biografia

Dona Nivalda

Autor(es): Aline Moreira Magalhães
Biografado: Dona Nivalda
Povo indígena: Tupinambá
Terra indígena: Olivença
Estado: Bahia
Categorias:Estado, Bahia, Biografia, Etnias, Tupinambá
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Dona Nivalda e o relicário da memória Tupinambá

Aline Moreira Magalhães

Eles não sabiam que eram índios – dizia Dona Nivalda, assim, na terceira pessoa, se referindo principalmente aos moradores das comunidades interioranas à Olivença, os que tinham um tom de pele mais avermelhado. Nessas mesmas comunidades ela, Dona Nivalda, iniciou um trabalho junto à Pastoral da Criança[i], em 1986, de prevenção da saúde infantil. Suas atividades consistiam em pesar as crianças e informar às mães sobre como deveria ser a alimentação dos seus filhos, ensiná-las formas de prevenir e curar doenças, bem como acompanhar o crescimento das crianças. Essas atividades eram feitas durante um almoço, chamado de Celebração da Vida, preparado pelas voluntárias da Pastoral, encerrado com a marcação de uma data para a próxima pesagem das crianças.

Dona Nivalda morou sua vida inteira na vila, em Olivença, na casa onde sua avó Ester a criou com seus demais irmãos, localizada tão próxima ao centro que dava para avistar a praça, o parquinho para crianças e a Igreja da porta de sua casa. A mesma casa que, em 2013, foi alvo de ataque e incendiada, em meio a conflitos em torno do avanço da luta tupinambá pela demarcação de suas terras –  ao que Dona Nivalda perdeu a maior parte de seus pertences, roupas, móveis, objetos pessoais[ii]. Em frente, na calçada, resistiu uma pedra que pesava não menos de trezentos quilos. Se tratava de um exemplar das muitas pedras que eram carregadas, segundo sua avó Ester, por ombros e braços indígenas durante a construção do aldeamento Nossa Senhora de Escada, que posteriormente, com a expulsão dos jesuítas, receberia o nome de Olivença.

Alguns morriam durante a empreitada. Essa, especificamente, foi carregada pelo tataravô de Ester por nove quilômetros, para a construção da Igreja. Quando ela morreu, em 1975, mandou trazer a pedra para a porta de sua casa, e fez seus netos prometerem deixarem-na ali, como lembrança para seus bisnetos e para quem mais viesse depois disso, porque aquilo era um marco – dizia Nivalda.

Sua mãe falecera com os filhos ainda crianças, a partir de então seu pai passou a orientar-se ao seu novo casamento, por isso Dona Ester assumiu o cuidado com os netos. Dona Nivalda e seus irmãos revezavam entre a lida em uma roça próxima, e os estudos durante a semana com sua avó, aprendendo a ler. Dona Ester era uma índia valente, nos dizeres de sua neta, porque assumiu já idosa os cuidados plenos com crianças que não havia gerado, e sobretudo por ter enfrentado a elite de Olivença.

Sua casa era de taipa – construção em madeira, bambu, cipó e barro – das poucas ainda existentes à época depois de um longo processo de expulsão dos indígenas da vila urbana, que iam fundando comunidades rurais adentro. A boa colheita da piaçava na região, do cacau, e a praia, começavam a render muitos lucros e atrair compradores de terras, que, junto aos já donos de terras, pressionavam moradores a vender suas casas e terras valendo-se das estratégias disponíveis. Uma delas consistiu na emissão na década de 1920, de uma ordem administrativa por parte da Câmara da vila de Olivença, para proibir a construção de casas de taipa com cobertura de palha. Conforme as casas de taipa se desmanchassem, o que ocorre naturalmente com esse tipo de construção caso não haja manutenções de tempo em tempo, já não seria permitido reconstruí-las, senão de tijolos. Assim, quem não pudesse por qualquer motivo construir uma nova casa, seria removido, e todas as casas da vila seriam futuramente de alvenaria. Expulsando seus moradores, ficavam em seu lugar arquiteturas e grupos sociais compatíveis ao projeto de transformação da orla litorânea em balneário turístico, desejado pela elite local. Queriam ver destruída a casa e que sua avó saísse de lá, que caísse a casa para não fazer mais, dizia Nivalda.

