biografia
Xicão Xukuru
Autor(es): Kelly Oliveira
Biografado: Xicão Xukuru
Nascimento: 1950
Povo indígena: Xukuru do Ororubá
Estado: Pernambuco
Categorias:Biografia, Estado, Pernambuco, Etnias, Xukuru
Tags:Masculino, Pernambuco, Xukuru, Xukuru do Ororubá
Mandaru – A história de vida do cacique Xicão Xukuru (PE)
A história de vida que contaremos aqui não é apenas sobre um homem, o cacique Xikão Xukuru, mas sobre um povo indígena, os Xukuru do Ororubá, de Pernambuco, e de como este povo iniciou o processo mais recente de resistência na recuperação de seu território e de um modo de vida específico. Esta caminhada será vista a partir do acompanhamento da história de vida desta liderança indígena, que fortaleceu a luta pelos direitos étnicos do seu e de outros grupos étnicos no país, e que se tornou uma figura emblemática do movimento indígena brasileiro. Com um sorriso largo, muito carisma e uma voz forte e determinada, conseguiu mobilizar diversas forças em torno da luta pelo território de seu povo, de 1986 até 1998, quando foi assassinado justamente pela sua atuação política.
Seu percurso de vida será aqui retratado com base em texto que escrevi no ano de 2000, como projeto de conclusão de curso em Jornalismo[2]. Tomei por base entrevistas com parentes e outras lideranças indígenas, além de aliados ligados a organizações não governamentais. Fiz uso ainda de documentos oficiais, recortes de jornais e levantamento bibliográfico de textos acadêmicos para completar esta pesquisa.
Batizado como Francisco de Assis Araújo, Xicão nasceu no sítio Cana Brava em 1950. O local fica no meio do atual território Xukuru, que está inserido nos municípios de Pesqueira e Poção, em Pernambuco, a 216 km de Recife. A terra indígena, atualmente homologada em 27.555 hectares, na época em que Xicão nasceu estava em sua maior parte ocupada por não indígenas. Filho de Cícero Pereira de Araújo e Quitéria Maria de Araújo, Xicão cresceu na área em um pequeno pedaço de terra que o pai possuía. Casou-se em 1970 com Zenilda Maria de Araújo, com quem teve oito filhos. Segundo Zenilda Araújo, cinco anos depois do casamento o marido foi trabalhar como caminhoneiro e viajou para São Paulo, de onde retornou três anos mais tarde para o início de sua história de luta nos Xukuru. A entrada de Xicão como liderança é rodeada por histórias que indicam o misticismo presente desde antes do seu envolvimento com a luta indígena.
Semente de Coragem
Em uma pajelança, cujo momento eu não me lembro, os encantados na pajelança falou que tinha uma pessoa para ser uma liderança na área, aí disse para o Pajé que era eu.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
Esse momento ocorreu cerca de 10 anos antes da entrada de Xicão como vice-cacique e representou apenas a primeira de numerosas histórias que apontam para o fato do seu cacicado (como é chamado o período de atuação de uma liderança como cacique) ter sido o que os Xukuru chamam de “uma escolha da Natureza”, que falaria através dos Encantados, entidades espirituais que dialogam em rituais de pajelanças através de indígenas incorporados. Veio da Natureza ainda o nome Mandaru, para Xicão. Um nome que representava a força e a sabedoria de um velho Encantado, segundo fala de Zenilda.
A pajelança onde foi escolhido para Cacique, no entanto, não representou o início de seus trabalhos. Na verdade Xicão não aceitou o Cacicado e foi para São Paulo, de onde retornou com uma doença que decidiu a sua participação na luta. Segundo a esposa, desenganado e com apenas mais um dia de vida, Xicão selou seu destino ao lado do povo com uma promessa para Tamain, também conhecida como Nossa Senhora das Montanhas, que é a principal santa de devoção do povo.
A promessa que eu fiz foi se eu ficasse bom eu ia trabalhar para os meus parentes até a hora que eu morrer, enquanto eu tivesse vida. Fiz o pedido e fui atendido de imediato. Em dois dias foi encaminhado, fui internado no Recife e com 36 dias fiquei bom.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
Em 1986, já recuperado da doença e morando em Cana Brava, Xicão conversa novamente com o Pajé, Seu Zequinha, que o convence a entrar na luta junto com ele e algumas lideranças que atuavam no povo. A situação era difícil para os Xukuru. As aldeias, na época, eram conhecidas apenas como sítios e não havia efetivamente um movimento de organização interna enquanto grupo étnico.
O Cacique, Zé Pereira, também conhecido como Zé de Ismaé, era reconhecido como alinhado com o órgão indigenista oficial, a FUNAI, e não tinha uma posição combativa na integração do povo. Esta época culminou com um processo de discussão de direitos étnicos que estava sendo construído no país através de organizações não governamentais, em função da discussão da nova constituinte. Um período em que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) passou a atuar em várias áreas indígenas, estimulando a reflexão sobre os direitos desses povos.
Quando eu comecei na luta eu não tinha consciência da luta do índio pela terra, pela educação, pela saúde e pela subsistência, até porque era muito jovem, tinha outras influências, mas sempre sabia que a minha mãe era uma cabocla índia, meu pai era índio e meus avós também, tudo nascido em cima da serra.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
Entre 1986 e 1988, um processo inicial de mudança política vai ocorrendo dentro do povo. Trabalhando basicamente com o processo de conscientização política, missionários do CIMI passa a atuar junto com as lideranças, buscando esclarecer os direitos indígenas, e apoiam Xicão como liderança, quando ele passa a ser conhecido como vice-cacique. A partir de 1987 as lideranças Xukuru passaram a participar de manifestações e cursos dados pelo CIMI e outras ongs que objetivavam esclarecer direitos indígenas, principalmente em relação a terra, em função da mobilização pela nova Constituição que estava sendo gestada.
A Assembléia Nacional Constituinte, finda em 1988, foi um momento marcante para o movimento indígena. Lideranças de todo o país reuniram-se em Brasília para negociar os artigos que garantiriam os direitos dos índios brasileiros. Neste episódio o povo Xukuru ganhou notabilidade diante dos índios reunidos, por conta de um episódio onde conseguiram entrar no Congresso Nacional, quando a maioria das outras lideranças haviam sido barradas.
Lá em Brasília de cara as outras lideranças botaram eu pra ser o da frente, para abrir as portas do Congresso Nacional nos trabalhos da Constituinte. Eu logo de cara topei essa barra pesada. Não conhecia Brasília, não conhecia o Congresso Nacional, não conhecia a Funai, mas os caras perceberam assim uma… Aí comecei a enfrentar o debate com Marcos Maciel, Sandra Cavalcante do PFL do Rio de Janeiro.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
A participação dos índios foi decisiva para garantir uma legislação favorável. Organizados, conseguiram derrubar o inciso 5º do artigo 26, que repassaria aos estados e municípios as terras dos aldeamentos extintos, fragmentando assim a luta em um nível nacional. As principais vitórias, porém, estão descritas nos artigos 231 e 232, que hoje são o escudo principal na defesa dos direitos indígenas.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. Capítulo VIII “Dos Índios” Título VIII “Da Ordem Social” Constituição Federal do Brasil / 1988 |
Diante da conquista que foi a Constituição Federal de 1988, as lideranças Xukuru voltaram para a área munidos da esperança de conseguir fazer cumprir o que estava na lei. Eram várias reuniões semanalmente, sempre seguidas do ritual do Toré, onde eram explicados para os índios os direitos que a nova Constituição garantia, inclusive com relação a maior de suas lutas, que era a terra. A vontade de lutar dos Xukuru foi crescendo e com ela as discussões sobre estratégias de como se utilizar da lei.
Foi nesse mesmo período que eclodiu mais uma tentativa de expropriação da terra Xukuru: a proposta de execução do Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, de propriedade de Otávio Carneiro Leão, que está dentro dos limites da área indígena. O Projeto que seria implantado numa área de 2000 hectares, com financiamento público, pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, alertou os índios para a necessidade de começarem a lutar por seu território na Justiça.
Assim, liderados pelo vice-cacique Xicão e por outras lideranças apoiadas pelo CIMI, foi formado um grupo de representantes dos Xukuru que foi até a Procuradoria da República em Recife exigir um posicionamento da justiça, denunciando também na imprensa a realidade vivida naquele momento.
Segundo o vice-cacique Xukuru, Francisco de Assis Araújo, o Chicão, o crescimento da pecuária na região tem causado uma grande escassez de alimentos na região. Sem terra os índios são obrigados a cultivar as áreas dos fazendeiros, onde só é permitido o plantio e cultivo de milho e feijão. Segundo Chicão, para cada hectare plantado, o trabalhador fornece três sacas de milho ao patrão. Por outro lado, não é permitido o cultivo de banana, mandioca, café ou qualquer outra cultura de maior duração, pois o fazendeiro não permite, uma vez que a terra só deve ser utilizada para o plantio de capim e culturas que possibilitem forrageiras para ração animal.
Jornal do Comércio – 22 de outubro de 1988
As denúncias repercutiram não só na imprensa como na Procuradoria, que pressionou a Funai e a Sudene sobre o projeto, que terminou por ter a verba negada, impedindo assim sua execução na área.
A Constituição Federal e a suspensão do Projeto Vale do Ipojuca foram as primeiras de uma série de conquistas do povo. Foi logo após esses eventos que Xicão tornou-se Cacique. O seu posicionamento em Brasília, o apoio que havia conseguido com o CIMI e as atitudes enérgicas diante da resolução dos problemas só legitimaram ainda mais essa escolha.
Ele – meu pai – sempre contava pra gente que um dia viria essa oportunidade, esse momento de que alguém ia se levantar e ia dizer que essa terra tinha dono antes dos fazendeiros chegar, não importava o tempo que eles já tavam aqui dentro, importava que já existia os donos quando eles chegaram. Ele até contava a história “desde que meu escanchavô conversava com o pai dele”. Ele não sabia de quando era. Sabia que os tataravós e os escanchavós contava pra eles que algum dia ia chegar o momento. Não sabiam de que maneira e talvez alguns deles não alcançasse, mas ia ter alguém que ia se levantar, ia gritar e ia dizer ao mundo inteiro que essa terra é do índio. Ia acontecer assim.
(Zé de Santa – Vice- Cacique Xukuru)
Alvorecer de Esperança
A consagração de Xicão como cacique em 1989 intensificou os trabalhos dentro da área Xukuru. A primeira meta foi a unificação de todas as aldeias, muitas das quais isoladas de qualquer informação sobre os novos direitos indígenas.
