira, dia 28 de abril de 2020, a família recebeu uma última ligação perguntando se não iriamos à casa de Cleubi. Naquele dia, fomos mais tarde. Tivemos um último almoço com tudo que ele gostava de comer, porém, Cleubi não tocava em nada no prato. Depois do almoço ficamos sentados numa cadeira de balanço enquanto ele estava deitado ao nosso lado na rede. Ele disse que queria que minha mãe procurasse piolho no cabelo (nós fazemos isso quando queremos um cafuné ou carinho de nossa mãe). Minha mãe aproveitou e perguntou por que ele não havia comido nada e ele falou que não sentia fome e que suas forças já estavam esgotadas e que já estava cansado de sofrer. Lembrou que desde que nasceu sua vida parecia ser só sofrimento. Choramos muito, nesse dia. Dias depois, contraímos a Covid-19 e não conseguimos mais cuidar dele. Foi nesse meio tempo em que, numa noite, sua esposa ligou e disse que ele passara mal e estava na UTI do Hospital Militar. Sem muitas forças não pudemos fazer mais nada por ele.

Passando um dia na UTI do Hospital Militar, no dia seguinte, transferiram-no para Manaus. Foi na madrugada do dia 5 de maio de 2020 que nossa família recebeu um telefonema às 2h da manhã, informando que o primeiro médico Ticuna havia perdido sua batalha contra as complicações deixadas pela Covid19. Era paciente de risco para a doença por ser paciente renal, diabético e hipertenso. O dia 5 de maio foi a data em que Cleubi Cícero Torres Florentino, meu irmão, descansou de toda sua luta e sofrimento nesse mundo.

Fizeram notas de falecimento e homenagem para Cleubi no Conselho Regional de Medicina do Estado do Amazonas (CREMAM) e no site do Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)[3].

A história de superação de Cleubi é contada em biografia e homenagem feita por mim, Cleobina Torres Florentino com auxílio da historiadora Bianca França, na esperança de que o exemplo de Cleubi persista entre os jovens Ticuna e os indígenas de todo o Brasil.

 

Narrativas orais indígenas textualizadas por pesquisadores não-indígenas: a construção biográfica de Cleubi Torres Florentino

No dia 24 de julho de 2023 recebi uma mensagem, pela rede social Facebook, da professora Cleobina Torres Florentino. Não lembro quando começamos a amizade pela rede social, mas sei que temos dezessete amigos em comum, todos do povo Ticuna, ao qual Cleobina faz parte. Trabalhei com pesquisa sobre coleções Ticuna do Museu Nacional durante minha graduação e mestrado e durante a pesquisa fiz alguns amigos.

Cleobina começou uma conversa contando-me um pouco sobre sua vida, que era aluna do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND), do Museu Nacional/UFRJ. Que tinha muita vontade de escrever textos e artigos como eu faço, mas que tinha dificuldades com a palavra escrita e, por isso, não conseguia “escrever bem”. Expliquei para minha nova amiga que o processo de escrita passa pelo exercício da repetição e da leitura. Ninguém nasce sabendo e aprendemos ao longo da vida, e que nem sempre acertamos a mão com as palavras escritas.

Ela me contou algumas coisas pessoais, dentre elas, que havia perdido um irmão muito querido durante a pandemia de Covid-19, logo no começo, no ano de 2020. Minha surpresa maior foi saber que Cleobina era irmã do médico Cleubi Cícero Torres Florentino. Desde 2018 participo da equipe do projeto de biografias indígenas Os Brasis e suas memórias, coordenado pelo Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira. Sou responsável por receber dos editores chefes as biografias e postar no site do projeto. Logo no começo da pandemia de Covid-19, no meio do mês de maio do ano de 2020, recebi um texto biografia/obituário para publicar no site informando sobre a morte do primeiro médico Ticuna Cleubi, que havia sido vitimado pela doença. Á época, eu me recuperava da Covid-19, pois me contaminei com o vírus logo no começo de abril, e fiquei muito sensibilizada com o obituário do jovem médico Ticuna.

Contei para Cleobina que eu havia publicado a notícia da morte do irmão dela no site do projeto Os Brasis e suas memórias, e ela me contou que não sabia do projeto, não conhecia o site. Eu enviei o endereço do site para Cleobina com a notícia da morte do irmão dela e após conversarmos muito sobre a vida e morte de Cleubi, tivemos a ideia de tentar escrever uma biografia para ele a fim de homenageá-lo próximo ao seu aniversário, em 28 de agosto.