Daqui eu só saio para o cemitério – Ester avisou a quem tivesse ouvindo e aos seus netos e netas. Pediu, então, ajuda para alguns índios conhecidos seus da aldeia do Campo de São Pedro, uma das comunidades adentro de Olivença. Todas as noites os índios construíam, silenciosamente, sua nova casa de taipa, para que ela não precisasse sair daquele lugar. Quando eles, os coronéis e administradores, foram se dar conta, a casa já estava reconstruída. Os ajudantes de Ester construíram, em sigilo, a nova casa dentro da velha – fizeram a estrutura de madeira, a tapagem de barro e a cobriram de palha. Os administradores reagiram estupefatos diante da descoberta sobre a reconstrução da casa de taipa dizendo à Ester o quanto era ousada. Ela continuava respondendo que não sairia dali.

Comprar comida e cachaça poderia custar o teto onde se morava também. Os comerciantes aceitavam em seus estabelecimentos a acumulação de dívidas por parte dos compradores, a promessa de um pagamento futuro. A dívida poderia esperar chegar ao preço de um imóvel até ser cobrada, então os moradores endividados recebiam um papel para eles colocarem o dedão. O dedão era uma letra – dizia Nivalda – para endividados que não poderiam ler o que se estava marcando, tampouco dimensionar a ordem imperativa que essa marca acarretaria. Tão logo chegava alguém para medir o terreno e avaliar o imóvel. Tão logo chegava uma ordem de despejo porque o dinheiro que se tinha não alcançava o montante da dívida. E assim ficaram com tudo, os invasores de Olivença, os coronéis recém-chegados, desse jeito – explicava.

Um desses coronéis, porém, marcou a memória de Nivalda, a quem ela atribuía a insígnia histórica de primeiro cacique Tupinambá. Compartilhava com ele um de seus sobrenomes, Amaral. E também era filho de uma índia, chamada Ana de tal, assim como Dona Nivalda. Se tratava de Manoel Nonato do Amaral, que se descreveu à polícia como alfabetizado, residente de Olivença, de cor parda, 45 anos e lavrador. Ele fora acusado e preso durante alguns anos por um crime político que ficou conhecido como hecatombe de Olivença, em 1904, por ocasião de uma das primeiras eleições da fase republicana no Brasil[iii]. Sete corpos mutilados foram estirados na porta da sacristia da Igreja de Olivença, segundo o inquérito policial, onze mortos espancados segundo Dona Nivalda. Isso ocorreu depois que Paulino, o candidato apoiado por Adami Sá, um dos maiores latifundiários e proprietários de escravos de Ilhéus, que perpetuava a concentração de terras e poder através de gerações de sua família, mesmo após a abolição da escravatura, levou seus apoiadores para assumir o poder político de Olivença, colando nos locais públicos os editais de um resultado da eleição que lhe era favorável (Marcis:2004, 2018). Conforme Marcis (2018), a luta pela vitória eleitoral no sul da Bahia começava com a designação dos responsáveis pelo alistamento de eleitores, aqueles que angariariam eleitores que votariam no candidato de sua respectiva facção, incluindo mortos e pessoas de outros municípios. A eleição de Paulino Ribeiro foi rechaçada pela população, sobretudo a proveniente das comunidades rurais de Olivença, que se reuniu em duzentas pessoas para enfrentar sua chegada à Olivença, e impedir que assumisse o poder. Os editais colados foram rasgados e uma batalha ocorreu, da qual resultaram nos mortos dos soldados do candidato.