Quando ele começou a ser Cacique começamos fazer reunião nas aldeias, que muitos índios nem entendia dos seus direitos, não sabia que era índio, do direito que tinha lá fora. E a partir do momento que ele entrou como Cacique ele começou a descobrir os caminhos dos direitos dos índios. Meio difícil, mas ele foi conseguindo, aos poucos. Ele tinha uma mente muito aberta. Então ele deu início, andar nas aldeias, conversar com o povo, de aldeia em aldeia. Isso a gente ia a pés, com muito sacrifício. Aí a luta foi indo. Eu ia junto com ele e os índios que já tava se aconchegando na luta. Aí tinha as reuniões e ia nas aldeias. O povo ficava meio espantado porque nunca tinha visto falar dos seus direitos, mas aos poucos iam se chegando. Todo final de semana nós ia nas aldeias fazer essas reuniões, aí continuou e o povo foram se unindo.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
De acordo com o vice-cacique, Zé de Santa, não foi fácil começar um trabalho em aldeias distantes por mais de 20 km, em alguns casos. Os índios já estavam desacreditados de que efetivamente poderiam conseguir alguma melhoria de vida e em algumas aldeias havia certa desconfiança sobre o discurso do Cacique com relação ao direito dos índios sobre a terra. Xicão continuou com esse trabalho de base, conhecendo aldeia por aldeia, os problemas e a realidade de cada uma, ao mesmo tempo em que trazia para as reuniões pessoas de outras aldeias, criando um diálogo maior entre os Xukuru.
As pessoas que frequentavam as reuniões foram se conscientizando dos seus direitos. A participação do CIMI também foi presente nesta época, acompanhando as discussões sobre a nova constituição. Nestas reuniões, o Cacique explicava o que esses direitos representavam na prática, como estava a organização indígena, os problemas enfrentados e as conquistas realizadas.
Em todos os seus trabalhos, em todas as suas reuniões, em todos os congressos que ele foi, todas as viagens que ele chegava a primeira coisa que ele fazia era fazer a prestação de contas daquilo que ele gastou e que não gastou e também discutir junto com o povo tudo quanto foi programado e discutido nas reuniões e nas assembleias. Isso ele deixava seu povo com a mente bem clara e todo mundo sabia. (…). Também ele passava muito sobre os direitos constitucionais garantidos pela constituição. O nosso povo era lesado, era manipulado pela Funai, pelo Chefe de Posto, mas depois o povo começou a despertar, a saber de seus direitos e que hoje realmente eles estão muito por dentro do que realmente tá acontecendo diante de Brasília.
(Antônio Pereira – aldeia Pedra D’água)
O Cacique Xicão conseguiu aos poucos reunir o povo e com a ajuda de Zenilda, sua esposa, conseguir o apoio das mulheres. Uma das características que ajudou neste momento foi o carisma de Xicão junto ao grupo, que além do respeito e confiança diante do trabalho, tinham um grande carinho pela figura alegre que, segundo relatos de diversos indígenas, recebia de crianças a velhos com a mesma atenção e que tinha um respeito grande com os Encantados e a religião Xukuru. Os índios foram depositando cada vez mais confiança na figura que se fortalecia através de ações que solidificavam o respeito pelo trabalho e diminuíam as divergências internas.
Eu saí daqui com a minha comunidade passando fome e eu disse “eu vou sair daqui e vou ver se arranjo nem que seja banana verde pra eu trazer pra esse povo que tá passando fome aqui, tá numa fome triste”. Saí daqui, falei pra ele. Ele chorava… Aí desceu pra Recife e quando ele veio foi com um caminhão de comida que ele mandou entregar aqui. E viajou pra outro canto e de lá mandou o recado “venham buscar 100 cestas básicas”. E eu fui. Xicão tinha conhecimento, tinha amizade como conseguir, porque Xicão não falava em nome dele, falava em nome da comunidade dele.
(João Jorge – Liderança da aldeia Sucupira)
Esse episódio aconteceu em Sucupira, uma das aldeias mais secas da área, que por muitos anos sofreu pela falta de terras cultiváveis, já que era rodeada por posseiros que foram expulsando os índios para as terras menos produtivas. Na época do início do Cacicado, segundo seu João Jorge, foi “muito trabalho pra juntar o povo”, por conta de todo o processo de desinformação já falado.
Guerreiros do Ororubá
Apesar da dedicação do Cacique e das lideranças que acompanhavam Xicão, com o tempo viu-se que a gerência dos problemas de mais de 4.500 índios (em 1989) era difícil, por conta da distância entre as aldeias e da própria impossibilidade de atenção a todas ao mesmo tempo. Assim, junto com as reuniões, os Xukuru foram montando uma estrutura de representação política que suprisse as necessidades de comunicação dentro da área.
Partindo de uma base já estabelecida previamente, que designava um representante por aldeia (na época, sítios), foi formado um grupo de representantes. Em cada aldeia foi escolhida, pelo povo, uma pessoa responsável por discutir os problemas da sua comunidade, incentivar a participação na luta e levar dificuldades maiores até o Conselho de Representantes, que se reunia uma vez por mês, junto com o Cacique, o Pajé e outras lideranças. Os representantes levavam os problemas, que eram discutidos entre os presentes. Também entravam na pauta dessas conversas informações sobre o que estava acontecendo fora da área, que depois eram repassadas para cada aldeia pelos representantes, mantendo a comunicação entre o povo.
Esses Representantes formaram o alicerce da organização Xukuru, servindo não só de ponte entre o Cacique e o povo, mas como uma extensão das diretrizes e informações que eram passadas ao povo. Serviam como lideranças na decisão em problemas menores e em caso de questões mais sérias, encaminhavam para o cacique.
Os representantes funcionaram bem, mas com a ampliação dos trabalhos em diversas frentes como educação, saúde e subsistência, a administração dessas tarefas começou a acumular decisões e ações que deveriam ser tomadas. A solução veio com a formação da Comissão Interna, em 1992, onde 12 lideranças passaram a ter a autonomia não só para discutir os problemas, como para sair das aldeias para resolvê-los. Assim, quando havia uma reunião ou movimento onde Xicão não pudesse estar presente, eram escolhidas, dentro da Comissão Interna, pessoas que responderiam pelo povo e repassariam, assim como o Cacique, as informações do que havia sido resolvido. O maior benefício da formação da Comissão, entretanto, foi a promoção da descentralização nas decisões.
A Comissão Interna foi formada pelo próprio Cacique Xicão. Ele era uma pessoa de muitas ideias e ele não poderia dirigir o destino do povo Xukuru sozinho, então teria que ter uma Comissão Interna para também responder junto com o Cacique. A Comissão Interna funciona dessa forma: nenhum membro pode decidir as coisas por si só, e nem tão pouco o Cacique pode decidir só. Tem que juntar o Conselho que é uma organização nossa que é pra gente discutir as necessidades de nosso povo. Tem que decidir todos. Se acertar é todos, se errar é todos.
(Antônio Pereira – aldeia Pedra D’água)
Um outro grupo, anterior até mesmo aos Representantes, é formado pelo Pajé e outros índios que se responsabilizam pela organização da religião e rituais Xukuru, desempenhando uma função das mais importantes junto à luta, já que esse grupo, chamado Conselho de Pajelança, interage tanto aconselhando nas decisões para o povo, com o intermédio dos chamados Encantados e Espíritos de Luz, quanto dando força espiritual para a luta, através da Pajelança.
Viajei muito. A gente teve uma viagem em Brasília e essa foi a mais importante pra mim. Ele [Xicão] chegou e disse ao Pajé quando saiu “Pajé eu estou em tal canto, tal hora e é pra mandar uma força pra lá, mas eu tô lá e tô esperando uma força”. E o Pajé disse “pode ir” e na hora lá a gente recebeu, na hora que a gente entrou a gente recebeu a força… Arranjou o que a gente foi buscar, ele conseguiu, com a garra que ele tinha, que tem.
(João Jorge – Liderança da aldeia Sucupira)
Juntos, Representantes, Comissão Interna, Conselho de Pajelança e os mais velhos discutem com o Cacique os rumos do povo Xukuru.
Alguns grupos foram criados mais tarde, para coordenar a organização. A Associação Xukuru surgiu em 1991, decorrente da necessidade do povo ter um órgão que respondesse juridicamente pela etnia. É através dela que são articulados convênios, projetos para o povo e o intermédio de contratos, como é o caso dos professores indígenas que atuam na área. A Associação também dispôs, por muitos anos, de um caminhão F-4000 que serviu de transporte e de ligação entre as aldeias.
Já a Comissão de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá (Copixo) foi criada em 1997, como consequência de um trabalho de formação de professores que começou três anos antes, com o apoio do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), organização não governamental que já trabalhava com educação popular. Com a Constituição de 88, que garantia o respeito à cultura indígena, os professores de diversas etnias começaram a pensar uma forma diferente de educação, que fosse além do ensino tradicional prestado nas escolas brasileiras. Na área Xukuru, por exemplo, as escolas que existiam tinham o objetivo de integrar o índio à sociedade envolvente, à exceção de uma única na área, que era da Funai.
Existia só uma escola da Funai e lá eles falavam na cultura, na dança, só que meio sigilosa. Os mais velhos escondiam as características porque se descobrissem eram perseguidos na época. Mas nas festas de Nossa Senhora das Montanhas, em 2 de julho, eles já subiam com uma cana nas costas e as barretinas e iam pra Vila. Papai contava que lá em Cana Brava eram locas de índios. Mas eles [não índios] queriam era esconder essa realidade, para os índios não descobrirem.
(Marli – irmã de Xicão – Pesqueira)
No início da década de 1990 surgiu a necessidade de criação de um ensino que privilegiasse a educação específica para os povos indígenas e diferenciada entre estes, atendendo assim à singularidade de cada uma das mais de 210 etnias de todo o país. Assim, foram desenvolvidas experiências por todo o Brasil e os Xukuru começaram a pensar um novo ensino dentro da área. Com professores índios, foram desenvolvidos projetos de capacitação que resultaram em uma escola que hoje dispõe para os alunos aulas sobre sua história, tradições e cultura, não só transmitidas oralmente como também pelo livro Xucuru – Filhos da Mãe Natureza, uma das grandes conquistas para o povo. Foi em uma dessas capacitações, que contava com a presença também das lideranças, que Xicão, Zenilda e Zé de Santa pensaram em reunir um grupo menor de pessoas entre os professores para que esses se responsabilizassem pela gerência da educação escolar indígena. Nascia neste momento o Copixo, Conselho de Professores Indígenas Xukuru do Ororubá, responsável pelo acompanhamento da educação diferenciada na área. O Conselho também atuava na organização de cursos de capacitação aos professores e no diálogo sobre as temáticas a serem discutidas nas escolas.