Cleobina advertiu-me que não tinha intimidade com a escrita e que precisaria da minha ajuda. Mesmo sendo professora e mestranda em linguística afirmou que se dava melhor com a palavra falada do que a palavra escrita. Eu, prontamente, me ofereci para ajudá-la no que fosse possível. Foi, então, que trocamos números de telefone e por mensagens pelo aplicativo Whatsapp começamos o trabalho de escrita da biografia do irmão de Cleobina.

No dia seguinte, 25 de julho, fizemos uma pequena reunião por chamada de vídeo para combinarmos a forma como iríamos levantar e registrar a vida do irmão de Cleobina. Decidimos que a biografia de Cleubi seria o primeiro exercício de escrita de Cleobina, para estimulá-la na construção de uma escrita indígena da biografia de um indígena Ticuna.

Dividimos a escrita em alguns pontos principais: 1. A trajetória de vida de Cleubi; 2. A importância da formação de Cleubi como primeiro médico Ticuna; 3. O impacto da atuação médica de Cleubi em sua comunidade e o falecimento dele. Combinamos que Cleobina iria fazer um exercício de escrita sobre a vida do irmão, escrevendo o máximo que pudesse e tudo o que se lembrava. No dia 02 de agosto Cleobina me enviou por e-mail a primeira versão do texto sobre a trajetória de seu irmão, com quatorze páginas. Também, enviou-me várias fotos de Cleubi, que após editadas por mim para melhora de ângulos e resolução, ilustram a biografia.

Minha parte no trabalho foi organizar os fatos contados por Cleobina, de forma que fosse possível criar um fio narrativo, ao mesmo tempo em que organizavam-se os fatos da vida de Cleubi. A ilusão biográfica (BOURDIEU, 1986) faz com que criemos uma espécie de ficção para unificar e direcionar a atribuição de sentidos e a busca de coerência aos acontecimentos considerados significativos em uma história de vida. A construção de histórias de vida é uma tentativa de desenvolver de forma lógica e cronológica o sentido de uma trajetória como um conjunto de eventos de uma existência individual. É um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma intenção objetiva e subjetiva de um projeto (BOURDIEU, 1986, p. 69). Outro trabalho que tentei fazer da melhor forma possível foi corrigir possíveis erros de gramática e ortografia.

O texto inicial misturava partes de uma narrativa em primeira pessoa e partes da escrita de um conto. Cleobina contava a história do irmão como quem narrava as aventuras de um herói épico. Seu herói era o irmão Cleubi, que havia vencido muitas lutas e, infelizmente, perdido a batalha contra o Covid-19.

No Brasil, é comum a publicação escrita de lendas e mitos indígenas, transcritas por parte de autores não-indígenas, desde viajantes europeus dos séculos XVIII e XIX, até antropólogos, historiadores e demais pesquisadores contemporâneos. A maioria desses textos trazem transcrições e recriações das narrativas orais, o que nos permite observar diferenças entre a forma escrita e a forma oral da narrativa.

Segundou Souza (2006), a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil, principalmente nos grafismos feitos na cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestarias e pintura corporal. O grafismo é a escrita indígena. Porém, a escrita alfabética, registrando a fala e o som em papel, foi introduzida no Brasil pela colonização europeia desde o século XVI e está presente de formas variadas nas comunidades indígenas. Porém, foi apenas nas duas últimas décadas, no começo do século XXI, que surgiu o fenômeno da escrita indígena, no sentido do aparecimento de textos escritos com autoria indígena.

Para Souza (2006), embora haja muitos relatos da percepção entre as comunidades indígenas da importância da escrita, é nesse período do começo dos anos 2000, que a escrita começou a ser vista de fato como uma ferramenta importante para o resgate e preservação de culturas e identidades.

A Constituição de 1988, reconhece a existência das línguas indígenas no Brasil, segundo o Censo de 2022 existe no país 274 línguas indígenas. E é através da Constituição que é aberto caminho para a educação bilíngue indígena, com o surgimento dos monitores/professores bilíngues indígenas, que é o caso de Cleobina, o que leva a criação da instituição “Escola Indígena”. A escola indígena reforça o esforço dessas comunidades indígenas para recuperação e preservação de suas culturas e tradições, muito embora as comunidades indígenas sempre tivessem meios próprios de transmissão de sua tradição pela oralidade.

Na tradição oral, como a dos povos indígenas, a narrativa é diferente do ato de escrever e ler um texto. Contar uma narrativa para um grupo de pessoas implica em uma performance, em um ato social complexo e dinâmico. Exige do narrador, além de técnicas de contação de histórias adquiridas ao longo de sua vida, a interação com uma “plateia” que reage a história contada. Quando um autor/pesquisador não-indígena escreve, registra no papel, narrativas indígenas, ele deixa de fora do texto toda a complexidade do processo performático da narrativa oral.