Ester contou à sua neta que aos doze anos de idade assistiu à luta armada entre índios e soldados de Ilhéus, que vinham tomar o poder de Olivença. Sempre eles queriam tomar Olivença, sempre – Nivalda reproduzia o que ouvira da avó – era uma galinha dos ovos de ouro, porque era zona de veraneio, e ainda tinha o cacau. Antes a sede do governo de Ilhéus era Olivença, aqui que governava Ilhéus. Nonato liderou a resistência, segundo Nivalda, avisando aos moradores que não participariam diretamente que colocassem uma esteira no chão porque ia ter um tiroteio de noite. Os índios se posicionaram em cima da sacristia, esperaram a chegada dos soldados para emboscá-los. Eles vinham tocando lá de baixo, anunciando sua chegada em marcha, com lenços e bandeiras vermelhas – assim Nivalda descreveu. Assim que chegaram o tiroteio iniciou. O primeiro a morrer foi um índio, que passava desavisado montado em um boi com mercadoria de roça. Em retaliação, os índios mataram onze soldados, em meio a muita peleja física. Todo mundo queria tomar Olivença, rapaz! – contava Nivalda – mas não podiam tomar porque tinha um grandão que era coronel Nonato que não deixava ninguém entrar. Nonato herdara a projeção de poder político do pai, cujas posses de terras lhe renderam um reconhecimento social de “coronel”. Manoel Nonato veio a tornar-se Coronel da Guarda Nacional, posição que ocupava à época da hecatombe, tendo sido intendente de Olivença entre 1899 e 1903. No entanto, quando indagados a respeito de motivação do ato, a maioria dos réus sequer mencionou Manoel Nonato no inquérito policial. A ação era justificada pela maioria deles, repetidamente, por meio do argumento de que o “o povo não queria, não aceitava Paulino como intendente”. Apesar de tais justificativas, o inquérito concluiu atribuindo o episódio à liderança de Nonato, “efeito de sua vontade de chefe popular, agindo com toda a força de sua ascendência sobre o ânimo desse mesmo povo habituado, de há muito, a obedecer-lhe cegamente a todos os seus desejos” (Marcis, 2004;2018).

Depois que Nonato morreu não tinha ninguém para liderar, daí veio Marcellino – assim Nivalda emendava o relato sobre duas épocas dividias por trinta anos. As unhas dos índios (os “caboclos”, como eram chamados à época) eram arrancadas em tortura, elemento reiterado por ela e onde se falasse sobre Marcellino Alves, conhecido como “caboclo Marcellino”, em Olivença sobre sua curta atuação, para descobrir onde ele estava, enquanto esteve procurado pela polícia. Até que o encontrassem, muitos índios foram agredidos e tiveram de fugir de suas casas e se esconder em virtude da intensa perseguição a Marcellino, segundo Dona Nivalda.

Ele esteve à frente de uma tentativa coletiva de impedir a construção de uma ponte no rio Cururupe, que facilitaria o acesso às terras dos índios, em 1929, cujos mártires são rememorados anualmente em uma marcha. Com o avanço da expulsão dos índios das terras de Olivença, Marcellino se aliou ao chefe do posto indígena Caramuru-Paraguaçu[iv], vinculado, por sua vez, ao Partido Comunista Brasileiro, para enfrentar diretamente aqueles que implementavam a política coronelista na região. Em julho de 1936, cercaram e prenderam um dos engenheiros que estavam medindo as terras. Eram seis homens, contando com Marcellino, contra o engenheiro e mais vinte homens que o acompanhavam, “tomando-lhe o instrumento, cinco repetições e um fuzil” armas que pertenciam a Delegacia de Polícia de Vitória da Conquista (Lins, 2018). Na credencial do engenheiro, portada no ato, constava sua apresentação como “auxiliar da Delegacia de Terras de Conquista, que vai escolher uma área para o meu particular e grande amigo Manuel Novaes, pedindo por este motivo ao prezado amigo o obsequio de auxiliá-lo, como se fosse a minha pessoa, afim que o mesmo execute os seus trabalhos sem nenhum embaraço” (Lins, 2018). A partir daí intensificou-se o conflito o conflito no Posto Paraguaçu, e Marcelino passa a ser tratado – narrativamente pela imprensa e pelas forças de repressão – como “famigerado criminoso”, associando-o à Lampião, ao Partido Comunista, além de acusá-lo de fazer se passar por caboclo, referindo-se a ele como o “homem que se fez bugre” (Viegas, 2003:331). Marcellino acaba fugindo, perseguido pela polícia de Ilhéus.