Existe um nível de organização avançado dentro do povo Xukuru, que só foi sendo ampliado nos anos seguintes, resultando atualmente em comissões específicas para saúde, agricultura, audiovisual, artesanato, entre outras. São grupos que se responsabilizam por áreas específicas, mas sem perderem o fio de comunicação que garante decisões tomadas de forma a integrar toda a etnia. Neste caso, se a Associação, por exemplo, for executar algum projeto, este já terá sido analisado e discutido entre a Comissão Interna, que integra ainda o Cacique e o Pajé.
Todo trabalho desenvolvido dentro do povo passa pelo crivo da Comissão, que serve como o suporte de todos os outros grupos, sem que com isso seja tirada a autonomia das outras organizações de tomarem decisões onde não é necessária a intervenção da Comissão Interna. Foi essa organização interna que garantiu, para o Cacique Xicão, o conhecimento de todas as ações desenvolvidas dentro da área, até porque este se fazia presente nas reuniões de todos os grupos da organização interna do grupo.
Reconquistando as Terras do Ororubá
A terra para os povos indígenas adquire uma importância fundamental na luta por seus direitos, já que representa o espaço onde efetivam seu modo de vida, seja na esfera social, política, econômica ou cultural. A luta pela área Xukuru passou, desde o início do Cacicado de Xicão, por dois caminhos que, paralelos ao longo dos anos, foram garantindo a reconquista do espaço indígena.
O primeiro caminho diz respeito à questão jurídico-fundiária pela regularização da posse das terras. Um processo que se arrasta até hoje, mas que teve um substancial avanço desde o início do Cacicado, já que a área Xukuru nem mesmo era reconhecida como território indígena em 1988.
A área Xukuru a gente tinha um documento, pudemos tomar da Funai, não foi a Funai que deu pra nós, nós tomamos, que alegava que a área Xukuru estava extinta desde o século dezenove e que a única área que era considerada como área indígena eram três hectares e meio em São José. Isso tá no Posto, onde Seu Durval estava falando que ele foi o fundador. E Vila de Cimbre que é o lugar histórico da tradição que nós, os índios, fazemos duas vezes no ano, em junho, na festa de São João e no dia 02 de Julho, que é Dia de Nossa Senhora das Montanhas. Esse documento é declarado que a gente não tinha mais direito de fazer festas de rituais, ainda, lá em São José, coisa que não existia para a gente.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
A partir da constatação dessa realidade, Xicão parte com outras lideranças atrás dos órgãos responsáveis pelo reconhecimento da área indígena, em Brasília. Paralelamente, como segundo caminho na reconquista do espaço, os índios promoveram as retomadas de algumas terras que estavam sob posse de não índios, forçados por uma realidade decorrente do próprio processo de luta pelos seus direitos.
Para entendermos melhor, façamos um relato envolvendo dois caminhos que estão ligados e são de certa forma consequência um do outro: a questão jurídico-fundiária e as retomadas.
A denúncia feita à Procuradoria da República de Recife, em outubro de 1988, sobre o Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, também teve ressonância com relação à Funai, a partir da observância de que aquela situação era causada pela não regularidade oficial da área indígena.
A partir da ação dos Xukuru junto à Procuradoria foi emitida a Portaria Presidencial nº 218/89 de 14 de março de 1989 que criou um GT –Grupo de Trabalho, formados por técnicos da Funai, Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e CEPA-PE – Fundação Nacional de Planejamento Agrícola de Pernambuco, para “identificar e definir os limites da terra indígena Xukuru”. O trabalho realizado entre maio e junho do mesmo ano cadastrou 281 imóveis rurais dentro da área delimitada. Entre os posseiros estavam, na época, o Prefeito de Pesqueira, secretários municipais e parentes do atual vice-presidente da República, Marco Maciel. Este último é apontado pelos Xukuru como uma das pessoas que dificultam o processo de legalização das terras.
O levantamento identificou a área com 26.980 hectares, realizando com isso a primeira e segunda etapas no processo de regularização do território. Esse processo consta de cinco etapas que são a identificação, delimitação, demarcação, homologação e desintrusão.
A presença do GT teve consequências positivas e negativas dentro da área. Por um lado, o início do processo de posse da terra teve um efeito benéfico para o povo, que desde a década de 1940, com a visita do sertanista do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Cícero Cavalcanti, esperava regularização da terra. Por outro lado, após o trabalho de identificação e delimitação, os posseiros passaram a recusar mão-de-obra indígena nas terras ocupadas, aumentando ainda mais a tensão entre índios e não índios.
A maioria dos índios não tinha uma terra sua e os que tinham estavam em áreas inférteis, já que as produtivas estavam nas mãos dos posseiros. Essa situação por si já mostrava uma realidade de pobreza extrema, agravada com a recusa do trabalho. Juntou-se a isso a discriminação contra os Xukuru, que aumentou com a ideia de que agora os índios estariam querendo “tomar a área”.
Esse fervilhar de dificuldades, que em contrapartida tinha o desejo crescente entre o povo de poder reconquistar sua terra, culminou em 1990 com a primeira retomada na área Xukuru: Pedra D’água.
A área de Pedra D’água estava arrendada, até 1989, para cerca de 70 agricultores, por conta de um convênio firmado entre Ministério da Agricultura e Cooperativa Agropecuária de Pesqueira. O arrendamento de 10 anos se prestava a um projeto agrícola de assentamento subsidiado pela Prefeitura de Pesqueira. Sabendo da determinação legal de que a terra não poderia ser arrendada nem vendida e diante da constatação do desmatamento que estava sendo realizado pelos posseiros, os Xukuru pedem providências à Funai.
Mesmo já dispondo da posse para utilização da terra, por conta de acordo feito em 16 de maio de 1989 com o Ministério da Agricultura, a Funai não toma nenhuma providência para a retirada dos posseiros, levando os índios a tomar uma atitude por conta própria, para que pudessem proteger as matas e dispor do território. Sendo assim, em 05 de novembro de 1990 um grupo de índios Xukuru, seguindo o Cacique Xicão, instala-se no local onde foi formado o primeiro terreiro de Toré, permanecendo por 90 dias.
Nós ocupamos a mata sagrada lá em cima onde a gente fazia o Toré, que é a Pedra, o Ororubá, que os índios não podiam fazer o ritual lá claramente, eles faziam escondido de madrugada, porque era proibido pela polícia, alegando que aquilo era bruxaria, era catimbó, que aquilo não existia, forçando o índio a esquecer sua própria cultura, mas mesmo assim escondido a gente fazia, nas caladas da madrugada.
Então a gente começou a ocupar lá e disseram “a partir de hoje vai se fazer claramente, dê pra quem der, e vamos proteger a mata”. Que eles estavam desmatando a mata, já tinham tirado uns 200 caminhões de madeira da mata, ia ser completamente devastada e aí conseguimos recursos, 80 mil cruzeiros, na época. E compramos arame e cercamos a mata e garantimos a mata como lugar sagrado da nossa religião e a Pedra do Rei. E aí fomos brigar com a Funai para garantir o restante da área e aí entramos em negociação com os posseiros pra evitar um conflito, foi porque não queria que eles tivessem nenhum diálogo com a gente.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
Com a mata cercada e protegida contra o desmatamento, os Xukuru negociaram com os posseiros. É interessante notar que a partir dessa primeira retomada foi possível acompanhar através dos jornais o posicionamento de diversos personagens políticos. No Jornal do Comércio de 09 de dezembro de 1990 vemos um tiroteio entre alguns órgãos que estão envolvidos no processo. Os índios e posseiros parecem ser os únicos a entrar em acordo sobre a região de Pedra D’água.
O Prefeito de pesqueira é descrito na matéria como tendo uma “posição francamente pró-posseiros”, que fica clara posteriormente nos inúmeros conflitos que tem com os índios. Na matéria ele declara:
O terreno é do Ministério da Agricultura por uma doação pessoal da prefeitura
(João Araújo Leite. Prefeito de Pesqueira / PFL)
A Funai mantém uma posição de inoperância diante da retomada, ora transferindo a sua responsabilidade para outros órgãos, ora admitindo não ter nenhuma ação realizada na área.
Esta é uma terra imemorial, ou seja, pertence aos índios. O problema nunca foi solucionado por causa da burocracia que envolve a Funai, o Incra e o Estado. A nossa tarefa é cobrar de Brasília.
(Lauri Camargo Rodrigues. Diretor Regional da Funai)
Estamos sem condições financeiras. Lá existem fazendas que nem a Califórnia tem. Não podemos indenizar estes grandes proprietários. Além do que não basta dar dinheiro: é preciso assentar o colono.
(Reinaldo Agra. Chefe da divisão Fundiária da Funai)
A Igreja mantém-se passiva diante da situação, mas ataca o CIMI, pelo posicionamento político dentro da área. O prefeito também se posiciona diante do papel da Igreja.
Em princípio aceitei o trabalho deles, mas depois desconfiei que estava havendo incitação à luta de classes.(…) Os índios me acusam de ligações com os poderosos, o que não é verdade. Gostaria de uma posição pacífica.
(Dom Manuel Pereira. Diocese de Pesqueira)
Acho que o Bispo deve ser o apaziguador. (…) a pastoral só olha para os caboclos. Quero que eles façam um trabalho mais evangélico, este CIMI (Conselho Missionário Indigenista) está desvirtuando a igreja.
(João Araújo Leite. Prefeito de Pesqueira / PFL)
A partir da retomada de Pedra D’água ficaram bem claras as posições dos personagens externos à disputa do território. Entre os 70 posseiros envolvidos, entretanto, a posição era mais calma. Fechando acordo com os Xukuru, desocuparam a área e em troca receberam apoio na cobrança das indenizações.
Realizado o acordo, os Xukuru já começaram a construir suas moradias na terra considerada como espaço sagrado para o povo. A retomada dessa área representou a mais importante conquista do grupo. Com a posse da terra eles tiveram uma saída para garantir a subsistência, pelo menos emergencial, de algumas famílias que não tinham onde plantar. Também fortaleceram a luta internamente, já que reconquistaram um lugar de grande valor simbólico e religioso, passando a executar o Toré e a pajelança de forma aberta (já que antes os rituais eram praticados de forma escondida, nas matas).