Por isso, é possível apontar um contraste entre escrever e transcrever uma narrativa, pois transcrever significa que o autor tenta passar para a escrita o máximo de características orais, enquanto escrever significa registrar no papel as informações consideradas relevantes pelo pesquisador.

Ao escrever uma narrativa indígena, muitas vezes estamos apenas escrevendo e não transcrevendo, deixamos de fora a complexidade, sofisticação, emoções e toda a dinâmica social do relato oral. Reduzimos a narrativa oral a apenas um enredo, perdendo a performance da tradição oral indígena e fazendo com que esse relato performático se torne apenas um produto escrito. Há uma enorme diferença entre quando um indígena escreve uma biografia sobre outro indígena e quando um pesquisador não-indígena escreve uma biografia sobre um indígena. O texto de Cleobina possui um narrador em primeira pessoa: uma professora, mulher indígena Ticuna e irmã de Cleubi produzindo fontes primárias sobre a trajetória de vida do irmão falecido a partir de suas memórias e emoções.

A autoria da escrita indígena também é uma questão importante, pois uma narrativa oral é vista como algo pertencente ao grupo, sendo uma propriedade coletiva da comunidade. É algo que é passado e apreendido através da memória por gerações. Por isso, Cleobina, muitas vezes, falou-me da importância de contar a história de seu irmão como um exemplo para os jovens Ticuna, para que a memória da vida do médico Ticuna não se perca. A autoria de Cleobina, também, torna-se a autoria do povo Ticuna reivindicando a lembrança da figura de Cleubi, que foi o primeiro médico indígena dessa etnia.

O ordenamento dos eventos, na narrativa indígena, segundo Tonkin (1992) é feito de acordo com a experiência de vida do sujeito, porém, esse sujeito da experiência, explícito na narrativa ou não, é mais do que um sujeito individual, se torna um sujeito coletivo, um sujeito social (BHABHA, 1995).

O sujeito social não deixa de ser um indivíduo, mas reflete o processo de formação de identidades em sua cultura, onde a dinâmica individual-social é diferente do sujeito individual ocidental. Nas culturas indígenas, o sujeito é visto a partir de suas relações com a comunidade, não só de uma forma individualista. E é a partir desse olhar de preservar a memória do sujeito-social para o seu coletivo, o povo Ticuna, que contribuí para a escrita da biografia de Cleubi Cícero Torres Florentino por sua irmã a professora Cleobina.

 

Referências

BRASIL. Censo Demográfico Brasileiro. IBGE, 2022

BHABHA, H.K. “Freedoms Basis in the Indeterminate”. In: RAJCHMAN, J. (ed) The Identity in Question, Routledge, New York, 1995

BOURDIEU, Pierre. L’ iIIusion biographique. Clés de la. Recherche en Sciences Sociales. Vols. 62/63, p. 69-72, Juin 1986. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1185/mod_resource/content/1/Bourdieu%20-%20A%20Ilus%C3%A3o%20Bibliogr%C3%A1fica.pdf. Acesso em: 11 de agosto de 2023

SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Uma outra história, a escrita indígena no Brasil. Instituto Sociambiental, 2006. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Uma_outra_hist%C3%B3ria,_a_escrita_ind%C3%ADgena_no_Brasil. Acesso em: 11 de agosto de 2023

TONKIN, Elizabeth. Narrating Our Pasts. The Social Construction of Oral History. Cambridge, U.K., Cam- bridge University Press, 1992

 

NOTAS

[1] Irmã de Cleubi Cícero, licenciada em língua portuguesa e espanhola (UFAM). Professora da Secretaria de Ensino do Estado do Amazonas e mestranda do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND – Museu Nacional/ UFRJ). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4405438837934172. Email: cleotorresflorentino@gmail.com

[2] Historiadora. Doutoranda em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC/CPDOC – FGV). Mestre em Preservação de Acervos de C&T (PPACT/MAST), especialista em Sociologia (UCAM) e especialista em Docência Básica (IFMG/Arcos). Lattes: http://lattes.cnpq.br/6965076686458954. Email: bianca.castro.franca@gmail.com

[3] A nota de pesar pode ser acessa em: https://sis.sig.uema.br/sigaa/public/programa/noticias_desc.jsf?lc=pt_BR&id=936&noticia=10676753. Acesso em: 29 de julho de 2023

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