Na esteira do processo de criminalização de suas ações, especulava-se pelas conversas em Olivença se Marcellino era uma pessoa agressiva, arredia, cuja brutalidade o levou a matar com um golpe de facão a esposa que carregava a filha no colo. Cogitou-se na época se seu objetivo era expulsar todos os não índios, formando grupos de extermínio para tanto. Ou, levantava-se a hipótese de que todas ou parte dessas histórias foram criadas e disseminadas por aqueles que o perseguiam para apressar sua captura, ao estimular na população uma desconfiança e antagonismo contra os objetivos de Marcellino e contra ele próprio. Símbolo de resistência da marcha anual dos mártires Tupinambá, Marcellino, contudo, é lembrado pela valentia, exaltado pelas suas estratégias em escapar à repressão policial, e em como se curava sozinho das feridas que as balas lhe faziam, que apenas o pararam quando o “balearam nas costas, onde não chegava as mãos para se curar” (Viegas, 2003:337). Depois de solto, não se sabe se foi morto pela polícia em Serra das Trempes, onde ficou escondido embaixo de uma pedra durante algum tempo, ou se ainda está vivo, morando no Posto Caramuru-Paraguaçu. Sobre o vínculo com os comunistas, segundo Fulgêncio, um dos que se juntava a Marcellino e que se entregou à polícia, esse último, ao sair do posto, “trazia no pescoço um lenço vermelho, dizia que era comunista e que preferia morrer a pender para o lado do integralismo, acrescentando que ia ajuntar mais gente para brigar com a polícia” (Lins, 2018). Posteriormente, segundo o próprio Marcellino no primeiro depoimento prestado, ao ser questionado se trabalhava pelo comunismo, respondeu que “absolutamente não é comunista, nem do mesmo quer saber; apenas tem procurado defender as suas terras e benfeitorias, em Barro Branco de Olivença; se os políticos de Olivença o chamam de comunista, é justamente por perseguição, até porque ele, respondente, não sabe o que é comunismo” (Lins, 2018).

            Marcellino foi transformado em ícone da subversão, em punição exemplar, em uma época em que não era mais aceito como um processo natural, em teoria, colaborar para o genocídio indígena. Ele então foi categorizado como perigo para a manutenção de uma ordem, já que incitava os “caboclos de Olivença” a agirem em desacordo com as leis em vigor. Outrora, sem o mesmo constrangimento normativo, se relatava a matança de indígenas passo a passo. Em outro episódio de criminalização frequentemente rememorado remonta ao início do encontro colonial, na segunda metade do século XVI, quando da implementação dos engenhos de cana, e da distribuição de territórios para colonos como condição para os empreendimentos portugueses em sua nova colônia. Nesse caso foi um “mar de sangue”, como Dona Nivalda e muitos outros chamam um evento intitulado como “Batalha do Cururupe”. Em muitos engenhos no período colonial ocorreram revoltas e fugas de indígenas, dentre os quais mantinham-se em atividade por apenas cerca de dois anos, e então fundavam-se novos engenhos. Em um desses levantes, os indígenas revoltaram-se contra a morte de um dos seus, cometida pelos colonos. As autoridades coloniais se omitiram quanto ao assassinato, ao que os indígenas revidaram matando dois colonos e destruindo roças (Marcis, 2004:30-31). “Já não se comia senão laranjas”, e a latência do conflito desesperou os colonos a ponto de fugirem para a vila e enviarem pedido de socorro ao governador Mém de Sá. Ele mesmo registrou em carta suas ações e movimentos durante essa expedição, relatando que foi pessoalmente, durante a madrugada, a pé, até uma aldeia localizada a algumas léguas distante da vila, a destruiu e matou todos os indígenas que resistiam. Na volta, queimou todas as aldeias pelas quais passou. Os indígenas que conseguiam fugir da destruição o seguiram, ao que Mém de Sá, segundo seu relato, forjou algumas ciladas, cercando-os e forçando-os a entrarem no mar de costa brava a nado. Sugere o relato que tenham morrido afogados todos esses indígenas que foram ameaçados com arma de fogo a caírem no mar. (Mém de Sá, Instrumentos de Seus Serviços. In Campos 1981:44, cf. Marcis, 2004:30). Mas os índios jamais morreriam afogados – é esse ponto do relato que indigna Dona Nivalda – “aonde que índio morre no mar? Num morre não…”. Em seu relato, Mém de Sá atirava conforme os indígenas levantavam suas cabeças. Os corpos vinham chegando na costa, ocupando toda a faixa litorânea da praia que hoje pertence ao município de Olivença, não sem antes fazê-la um “mar de sangue”.