Pedra D’água foi transformado no centro político Xukuru, já que geograficamente fica no meio da área indígena, representando o lugar estratégico onde o Cacique Xicão passou a morar e onde as reuniões eram realizadas todos os domingos para o ritual, onde se reuniam pessoas de todas as aldeias para dançar o Toré. Neste momento também era feito um repasse de informações sobre as ações realizadas na área e o trabalho que o Cacique estava fazendo.
Politicamente a retomada trouxe benefícios para o processo de regularização da área indígena. É, a retomada foi um pensamento das nossas comunidades, das lideranças, que só havia demarcação se houvesse essa retomada. Era uma forma de fazer pressão à Funai e ao Governo para que ela fosse demarcada e se não houvesse um movimento organizado entre os índios, então a área nunca seria demarcada nem identificada.
(Xicão Xukuru. Em: Memórias do Povo Xukuru – CCLF – 1997)
Um ano mais tarde, em dezembro de 1991, a Comissão Especial de Análise aprova a proposta de demarcação da área indígena Xukuru, o que faz aumentar a pressão dos fazendeiros contra os índios. O conflito acirrado eclode no dia 24 de fevereiro de 1992, quando é realizada a segunda e maior retomada feita no Cacicado de Xicão: Caípe, de propriedade de Hamilton Didier, uma das figuras mais importantes do grupo econômico e político da região.
Em Caípe a retomada foi em 92, por desrespeito dos fazendeiros. Didier antes arrendava as terras. Ele dizia que tinha 350 hectares de terra em documento registrado, só que ele tomava conta de 1450 hectares de terra. Antes de 89 ele arrendava essas terras. Ele arrendava um hectare de terra e o índio pagava com dois sacos de milho e no meio do inverno ele tinha que plantar o capim dentro da lavoura do índio.
O Hamilton Didier recebia esse milho ou, quando o índio não pagava com o milho, pagava na renda do capim. Ele plantava o capim de graça por conta do arrendamento. Se o índio não plantasse ele não trabalhava mais. Só que naquele lugar que tinha capim ele não plantava mais até que em 89 todas as terras tinham capim e onde tinha capim não se trabalhava mais. Aí os índios começaram a se levantar. O Hamilton disse que os índios pegasse a terra, jogasse em cima do lajeiro para plantar.
Os índios representantes levaram até o Cacique a proposta do Hamilton. Xicão disse que os índios deviam se organizar para fazer a retomada. E aí se organizou-se, se procurou advogados para saber como a lei cobriria.
Em fevereiro de 92, disseram que ia ser uma comemoração no terreiro de ritual e cerca de 900 índios, do dia 23 para 24 de fevereiro os índios partiram do terreiro de ritual para acampar no pátio da fazenda.
Com 24 horas a Funai foi comunicada para que ela tomasse as providências, para que ela comunicasse Brasília, os procuradores, os juizes e elaboramos um documento dizendo que não podia haver entrada da Polícia Militar. Pedimos também que a Funai viesse fazer a medição da terra. Pedimos também que ele retirasse os animais dele porque a gente só queria a terra pra trabalhar.
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
Caípe, por ser uma retomada de grande porte, exigiu dos Xukuru uma organização que buscou o apoio de vários órgãos externos, a exemplo do CIMI, Centro de Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra, Comissão de Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (LE/NE), Membros do Conselho Mundial de Igrejas, Líderes Sindicais, rurais e urbanos da região de Garanhuns/PE, Universitários da UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco e Faculdade de Ciências e Letras de Goiana. Esses órgãos deram o respaldo necessário externamente, já que os índios teriam contra eles o inimigo forte que era Hamilton Didier.
Também foi providenciado todo um aparato jurídico anterior à ocupação, com a emissão de documento onde ficava clara que só a Polícia Federal tem permissão para entrar em áreas indígenas. Essa medida garantiu a prevenção contra grupos políticos regionais que poderiam acionar a Polícia Militar, como de fato aconteceu com o Batalhão da cidade de Arco Verde, vizinha a Pesqueira.
Caípe ampliou a área Xukuru, garantindo uma melhoria substancial nas condições de vida do povo. Na época da retomada foram beneficiadas 94 famílias, fora as que moravam em outras aldeias e vinham trabalhar na área que representa uma das mais produtivas da região. Foi um momento de vitória em um pedaço importante de terra.
O fazendeiro Hamilton Didier entrou com um processo de reintegração de posse, mas não obteve êxito. Com essa retomada, os índios passaram a ser reconhecidos na sua luta. Tanto a Igreja quanto as autoridades locais admitiram a autonomia do povo. A ocupação de Caípe legitimou ainda mais o trabalho de Xicão. Nesta época foi criada a Comissão Interna, que já começou o trabalho de organização distribuindo funções específicas na retomada. Haviam responsáveis pela alimentação, comunicação, finanças, segurança, religião, etc.
A questão política também não foi esquecida.
Ai quando foi dia oito de março aí foi uma comissão a Brasília para ir pedir a portaria demarcatória e a demarcação. Foi eu, Agnaldo e Totonho. Xicão ficou na retomada. Ele não podia sair porque ele era o Cacique e era uma retomada grande e ele tinha que ficar ali para respostas, perguntas, porque ai vinha o pessoal da justiça, da Funai, os fazendeiros, que não vinha eles, mas mandava outros, e a gente não tinha praticamente experiência na época. E aí ele delegou, a comunidade delegou três pessoas para ir a Brasília para fazer essa cobrança e aí a gente ficamos 22 dias lá em Brasília até voltar com a portaria na mão.
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
O documento trazido de Brasília foi o Despacho n. º 3, de 23 de março, em que o Presidente da Funai aprova as conclusões sobre os estudos de delimitação da terra indígena Xukuru, encaminhando o processo para aprovação da demarcação da área. Em 29 de maio de 1992 é publicada no Diário Oficial da União a Portaria do Ministério da Justiça n. º 259, que declara a posse permanente dos índios Xukuru, “caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena”. A portaria também determinou que a Funai promovesse a demarcação da área, para posterior homologação pelo Presidente da República.
Essa portaria teve fortes oponentes que pediam a reavaliação da proposta da área a ser demarcada. Pleitos foram enviados à Funai, através de entidades de classe como o Sindicato dos Produtores Rurais de Pesqueira. Roberto Magalhães, deputado federal pelo PFL/PE, encampou a proposta de defesa desses pleitos que pediam a revisão das propostas de limites apresentadas e a suspensão das providências para demarcação e reestudo dos limites.
Essas argumentações foram refutadas pela antropóloga Vânia Fialho, que elaborou o laudo de identificação, e pelos técnicos do setor fundiário da Funai em Brasília, dado o caráter explícito de parcialidade das propostas apresentadas em favor dos posseiros. Enquanto o processo transcorria em Brasília, nos Xukuru o nível de organização chega a tal ponto que em maio de 1993, um grupo de índios da aldeia Pé de Serra, uma das mais secas, faz uma retomada de cinco hectares, por iniciativa própria, tendo as outras lideranças, como o Cacique e o Pajé, sido avisadas quando a retomada já estava organizada.
Já havia uma consciência do direito à posse da terra que estava difundida por todo o povo, bem no momento em que as lideranças anunciavam a realização de um trabalho há tanto tempo esperado: A demarcação. Dia cinco de janeiro de 95 o Diário Oficial da União publicou o convênio firmado entre a Funai e ITERAL – Instituto de Terras de Alagoas, que oficializou a realização da demarcação física da terra. Foram colocadas as placas de identificação da área indígena e os piquetes demarcatórios, mesmo dentro das fazendas dos ocupantes não índios.
A demarcação foi o seguinte: a gente já tinha mais ou menos experiência que a demarcação seria feita pela Polícia Federal só que com a contribuição dos índios. E aí o anúncio da demarcação e aí Xicão espalhou pra todo o povo Xukuru nas 23 aldeias que a partir do dia que a Polícia Federal chegasse pra fazer a demarcação a gente precisava da colaboração de todos os índios. Quando foi o anúncio de que a Polícia Federal vinha, Xicão mandou avisar a todos os representantes, que vieram pra essa reunião pra ouvir de fato como era o trabalho que a Polícia Federal ia fazer e aí cada representante já sairia com a tarefa pra casa pra de lá cada dia reunir seu grupo de trabalho. E assim se deu. A gente teve uma participação de todas as aldeias. Sei que foi muita gente, teve aldeia que, no final de três meses de demarcação, de ter 700 dias de serviço.
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
O trabalho demarcatório transcorreu sem grandes problemas. Há registro apenas de uma ocorrência, quando a equipe que realizava a demarcação foi procurada pelo posseiro Otávio Carneiro Leão, que tem uma das maiores áreas dentro da terra Xukuru. Ele propôs alteração nos limites da área e em especial na Fazenda Quixaba, de posse de sua esposa. Essa ocorrência consta no relatório de 22 de outubro, feito pela equipe da Funai que fiscalizava a demarcação.
Com a demarcação física, que faz uma medição mais exata, o território ficou em 27.555 hectares. Em três meses estavam fincadas na terra as placas que declaravam o nome da área indígena Xukuru do Ororubá.
Foi como um sonho. Pra nós novos não, que tinha ouvido há pouco tempo falar de terras indígenas, terras demarcadas. Pra os velhos de 60, 70, 80 anos que viu aquilo ali, pra eles foi um sol que nasceu dentro do povo Xukuru. Uma coisa nunca vista no mundo, pra eles. E tinha velho de 70, de 80 anos que ia lá. Já não podia cortar mato, mas arrastava um garranchinho. Queria ter prazer de tar participando das picadas, da demarcação. E outros que não podia carregar os piquetes, e os novos carregavam, os velhos iam, pegavam um punhado de terra, tirava de dentro do buraco, botavam os piquetes e colocavam a terra. Era uma coisa muito bonita. A Polícia Federal tinha duas caminhonetes grandes e outros carros. Tinha dia de trabalhar 300 homens e eles diziam “eu vou porque eu quero participar”. Era o povo brocando, arando, um negócio muito bonito.
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
Faltavam duas etapas para a conclusão do processo jurídico-fundiário das terras quando foi sancionado pelo Governo Federal o decreto 1775, que prejudicou praticamente todos os povos indígenas que estavam em processo de demarcação.
Esse decreto permitiu que os ocupantes contestassem o processo demarcatório e os seus limites. Nos Xukuru, foram 272 recursos, que foram rejeitados pela Funai por conta da falta de provas que pudessem fundamentar os pedidos. Em uma segunda ação junto ao Supremo Tribunal de Justiça, um grupo de posseiros conseguiu mandado de segurança que lhes garantiu a permanência na terra, sob a alegação de que não houve oportunidade dos títulos de terras, sob posse dos não índios, serem avaliados.
Esse mandado de segurança paralisou o projeto de decreto que tratava da homologação das terras. O gabinete da Presidência da República, responsável pela efetivação do decreto de homologação, devolveu o projeto ao Ministério da Justiça, por conta da contestação da demarcação ainda não ter sido resolvida.
A paralisação do processo demarcatório dificultou a vida dos Xukuru, pelo fortalecimento que o decreto 1775 tinha dado aos posseiros. Mesmo diante dessa realidade o povo continuou atuando na luta pela terra, até porque a demarcação estava feita e a luta era pelo pagamento das indenizações, já que os títulos de propriedade dos não índios que alegavam a posse longi temporis não tinham de fato força jurídica para descaracterizar a área como território indígena. Com a demarcação definida, os Xukuru promoveram a última retomada durante o Cacicado de Xicão. Duas propriedades vizinhas, que totalizam 400 hectares que estavam em nome de Leonardo Gomes.
A retomada de Sítio do Meio e Tionante foi em 1998 por motivo de que a terra tava sendo espoliada através de fazendeiros e os índios que moram em redor, em Cana Brava, Brejinho, Caípe, Afetos, eles tavam sem ter onde trabalhar. Os fazendeiros não arredavam mais para os índios trabalhar porque tava repleto de capim. Os índios sentiram necessidade disso, se organizaram, se uniram e fizeram o anúncio de uma festa, e que todos os índios dessas quatro aldeias participassem dessa festa e no final da festa iam fazer um ato. Acamparam dentro da fazenda e depois de acampados mandaram dizer para o Cacique, para as lideranças que tavam nas suas casas sem saber do movimento. E aí fomos lá ver o que tinha dado e eles disseram “retomamos isso aqui e precisamos que vocês lideranças, Cacique, leve o anúncio às autoridades.
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
Lideranças Xukuru declararam na época que a retomada foi motivada pela morosidade do Governo Federal no processo de regularização da terra e pela necessidade de áreas para trabalharem e garantir a subsistência. Havia ainda o agravante do corte na distribuição de cestas básicas entre os índios.
A reação do proprietário foi de esperar o posicionamento da Funai. Com oito dias em Brasília as lideranças Xukuru trouxeram o documento que garantia a permanência na terra. A partir da reconquista de novas áreas o povo Xukuru passou a contar 23 aldeias dentro da área. Foi um grande avanço que possibilitou uma melhoria significativa para os índios.
Companheiros de Luta
A luta do povo Xukuru não se restringiu apenas na organização junto aos índios. Havia toda uma rede de entidades envolvidas no trabalho do Cacicado, realizando ações em diversas áreas como a educação, formação política, subsistência e assistência jurídica.
A capacidade de fazer parcerias possibilitou a Xicão se aliar com ONGs – Órgãos Não Governamentais. A primeira a manter contato com os Xukuru foi o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, órgão ligado a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que trabalhou com a conscientização política, apoio jurídico – já que dispõem de advogados, especializados em direito indígena – e ainda na busca de outras organizações que desenvolvessem projetos junto ao povo, a exemplo da Cáritas Diocesana e da OXFAN – Associação Recife-OXFORD para cooperação ao desenvolvimento.
Depois do CIMI, muitos órgãos não governamentais passaram a formar parcerias dentro dos Xukuru. O Centro de Cultura Luiz Freire, por exemplo, desenvolve até hoje trabalho junto aos professores da área, com cursos de capacitação em educação escolar indígena e desenvolvimento de material didático. Uma das realizações foi o livro Xucuru – Filhos da Mãe Natureza, escrito pelos professores e lideranças indígenas, com o apoio do Centro que organizou todo o material escrito para a publicação.
O IBASP – Instituto Brasileiro de Amizade e Solidariedade aos Povos, também participou no sentido de dar maior visibilidade aos povos indígenas de Pernambuco e em especial aos Xukuru. O Instituto conseguiu trazer importantes parceiros para a etnia, a exemplo da Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância, que disponibilizou 100 mil dólares para a execução de projetos na área. Esse dinheiro foi utilizado na compra do caminhão F-4000 que hoje serve à comunidade e na execução de projetos de subsistência, segundo a demanda do próprio povo, já que todos os projetos nos Xukuru vinham da discussão interna das necessidades da etnia.
Esses projetos eram elaborados, discutidos, executados e controlados pela comunidade. A gente ia lá como coadjuvante e não para dizer é assim, assim. Então a própria comunidade fazia essa coisa de distribuição e tal, entre eles próprios. E funcionou.
(Miguel Anacleto – IBASP)
Foi através do IBASP que os Xukuru chegaram a ter o reconhecimento internacional, quando o Cacique Xicão viajou até Portugal, junto com o coordenador do Instituto, Miguel Anacleto, para realizar palestras sobre a realidade dos povos indígenas do Brasil. Na volta trouxeram abaixo-assinado com mais de cinco mil nomes pedindo a demarcação das terras. Houve ainda outras entidades que conseguiram a construção de casas de farinha, projetos de criação de cabras, de construção de residências, etc. Foram inúmeras ONGs que estiveram e estão presentes junto a esse povo.
Uma característica que chama a atenção de quem conversa com os integrantes dessas entidades civis é o envolvimento que vai além do caráter profissional, quando se referem aos índios.
Todos nós do CIMI tivemos uma relação de estar apaixonados pelo povo Xukuru, uma paixão fruto da experiência da luta. Por perceber como aquele povo não se curva diante de todas as dificuldades de tantos crimes que já foram feitos contra aquele povo, mas que tá aí, com todas as dificuldades vai lutando, cabeça erguida. Isso impressiona, isso apaixona, pra todos aqueles que crêem nessa luta, nos deixa não só o compromisso profissional, mas o compromisso pessoal. Pensar num projeto político de transformação da sociedade.
(Sandro Lôbo – ex-advogado do CIMI)
Os Xukuru mantém um critério rigoroso quanto às organizações que trabalham na área, principalmente no que se relaciona com ao compromisso político e social destas. Esse é provavelmente o fator que explica o fato dos representantes das entidades que trabalham na área terem todo um pacto pessoal com a causa indígena.
As parcerias com a sociedade envolvente, no entanto, adquirem outro aspecto quando nos referimos aos órgãos públicos. Se nos remetermos às instituições municipais, a exemplo da prefeitura, veremos que ao longo dos anos houve um posicionamento que oscilou entre a negação da identidade indígena no município e a inoperância em decisões que beneficiassem a etnia.
No município, as mesmas pessoas que ocupavam irregularmente a área indígena são as que estavam na prefeitura, nas secretarias municipais ou na Câmara de Vereadores.
Em 1996, por exemplo, o povo indígena conseguiu eleger Antônio Pereira, índio da aldeia Pedra D’água, como vereador. Esse fato gerou entre os Xukuru uma grande esperança, mas, dada a força política de direita na Câmara pouco, efetivamente, foi realizado dentro dos encaminhamentos enviados em favor dos índios.
Essa relação dificultou as discussões dentro do município. Mas, como os direitos indígenas passavam muito mais pela esfera federal, era lá que os Xukuru iam, guiados por Xicão, que é lembrado nessas viagens pela firmeza nas discussões com representantes do Governo Federal e pelo espírito decidido com que guiava as lideranças indígenas.
A gente chegava cansado oito, 9 horas da noite, chegava, deitava e ele chegava e PÁ! “Levanta, tem que lutar, vamos avaliar o que a gente fez”. E não tinha quem matasse aquele homem pelo cansaço. “Vamos avaliar o que a gente fez e vamos projetar o que a gente vai fazer amanhã. Nós saímos pra lutar e levantar a verdade pro nosso povo, não a mentira. Nós não veio aqui brincar, nós veio aqui se armar pra lutar. Esse era o trabalho do Cacique Xicão.
(João Jorge – liderança da aldeia Sucupira)
A determinação no trabalho levava Xicão a ser recebido nos órgãos públicos com o respeito de uma liderança que cobrava os direitos não só em nome de seu povo como também de outras etnias que o reconheciam como liderança de grande contribuição na luta. De fato, o cacique tomou para si a responsabilidade sobre os povos de Pernambuco quando tornou-se um dos coordenadores da APOINME – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
Em todas as aldeias dos Xukuru, de Pernambuco, ele tem o nome de pai porque ele não só ajeitou nós Xukuru, Xicão ajeitou as sete tribos de Pernambuco. No dia que a gente tava fazendo a demarcação da tribo Xukuru e lá em Truká eles tavam brigando. Aí pediram a Polícia Federal pra ir com o administrador da Funai fazer um acordo entre eles e os posseiros. Aí quando Xicão chegou lá encontrou o administrador e disse “vamos fazer a demarcação do povo Truká. Daqui você não sai, que agora eu tô com eles”. O administrador disse “Xicão vá cuidar de sua demarcação” e ele “a minha já tá cuidando lá, agora você já tá aqui, resolva a demarcação deles. O problema deles é demarcação que eles querem e agora você tem que fazer. Você vai fazer e eu vim aqui dar uma força”. Aí fizeram a demarcação e ele ficou três dias lá. Com três dias ele bateu [satisfeito] no ombro do administrador.
João Jorge – liderança da aldeia Sucupira
Tempo de Violência
Junto com o processo de organização Xukuru, cresceu também a violência contra os índios. Desde o início do Cacicado, em 1986, Xicão e as demais lideranças começaram a receber ameaças para que parassem o movimento de luta pela terra.
Os problemas com a violência começavam com a própria Polícia Civil de Pesqueira. Em fevereiro de 1989, um grupo de lideranças Xukuru, junto com o vice-cacique Xicão, foi até a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco denunciar o delegado da Polícia Civil José Petrônio Góes pelas violências que praticava contra os índios. Em notícia divulgada no dia 02 de fevereiro no Jornal do Comércio o índio Adelmo Ferreira Messias aparece como vítima do abuso de autoridade do delegado que, segundo a denúncia, o prendeu e espancou durante quatro dias, em dezembro de 1988. Também foi explicitada a ação omissa da Funai diante dos atos praticados pelo delegado, que impedia a realização do Toré com ameaças de agressão física contra os índios. Alguns meses depois da denúncia, José Petrônio Góes foi afastado do cargo.