O relato de Mém de Sá, bem como os relatos de descendentes indígenas sobre o mesmo episódio, foram incorporados ao processo de reivindicação de direitos dos índios Tupinambá de Olivença, particularmente desde 2001, quando o Conselho Tupinambá de Olivença, com o apoio do Conselho Indigenista Missionário e da Funai, realizou a Primeira Peregrinação em Memória aos Mártires do Massacre do Cururupe. Durante a caminhada que se inicia em Olivença e termina em um ponto da estrada na altura deste rio, próximo a Ilhéus, vários índios carregam faixas e entoam diversas canções de autoria dos próprios Tupinambá, e outras comuns a outros povos indígenas do Nordeste. Dona Nivalda participou ativamente de todo o processo de reivindicação pelo território.

***

A vida de Dona Nivalda era atravessada pelas memórias que guardava a respeito da história indígena em Olivença e arredores, dentro da qual esses eventos e ícones sociais constituem testemunhas documentais e orais, cravadas e transmitidas na memória de um lugar por pessoas como ela, da existência persistente de uma coletividade indígena naquele território. Ela era socialmente reconhecida pelas histórias que contava, e pelo jeito afetuoso e espontâneo de tratar as pessoas também. Em muitas conversas sem sua presença, enquanto ainda viva, alguém dizia que haveria de se procurar Dona Nivalda, porque só ela haveria de saber, talvez, mais dados e detalhes sobre o assunto. Alguns porque ela alcançou o ocorrido, isto é, ela estava viva quando tudo se passou. Outros porque ela alcançou suas testemunhas, alguns a ela diretamente vinculados. Os demais porque ela alcançou uma memória mais viva sobre tal ou qual episódios.

Enquanto ela espalhava a história que conhecia sobre o lugar onde viveu a vida inteira, assim como outros mais velhos residentes de outras comunidades, pouco podia fazer, pouco via ocorrer. Todas as suas memórias a respeito desses episódios, reverberadas através das comunidades, se tornavam objeto de debates sobre diferentes versões sobre o que realmente ocorrera e como eram realmente os principais personagens dos eventos que marcaram a história da existência indígena em Olivença. Suas memórias foram agregadas por três mulheres, Núbia, Pedrisia e Valdelice, a última, sua filha, conseguiam valiosas informações para perseguir em suas hipóteses de que ali constituía território indígena, em termos de ocupação histórica e arqueológica, corroborados pelas definições das leis brasileiras.

Por meio de Dona Nivalda, já conhecida por moradores das comunidades rurais interioranas à Olivença, Núbia e Valdelice conseguiam gradualmente conhecer as pessoas e transitar nessas comunidades, até conhecerem Pedrísia, moradora de Sapucaieira, que se somou ao grupo. Residente à época no bairro de Nossa Senhora da Vitória, em Ilhéus, Núbia dizia que sempre soube que Olivença era uma área indígena, que sua história começava lá, que sua mãe e seu povo eram de lá. Quando do encontro com Dona Nivalda nos eventos da Pastoral da Criança surgiu o diálogo sobre as aldeias. Um médico de Ilhéus vinculado àquela instituição, convidado por Dona Nivalda para dar palestras nas comunidades, lhe disse “que só tinha índio lá”. Lembrando retrospectivamente, ela dizia que “ninguém queria ser índio mas todo mundo era índio; quando chamava de índio eles ignoravam”.

A partir de um vínculo e interlocução com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), com a Associação Nacional Indigenista (Anaí), além da Pastoral da Criança, Dona Nivalda passou a visitar as famílias com o objetivo de convencê-las de que caboclo se tratava de uma denominação atribuída pelos brancos, de que eles eram índios e tinham direitos.  Certa vez, ela observou que as crianças estudavam nas casas de farinha, não havia um espaço adequado para o ensino nas comunidades. Era sobre esse direito que tentou comunicar às crianças durante suas visitas às comunidades junto à Núbia, Valdelice e Pedrísia. Mencionava também o direito à terra “porque não dá pra passar fome”. Diferente dela própria, cuja avó logrou resguardar sua casa e alguns lotes que Nivalda garantiu aos filhos, os índios perderam suas terras “por qualquer preço, trocada como na feira, porque não sabiam de nada, e assinavam as coisas com o dedão”. Conforme confabulava à época, pensava ser necessário que se assumissem como índios para garantir direitos que não vinham sendo respeitados até então.