Mas essa foi apenas a primeira de uma série de violências que ocorreram durante o Cacicado. Conforme a luta pelo direito à terra ia se desenvolvendo, cresciam também as ameaças contra os índios, que eram denunciadas na Procuradoria da República, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Funai, Secretaria de Justiça e na imprensa. Os órgão públicos, no entanto, respondiam com um posicionamento inerte, sem que de fato nenhuma ação prática fosse realizada.
Junto com as ameaças os posseiros também tentavam acabar com a luta por outros meios. Nos primeiros anos de luta, por exemplo, Xicão recebeu inúmeras propostas para que abandonasse o Cacicado em troca de grandes benefícios em dinheiro.
Xicão, no início, tentaram corromper ele pra ver se ele se vendia, pra parar a luta, mas ele… Era uma lição que ele tinha com ele, de lutar pelo seu povo e não se vender. Por sinal até Um que também tem terra aqui dentro da área, fez uma oferta a ele de uma carreta agregada numa firma e um apartamento onde ele quisesse escolher pra morar pra ele abandonar e sair, que ele não tocasse pra frente a luta. E ai ele, a resposta que ele deu foi que não, que ele nasceu pra morrer por seu povo e que não ia se corromper, que dinheiro nenhum ia corromper, que dinheiro nenhum ia corromper ele.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
Sem conseguir tirar Xicão da liderança dos Xukuru, os oponentes ao povo passaram a intensificar as violências, indo além das ameaças. Dia 04 de setembro de 1992, José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do pajé, é assassinado pelo não índio Egivaldo Farias Filho, por conta de uma pequena retomada para um campo de futebol, próxima à área da aldeia de Cana Brava. O assassino era primo do posseiro que teve parte das terras retomadas, mas que já havia feito acordo com os índios e assinado documento de doação em litígio. José Everaldo tinha liderado essa retomada.
Quando saia de casa às 8h da manhã, foi morto com quatro tiros. Logo após o crime, o irmão do assassino o denunciou e um grupo de índios foi até a casa de Egivaldo. Não o encontraram, mas descobriram uma lista com o nome de 21 índios que deveriam ser assassinados. O nome do cacique Xicão encabeçava a lista que foi levada ao conhecimento da Polícia Federal. Revoltados com o crime, os Xukuru incendiaram a casa do homicida.
Quanto à polícia, os próprios índios denunciaram, na época, em carta dirigida à Polícia Federal que “a Polícia Civil e Militar estiveram no local (mas não conduziram o corpo até o hospital para fazer o exame. A própria família da vítima teve que transportar o corpo numa rede)”.
Esse crime e a lista de nomes aumentou a tensão no povo. Foi o primeiro homicídio por conta da luta pela terra e este era apenas o início de um tempo de violências. As lideranças nessa época já se protegiam e o cacique Xicão passou a andar sempre acompanhado, por conta das constantes ameaças através de cartas anônimas e telefonemas para a casa de sua irmã, Marli, que reside em Pesqueira.
Eram telefonemas anônimos, bilhetes. Diziam que iam matá-lo, que ele estava roubando a terra dos outros. Ligavam pra Câmara, diziam até os valores, cinco mil reais, 10 mil reais, que iam fazer uma cota… A partir do momento que começou a ser cacique ele foi perseguido.
(Marli – irmã de Xicão – Pesqueira)
Xicão protegia-se, como os próprios Xukuru falam, “pelos dois lados”, do corpo e do espírito. Na sua casa sempre dormiam índios que faziam sua segurança. No caminhão F-4000 que dirigia, pertencente à comunidade, sempre iam pessoas em cima. Xicão não andou mais sozinho. Em alerta constante o cacique protegia o corpo com os companheiros de luta e na sua religião ele buscava a força dos encantados para proteger o seu espírito.
Como o cacique Xicão nenhum cacique vai lutar porque o cacique Xicão ele tinha o dom da natureza, ele sabia lutar, sabia fazer, ele nunca deu uma palavra perdida pra mim. Xicão era muito apegado com Deus, com o tupã e Tamaín. (…) Teve uma emboscada, e isso ele aconteceu. Eles não enxergavam Xicão no carro. Enxergavam um negro muito feio e o cara assombrou-se e correu né? Entregou a arma pra fazendeiro, essa história é verdadeira. E nós achou a emboscada, mesmo depois da retomada, entre aqueles dois ganchos da retomada. Aí foi botada uma emboscada nele e o caba que tava na emboscada, o pistoleiro, não conseguiu a conhecer ele não, e ele [o matador] era conhecido, disse que não queria negócio com aquele homem [Xicão] porque no carro ia uma pessoa muito diferente e ele assombrou-se. E ele não viu Xicão.
(João Jorge – Liderança da aldeia Sucupira)
O cacique não era a única vítima das ameaças. Na época do anúncio da demarcação das terras, Geraldo Rolim da Mota Filho, procurador da Funai, foi a segunda vítima de assassinato, em 13 de maio de 95.
Era um cidadão de Pesqueira, branco, mas era muito dado com essas causas, com as pessoas das causas sociais mais baixas, no caso a gente o índio e o negro e aí ele começou se formando pra advogado e a intenção dele era pra defender essas causas e aí teve o conhecimento com Xicão, e aí interessou pela causa e aí ficou defendendo a nossa causa indígena. A questão da terra processual era com ele, que fazia tudo. Isso durante um longo tempo. Depois de uns cinco, seis, sete anos, passou pra fazer um estudo pra passar pra juiz ou procurador e cabo de 93, 94 ele passou no concurso e foi ser procurador da Funai.
Mas antes disso, por conta do conhecimento que ele tinha de Xicão, por conta da defesa das causas que tinha contra o povo Xukuru, ele já era ameaçado pelos fazendeiros de Pesqueira. Ameaçavam ele que saísse dessa coisa, que isso era coisa de índio, coisa que não tinha valor, que o índio queria tomar o que era do fazendeiro e que ele tinha que se afastar disso porque ele podia morrer.
Passou a ser procurador da Funai, aí eu acho que os caras dissero “bom, agora o cara é um procurador da Funai e ai ele sabe de tudo já e agora ele vai ser defensor da causa”. E tiraram a vida dele. Era uma pessoa excelente que trabalhava em prol das causas menos favorecidas, ele ajudava muito nesse sentido defendendo as causas como advogado e depois como procurador. Foi defender a causa tanto dos índios quanto da Funai também, e aí os fazendeiros tiraram a vida dele. Quando foi lá pro final de 93 era ameaçado ele e Xicão, era os dois. A ameaça que vinha pra ele vinha pra Xicão também e tudo era passado, ele passava tanto pra gente quanto pra comunidade.
Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru
Geraldo Rolim foi morto em São Sebastião do Umbuzeiro – PB, às 19h, na saída de um clube, pelo fazendeiro Theopompo Siqueira Brito Sobrinho, proprietário de terras no distrito de Ipojuca, em Pesqueira. O procurador estava à frente no processo de demarcação física da área, o que representou, segundo denúncias dos índios, o motivo do assassinato. O criminoso foi acusado de ter amizade com os posseiros das terras indígenas, que teriam se sentido prejudicados com a demarcação. Quatro pessoas que estavam com Rolim quando foi assassinado reconheceram Theopompo. Xicão, em depoimento ao delegado de Umbuzeiro, falou que, dois dias antes do assassinato, um pistoleiro teria se negado a praticar o crime e contado tudo ao procurador.
O caso, por ter sido cometido fora da área indígena e fora do estado de Pernambuco, foi tratado como crime comum, sem nenhuma investigação maior sobre a questão política. Assim, ao final das investigações, Theopompo Siqueira foi absolvido pela alegação de que teria atirado em legítima defesa, mesmo diante do depoimento contrário das testemunhas e de toda a conotação política em que Geraldo Rolim estava inserido.
Com a certeza da impunidade diante de dois assassinatos não resolvidos e a constatação que o território indígena estava com a demarcação definitiva e em processo de homologação, aumentaram as ameaças para que Xicão abandonasse a luta, mas ele continuou até o dia 20 de maio de 1998.
Entardecer de Dor
Dia de feira, a maioria dos índios estava na cidade, na feira. Eu estava no [Bairro] Xukurus, que ia ter o encontro do Copixo, do conselho de professores, e aí ele chegou da aldeia. Eu cheguei primeiro do que ele na casa. Ele estacionou o carro na esquina da casa e chegou com Totonho, que ia pegar o caminhão pra ir buscar umas telhas de Totonho, levar da cidade na aldeia. E a gente ficou conversando um pouco dentro de casa e aí ele saiu pra estacionar o carro pequeno na frente da casa da irmã dele e quando ele saiu… aconteceu a tragédia.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
Xicão recebeu seis tiros ainda dentro do carro que havia recebido da Funai há poucos dias. O assassino estava à espera em um orelhão na frente da casa de Marli, irmã do cacique, que fica no bairro Xukurus em Pesqueira. Após o homicídio o criminoso fugiu a pé. Xicão foi levado para o Hospital Dr. Lídio Paraíba, aonde já chegou sem vida.A Polícia Civil veio depois de algum tempo ao local do crime, quando o sangue em frente à casa já havia sido lavado e o assassino há muito fugido.
Esse foi o fim de uma das maiores lideranças indígenas do país. O desespero tomou conta dos índios que tinham em Xicão um pai, professor e amigo. O corpo foi velado durante três dias e enterrado em um local escolhido pelo próprio Xicão.
Aonde ele foi sepultado foi na aldeia Pedra D’água. Antes de retomar ele tava vindo de uma viagem e quando ele chegou pra subir a Pedra do Rei ele pensou assim, que ia fazer uma retomada ali pra preservar aquela mata e ali seria o lugar onde ele seria sepultado, e ele nunca tirou isso da cabeça. Com o passar dos tempos ele foi lá, preparou lá um cantinho onde ele ia fazer suas orações, seu retiro, se retirar lá ao meio-dia, junto com outro velhinho, Seu Chico, e lá ele escolheu o local onde ele seria enterrado. Ele falava até pras entidades [ONG’s], se morresse lá fora, viajando, era pra trazer ele pra aquela localidade, ali onde ele foi enterrado. Ele escolheu como lugar de meditação dele.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
Foram cerca de três mil pessoas no enterro. Índios de Pernambuco e de outros estados vieram participar na despedida ao cacique. Políticos, ONGs do Brasil e do exterior, organizações indígenas de todo o país. Todas as inúmeras entidades que prestavam apoio aos Xukuru sentiram a morte desse líder, junto com todo o povo da Serra do Ororubá. Mas o desejo de justiça esteve presente junto à dor, em todos os momentos desde o assassinato. Os Xukuru cobraram à Justiça e dois inquéritos foram feitos sem que, no entanto, fosse resolvido o crime.
Tem hoje um inquérito na Polícia Civil, que foi arquivado, praticamente por falta de provas, porque o delegado não se propôs a investigar de fato, começou só a fazer um monte de linhas a seguir e terminou se perdendo. Tem um inquérito na Polícia Federal que queria desde o início incriminar os índios, colocá-los como culpados do assassinato de Xicão. Nós, junto com o povo, conseguimos fazer com que a polícia não tivesse sucesso no seu intento que era incriminar os índios. E conseguimos.
Êxito da comunidade e êxito de todos os que atuaram, que trabalha com o CIMI, foi fazer com que hoje se tivesse provas mais suficientes, acreditamos isso, pelo menos a certeza de que foram os fazendeiros que mataram Xicão, que nós nunca tivemos dúvidas, e o nome e a forma estão todos revelados no inquérito. Problema de provas concretas pra poder prender, pra poder julgar, essa é uma outra questão. Se a Polícia Federal tivesse agido desde o primeiro momento com o sentido de conduzir o seu processo de investigação pra uma linha em que apontasse os fatos para os verdadeiros culpados, teríamos hoje provas.
O que ocorre é que passamos mais de dois anos. A polícia tá em alguns momentos, em outros termina parando o trabalho por falta de recursos materiais ou por outras questões e as provas se perdem com o tempo. Ninguém vai pegar o telefone e dizer “eu fiz o serviço, vou receber quando?”. Ninguém vai fazer isso três anos depois. Então, por exemplo, foram fazer escuta telefônica um ano depois, quebra de sigilo bancário dois anos depois. Essas provas, esses elementos de provas deveriam ser feitos anteriormente, só que a polícia não fez.
(Sandro Lôbo – ex-advogado do CIMI)
O caso, que desde o início foi denunciado pelos índios como crime político, só passou a ser visto por essa linha de investigação após uma longa batalha onde os índios tiveram como aliados o CIMI e outras organizações não governamentais. O povo denunciou a resistência da polícia em colocar como suspeitos pelo homicídio os fazendeiros que têm terras na área indígena e detêm o poder político na região. Em entrevista a um desses posseiros, vemos claramente que se esquivam diante da questão do assassinato. Hamilton Didier, por exemplo, dono da Fazenda Caípe, retomada em 1992, foi incisivo quando inquirido sobre o assassinato “aí eu não sei de nada, eu não participei de nada, aí eu não sei de nada porque eu não participei de nada”.
Os nomes dos culpados não são evidenciados, mas há a certeza de que foram pessoas com interesse nas terras indígenas que premeditaram o homicídio. Seis meses antes do crime, circulou em Pesqueira uma carta-denúncia que acusava Xicão e as lideranças Xukuru por diversas mortes. Essa carta com o timbre de uma suposta Comissão de Justiça e Paz de Pesqueira foi entregue ao Ministério da Justiça e o próprio Cacique, em depoimento que consta no vídeo Xicão Xukuru, denuncia esta carta como álibi para os assassinos que planejavam sua morte.
Outro fato ainda relevante refere-se ao dia do crime.
No dia do ocorrido o dono de supermercado mesmo, o próprio Leonardo e outros donos de supermercado chamou a polícia e disse que os índios ia invadir os supermercados. Aí a polícia do Batalhão tava toda nos supermercado, guarnecendo. Já tava premeditado o crime dele, que quando bem cedo quando o dia amanheceu a polícia já tava tudo nos supermercado guarnecendo. Só veio só um caminhão para buscá-lo, pra socorrer ele. E também as diligências foi muito pouca em riba dele naquele dia.
(Totonho – aldeia Pé de Serra)
Em outubro de 1999 Jurandir Gomes de Araújo, conhecido como pistoleiro na região do agreste, foi acusado pela Polícia Federal como o principal suspeito do assassinato, contratado para matar o cacique Xicão. Jurandir já tinha três mandados de prisão, sendo dois por lesão corporal e um por homicídio. Uma semana depois de preso, no entanto, o acusado não foi indiciado no inquérito, por conta de duas das quatro testemunhas que presenciaram o crime não o terem reconhecido.
A busca de provas para a prisão dos culpados continua e o povo não perde a esperança de conseguir justiça para a figura que conseguiu firmar-se dentro do povo Xukuru como um herói, um espírito guia sempre presente e um exemplo de liderança a ser seguido. A morte de Xicão somente o fez renascer em cada índio, através da força em seguir a luta, um desejo do próprio Xicão.
Ele conversava muito comigo e ele até chegou um dia a dizer assim que os dias dele estava chegando e que ele já tinha feito o trabalho dele, que o sonho dele era demarcar as terras e os índios saber os seus limites das suas terras… E a terra já estava demarcada e se por acauso ele chegasse a morrer, que os índios desse continuidade na luta.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
MEMÓRIAS DO 1º ANO DO ASSASSINATO DE XICÃO
Pesqueira – PE 20 de maio de 1999 Foi a primeira vez que estive nas Terras do Ororubá. Na manifestação de um ano do assassinato de Xicão, pude ter uma ideia da dimensão dessa liderança não só para os Xukuru como também para outros povos do Brasil. Chegamos, um grupo de estudantes de graduação da UFPB, coordenados pela professora Annelsina Trigueiro, pela manhã e a passeata pela cidade de Pesqueira já havia começado. Uma multidão de pessoas ia avançando pelas ruas, com faixas, corpos pintados e adornos. Pela primeira vez na vida vi tão grande número de índios, juntos na homenagem ao cacique assassinado. Em todos os semblantes um olhar de determinação que dizia a que vieram: um momento de dor e de fé, uma despedida e um reencontro com o cacique Xicão Xukuru. Caminhando junto com a passeata pela cidade ouvi, de pessoas que observavam de longe a manifestação, frases que hora exaltavam a coragem de Xicão, hora reduziam-no a mais um número nas estatísticas de violência. Só ao observar o respeito como os quase mil índios se portavam, em uma marcha silenciosa, mas a passos firmes, víamos quem foi e o que criou este líder. A marcha parou em frente à casa de Marli, onde ocorreu o crime. Na rua lotada de pessoas foram realizados discursos emocionados, que exigiam justiça para Xicão e o fim da violência. O Toré aconteceu no mesmo lugar, por mais de uma hora, ao meio-dia. À tarde, a manifestação continuou na aldeia Pedra D’água. Lá conheci a casa de Xicão e fui apresentada a Dona Zenilda, viúva do cacique. Uma mulher que pude perceber mais tarde possuir uma força e determinação extraordinárias para continuar a guiar o povo. Nas paredes das casas, fotos de Xicão. Havia nessas imagens algo de sagrado, bem como nos objetos (cocar e adornos) usados por Xicão e que naquela data estavam em Marcos, seu filho. Eram 14h quando fomos até o local onde seria realizada a missa. A planície rochosa, na subida da serra, era próxima ao local onde Xicão foi enterrado. A sepultura fica dentro da mata, ao pé de uma enorme pedra, cercada por uma energia só compreensível aos que lá estiveram. Na planície as pessoas começaram a reunir-se para os discursos. Luis Inácio “Lula” da Silva, à época presidente de honra do PT, estava presente e falou sobre a omissão do estado diante do crime e da força que via nos índios presentes. D. Zenilda, Marcos, Zé de Santa, professores Xukuru e lideranças de outros povos também discursaram sobre o cacique Mandaru. Mas o momento mais emocionante foi mesmo quando todos, das crianças aos velhos índios, gritaram “presente!” ao ouvirem chamar o nome “Xicão!”. Kelly Oliveira |
“Do Sangue de um Guerreiro, Guerreiros”
Ele não vai ser enterrado, ele não vai ser sepultado. Ele vai ser plantado, para que dele nasçam novos guerreiros, minha Mãe Natureza
(Zenilda Xukuru – discurso durante o enterro de seu marido, Xicão)
A organização indígena criada no Cacicado de Xicão não tinha só o objetivo de administrar tudo que era feito no povo como também de proporcionar uma gerência baseada no grupo e não em uma única liderança. Esse momento de dor representou também uma época de crescimento e de fortalecimento do povo que, contrariando as expectativas dos que cometeram o crime, uniram-se ainda mais em nome da memória e dos ensinamentos de Xicão. Nota-se entre as pessoas que conviveram com o cacique a vontade de continuar a luta em nome de quem os próprios índios chamam de “pai, professor, amigo”.
Os Xukuru passaram a caminhar pela liderança da Comissão Interna que se responsabilizou por todos os trabalhos dentro da área, enquanto era preparado o novo cacique, uma pessoa escolhida pelo próprio Xicão, muito antes de 1998: seu filho, Marcos Luidson de Araújo.
No momento que a gente subiu na Pedra do Rei, na faixa dos 11 anos de idade – eu já tô com 22 – e ele falou. Subiu eu, ele e o pajé e a gente ficou lá. Ele foi consultar os encantados, saber como ele tava. Sempre ele se preparava lá em cima, na Pedra do Rei. Chegou lá ele perguntou ao encantado quem ia ser o novo cacique do povo Xukuru. Naquele momento eu estava sentado na Pedra e só eles dois. Só o pajé e papai. Aí o encantado falou que ia ser eu. Foi bem assim a pergunta que ele fez: a pergunta pro encantado que quem ia ser o sucessor dele quando ele estivesse bem velhinho ou mesmo tivesse feito a passagem dele por outro mundo… e o encantado respondeu que iria ser eu. Naquele momento eu era muito pirralho, novo ainda, e como sou hoje. Subiu aquele negócio assim em mim, eu comecei a chorar, ele também chorou, me abraçou. Ai quando ele desceu da Pedra ele falou “é, quando eu estiver velhinho, numa cadeira de rodas, eu vou começar a lhe preparar, pra eu ficar só dando ordens e você executando”.
(Marcos Xukuru – Cacique Xukuru)
Após o momento em que foi escolhido o novo cacique, Xicão começou a pensar como preparar o filho para assumir a luta, andando com ele pelas aldeias, indo ao ritual e sempre o apresentando como seu sucessor. Escolhido pela natureza, o sucessor de Mandaru desde cedo teve o destino definido.
Marcos foi estudar em Pesqueira mais tarde, e de lá viajou para São Paulo, percorrendo um caminho parecido com o do pai. Em 1996 ele retornou para a área Xukuru e foi quando efetivamente passou a participar das reuniões e a se inteirar da luta. Na época do assassinato estava servindo no exército, a pedido do próprio Xicão.