            Embebida de todas as histórias que conhecia e sabia contar, Dona Nivalda passou a reconhecer que era parte delas, seja porque percebia a referência e autoridade que representava para a coletividade tupinambá em tempos de afirmação e luta étnicas, seja participando junto a muitos de seus parentes, dentre os quais filhas, filhos, e netos, em torno das reivindicações por terra, reparações e direitos. Adotou, assim, um segundo nome, Amotara, um nome indígena para lembrar a ela, aos seus e aos outros, quem ela descobriu que era.

“Amotara Dona Nivalda: homenagem à mãe das/dos Tupinambá”

Bibliografia

LINS, Marcelo da Silva. Os comunistas vão à aldeia: A trajetória do Caboclo Marcellino e a atuação do PCB no meio Indígena. Biografia publicada no site Os Brasis e suas memórias, 2018. Disponível em: http://osbrasis.trgbr.com/caboclo-marcelino/

MAGALHÃES, Aline Moreira. A luta pela terra como oração: sociogênese, trajetórias e narrativas do movimento tupinambá. Dissertação de mestrado, PPGAS-MN. 2010.

MARCIS, Teresinha.  A “hecatombe de Olivença”: Construção e reconstrução da identidade étnica – 1904. Salvador-BA: PPGH /UFBA, 2004.  Dissertação – mestrado em História Social. Disponível em:

https://ppgh.ufba.br/sites/ppgh.ufba.br/files/2004._marcis_teresinha._a_hecatombe_de_olivenca_construcao_e_reconstrucao_da_identidade_etnica_-_1940.pdf .

___________________ Manoel Nonato do Amaral:  notas biográficas de um coronel mestiço de Olivença-Bahia. Biografia publicada no site Os Brasis e suas memórias, 2018. Disponível em: http://osbrasis.trgbr.com/biografia-manoel-nonato-do-amaral/

COUTO, Patrícia Navarro de Almeida. Os filhos de Jaci: ressurgimento étnico entre os Tupinambá de Olivença – Ilhéus. Ba. UFBA, 2003. Monografia – graduação em Antropologia. Disponível em:

http://www.pineb.ffch.ufba.br/downloads/12486996012003%20COUTO,%20Patricia%20-%20Ressurgimento%20Tupinamba.pdf .

VIEGAS, Susana; DE PAULA, Jorge Luiz. Relatório Preliminar de Identificação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. 2005.


[i] Fundada em 1986, a Pastoral da Criança, organismo de ação social da Confederação Nacional de Bispos do Brasil, alicerça sua atuação na organização da comunidade e na capacitação de líderes voluntários que ali vivem e assumem a tarefa de orientar e acompanhar as famílias vizinhas em ações básicas de saúde, educação, nutrição e cidadania tendo como objetivo o “desenvolvimento integral das crianças, promovendo, em função delas, também suas famílias e comunidades, sem distinção de raça, cor, profissão, nacionalidade, sexo, credo religioso ou político” (Artigo 2º do Estatuto). Fonte: https://www.pastoraldacrianca.org.br/quemsomos

[ii] Fonte: https://acervo.racismoambiental.net.br/2013/12/01/ba-ultima-casa-tupinamba-restante-em-olivenca-de-uma-indigena-de-81-anos-foi-incendiada-ontem/

[iii] De acordo com Marcis, “no sul da Bahia, a implantação do regime republicano assegurou o desenvolvimento da economia baseada na monocultura da produção e comercialização de cacau.  Ilhéus se consolidou como o centro da expansão econômica, política e social. Foi enorme seu crescimento a partir de 1870, tornando-se o principal produtor de cacau, “produzindo 1,2 milhão de quilos, que representavam 1,4% da renda da província. Vinte anos depois, em 1890, a produção aumentou para 3,5 milhões de quilos e 21% da renda estadual. Os municípios se tornaram cenários dos conflitos entre facções oligárquicas que disputavam o apoio do governo como um meio de se preservarem ou alcançarem os postos do exercício do poder.” (Marcis, 2018)

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