Com a morte do Cacique, algumas lideranças queriam eleger de imediato o novo representante do povo, dada a dor da perda do representante que era, como os próprios Xukuru afirmam, “um guia do povo”, mas por uma questão de segurança, uma vez que esse cargo representa também o alvo principal para os opositores à luta, decidiram continuar com a liderança da Comissão Interna. Essa ação fortaleceu ainda mais o povo que em um momento difícil descobriu a força obtida com a participação de todos nas decisões. O próprio Cacique Xicão já estimulava essa força que ele acreditava existir em todos que participavam da luta.
Eu o acompanhava como observador. Depois de um determinado tempo ele começou a dizer “Zé, você tem que ir só…”. Por exemplo, nos últimos oito ou nove meses todas as reuniões da APOINME eu que fui representá-lo. Eu dizia “Xicão eu não posso, eu não tenho capacidade” e ele “Zé, você nunca teve porque só andava mais eu. Tinha lá pra fazer, mas quando você chegar lá sem ver eu vai fazer”. E isso eu aprendí… e não sei como até hoje. É a capacidade que ele tem de ensinar, era muito, muito fácil! Era como você ensinar uma criança a comer bolo, é um dom…
(Zé de Santa – Vice-Cacique Xukuru)
A luta pelos direitos continuou e a coordenação temporária da comissão demandou uma integração ainda maior do povo. Juntos os Xukuru mantiveram firmes os rumos traçados junto com Xicão, até o momento em que Marcos estivesse pronto para assumir o Cacicado, o que ocorreu em 06 de janeiro de 2000.
A Consagração do novo cacique nos Xukuru contou com a legitimação do povo, como também de outros povos indígenas do Brasil que estiveram presentes na cerimônia onde começaria mais uma etapa de um trabalho iniciado em 1986. Os índios passaram a novamente dispor da liderança principal que responde pela defesa dos direitos do povo, mas ainda mais conscientes da importância da participação de todos no novo Cacicado.
Junto com o cacique Marcos surgiram também novas lideranças que se interessaram pela luta. Essas pessoas, junto com as lideranças já existentes e o novo cacique promoveram uma ação que serviu tanto para reerguer o desejo de luta quanto mostrar para os não índios que os Xukuru estavam presentes na continuidade da luta por seu território. Em 28 de fevereiro de 2000, foi realizada a retomada nas terras pertencentes à Indústria Peixe, que estavam sendo vendidas mesmo com a determinação de que as terras indígenas demarcadas não podem ser negociadas, já que pertencem à União.
Sabendo do processo de venda ilegal e de que o açude da área, que abastece a cidade, estava sendo poluído com gado que havia sido colocado nas terras, os índios reconquistaram o lugar, fechando a principal rodovia de acesso à área. Foi um ano de luta para que pudessem efetivamente ficar no local. No início de 2001, foi concedido o pedido de reintegração de posse para os posseiros e a tensão foi grande entre os índios que estavam na retomada. Pessoas de todas as aldeias foram até a retomada a fim de defender o território, mesmo diante da ação da polícia que a qualquer momento poderia vir executar o mandado de reintegração de posse. Felizmente, através da ação rápida de advogados que trabalham junto ao povo, conseguiu-se um agravo de instrumento que concedeu aos índios a posse da terra, até que o processo seja resolvido.
Essa retomada teve um efeito revitalizante na luta, legitimando o novo Cacicado como a continuidade de um trabalho que tem por base os mesmos objetivos que Xicão apregoava em vida.
Pelo que ele nos ensinou, porque pra nós ele foi um professor, nos encorajou a enfrentar a luta, que era o que mais ele pedia era a união e a continuidade da luta, lutar pelos nossos direitos, por tudo, terra, educação, saúde, e aí a gente achou por bem que tinha de dar continuidade na luta, não ia parar.
(Zenilda Araújo – Liderança Xukuru)
E foi com a determinação semeada pelo cacique Xicão, Francisco de Assis Araújo, e com a força de todo o povo, que em 30 de abril de 2001 as terras indígenas Xukuru do Ororubá, com 27.555 hectares, cinco ares e 83 centiares, foram finalmente homologadas por decreto publicado no Diário Oficial – Nº84 – Seção 1, de dois de maio de 2001.
Esse foi o momento que o Cacique Xicão lutou a vida inteira para conseguir, o objetivo que levou-lhe a vida, mas que foi finalmente conquistado pelo seu povo, no Cacicado de seu filho Marcos Xukuru, que, em entrevista ao Jornal do Comércio em 03 de maio de 2001 refere-se não só ao líder mas ao pai, lembrando que este decreto não veio gratuitamente.
Pena que só agora o Governo tenha tomado a decisão. Se fosse há mais tempo, talvez nossas terras não tivessem sido invadidas, e o meu pai não estivesse morto.
Marcos Xukuru – Cacique Xukuru
Nos anos seguintes os Xukuru conseguiram a desintrusão do território e hoje são reconhecidos como um dos povos de melhor organização e representação política no país. Uma conquista que demandou muita luta, suor e sangue dos guerreiros e guerreiras que começaram a construir sua história ao lado do Cacique Xicão. Um homem que encerrou sua trajetória de luta da mesma maneira que começou, deixando lições de força, coragem, honestidade e sobretudo união.
O trecho abaixo foi retirado de uma da primeiras falas de Xicão, em 1986. É um relato daquele que é considerado hoje um dos maiores líderes indígenas já conhecidos, e que termina este breve relato de vida.
Nunca gostei de prometer nada a ninguém, porque nada eu tenho para prometer, nunca tive, nem meus parentes. A gente trabalha e conversa e a conversa é a seguinte “vamos trabalhar juntos, lutar juntos, pois é lutando organizados que a gente consegue alguma coisa”.
(Xicão Xukuru. Em: Revista Porantim. nº206 – Junho/Julho 1986 p-16)
Bibliografia
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e Luta Recife: Ed. do CCLF, 1998. 78p.
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CIMI/NE. Org. Dossiê Cacique Xicão – “Violência e Assassinato” Recife: CIMI/NE,1998. 250p.
FIALHO, Vânia. As Fronteiras do Ser Xukurú. Recife: Massangana, 1998. 152p.
FUNAI Relatório 1995 – Violência Contra índios e Comunidades Indígenas. Brasília: FUNAI, 1996. 54p.
OLIVEIRA, Kelly Emanuelly, SANTOS, Hosana Celi Oliveira. Índios Xukuru do Ororubá – Além de um Movimento Social. João Pessoa: dig. 2000. 20p.
SIQUEIRA, Francisco de Assis. O Povo Xukuru na Serra do Ororubá e Suas Várias Formas Organizacionais. Recife, 1994. dig. 71p.
WELLEN, Aloys, SIQUEIRA, Francisco, WELLEN, Henrique, et al. Xicão – Herói e Mártir do Povo Xukurú. Campina Grande: HARM, 1999. 172p.
Jornais
Jornal do Comércio – PE
22/10/1988 – Xucurus querem terra de seus antepassados
23/10/1988 – Índios decidirão a estratégia de luta
02/02/1989 – Xucurus acusam Jesus de Torturar Índios
22/02/1989 – Xucurus querem pressa na demarcação de terra
09/12/1990 – Xukurus dão prazo para retomar terra
18/12/1990 – Índios Xukurus procuram a paz e as indenizações
13/01/1991 – À espera da terra prometida
25/02/1992 – 350 Xukurus ocupam fazenda de vereador
26/02/1992 –Índios agora plantam em terras de vereador
05/05/1992 – Xukuru pede ajuda à PF contra jagunços armados em Pesqueira
14/05/1992 – Xukurus dançaram toré ontem, no plenário da Assembléia Legislativa
28/08/1992 – Delegado começa apurar queixa contra prefeito
09/09/1992 – Fazendeiro ocupante de terra indígena acusado de assassinar Xukuru
09/09/1992 – Tentativa de incêndio eleva o clima de tensão
21/04/1993 – Índios vão a Itamar pedir demarcação
15/05/1995 – Morto procurador que demarcava a terra dos índios
25/05/1995 – Cacique cita nomes de mais três fazendeiros
29/05/1995 – Theopompo: “atirei em legítima defesa”
04/08/1995 – Índios se encontram com o governador e pedem apoio
29/10/1995 – Ex-caminhoneiro volta à tribo e se torna cacique
29/10/1995 – Desnutrição mata os índios
14/04/1996 – Fazendeiro contesta demarcação de terra
17/06/1997 – Xukurus perdem terras demarcadas pela Funai
Diário de Pernambuco
02/02/1989 – Índios denunciam violência policial
22/02/1989 – Falta terra. Sobra violência
29/04/1992 – Xucurus dominam a Serra de Ororubá
18/05/1995 – Amigos de procurador depõem sobre crime
25/05/1995 – Xicão aponta autores de tentativa de homicídio
16/06/1995 – Xucurus reiniciam demarcação
14/09/1995 – Mirim Brasil pede apuração de crime
14/04/1996 – Índios xucurus podem ficar sem as terras em Pesqueira
16/04/1996 – Aldeamento dos xucurus é muito antigo
18/04/1996 – Índios aproveitam data para protestar
Folha de Pernambuco
22/10/1988 – Usurpação: a palavra de sempre
22/10/1988 – Processo de demarcação é lento e difícil
02/02/1989 – Caciques denunciam delegado torturador
23/02/1989 – Funai nega denúncia feita pelos índios Xucuru
Notas
[1] Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB. E-mail:mensagenskelly@gmail.com
[2] O texto original (OLIVEIRA, Kelly E. de. Mandaru: Uma grande reportagem sobre a história de vida do cacique Xicão Xukuru (PE). Monografia. (Bacharel em Comunicação). João Pessoa: UFPB, 2001) foi apresentado como Grande-Reportagem para conclusão do curso de graduação em Comunicação Social – Jornalismo, sob orientação dos professores Annelsina Trigueiro de Lima Gomes e José César do Santos. No período, entrei em contato com o grupo através de projeto de pesquisa e extensão coordenado por Annelsina Trigueiro, iniciado um ano depois da morte desta liderança. O estilo livre da grande reportagem garantiu a possibilidade de um discurso acessível ao universo da pesquisa, no caso o povo Xukuru. O texto possibilitou o exercício da mediação social, permitindo vocalizar, através da falas dos índios, a importância da figura de Xicão como um símbolo de luta na defesa dos povos indígenas.Para complementar o texto ainda utilizei minhas memórias, relatos de campo sobre momentos importantes para o povo, a exemplo do 1º ano da morte de Xicão.
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